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Estremaduras: historiografia e a história em revista

3.2 MAL DE ARQUIVO: AS ESTÉTICAS E AS POLÍTICAS

3.2.1 Estremaduras: historiografia e a história em revista

A relação que a história mantém com diversas ciências lhe permite exercer, com referência a cada uma delas, uma função crítica necessária, e lhe sugere também o propósito de articular em conjunto os limites evidenciados desta maneira.

MICHEL DE CERTEAU A escrita da história

A filologia moderna era visualizada por Benedetto Croce (1866-1952) em Teoria e

storia della storiografia (1915). Ao refletir sobre a crítica documental, ele diferenciou entre

Res Gestae – a história enquanto ação realizada – e Historia Rerum Gestarum: a

historiografia, o estudo das questões históricas, o trabalho crítico em sua concretude. Contrapondo essa operação, relacionada ao conhecimento e aos objetos reais, àquela narração fundada no ideal de captar a essência das coisas desconhecidas, o filósofo italiano desviou-se do modelo que seguia, baseado no idealismo historicista.

À direcionalidade hegeliana, voltou-se Antonio Gramsci (1891-1937) que, em seus “cadernos de cadeia”, interpretaria o materialismo histórico sob a forma de um historicismo:

A afirmação de que super e infra-estruturas formam um bloco histórico — dito em outras palavras, que o ‘conjunto complexo, contraditório e discordante da superestrutura é o reflexo do conjunto das relações sociais’ [...] — foi, de modo geral, interpretada como um abrandamento da doutrina das relações entre infra e superestruturas que Marx tinha deixado no vácuo e que me parece a parte mais falsa, mais fraca e mais perigosa do materialismo histórico, mesmo que Marx não tivesse reduzido a estrutura à economia (LE GOFF, 2003, p. 99).62

Acontecia uma histórica mudança, classificada por François Furet (1986, p. 81-98) como passagem “da história-narrativa à história-problema”.63 O trânsito define-se pela “invenção das fontes”, bem como pela ruptura com a narrativa e o evento singular, de modo a enfrentar a história “acontecimental”, “evenemencial”, ou “historizante”. A sétima linha da ciência histórica, iniciando “a partir dos anos 1930, conhece ao mesmo tempo uma crise e uma moda da história, uma renovação e um alargamento considerável do território do historiador, uma revolução documental” (LE GOFF, 2003, p. 112).

Historiadores envolviam-se em caloros debates, por exemplo, com a sociologia geral de François Simiand ou a com psicanálise freudiana. Os psicanalistas teriam sido pioneiros

62 O primeiro livro escrito em conjunto por Marx e Engels – A ideologia alemã – não dá nenhum fundamento a

qualquer concepção idealista da história. A produção da vida, feita por ações concretas, essa sim, é considerada um fenômeno histórico. Cf. DANTAS JÚNIOR, 2005.

63 A tese de George Lefebvre, Paysans du Nord de la France pendant la Révolution (1924) contribuiu

em abordagens detalhadas do sujeito: “reduzindo a migalhas a confusão dos sonhos, Freud concebia o infinitamente pequeno não apenas como um índice indispensável, uma pista que permite encontrar o sentido geral, mas como um ponto nodal, ‘sobredeterminado’, para o qual convergiam suas motivações e pulsões” (LORIGA, 1998, p. 243).

As diversas compreensões do marxismo,64 a crise do progresso e o incremento das ciências sociais transfiguravam o design dos arquivos que, no lugar das coleções documentais,65 reuniriam seus dados em séries de longos períodos. A história serial tornou-se a locomotiva da primeira geração dos Anais. Reunidos entre os anos de 1920 e 1930 em torno à revista Les Annales: L’Histoire Economique et Sociale, seus principais expoentes, Lucien Febvre e Marc Bloch, combatiam por aproximar a ciência histórica a outras ciências humanas. Febvre advertia sobre a necessidade de questionar o documento em si, alargando seu conceito a tudo aquilo que revelasse a presença dos seres no tempo. Contra a idéia de reconstrução objetiva do passado, também reagiram Lewis Namier e R. H. Tawney na Grã- Bretanha do mesmo período, de maneira que os historiadores franceses não se achavam sozinhos em sua empreitada. Após a morte de Bloch (1944), as renovadas idéias de história se estabeleciam através da publicação periódica Les Annales: Économies, Societés, Civilisations.

Depois do falecimento de Febvre (1956), Fernand Braudel, Robert Mandrou e Marc Ferro notabilizaram a segunda geração dos Anais. Apoiando-se nas técnicas viabilizadas pelo computador, os historiadores passavam a estudar as forças profundas da história, apreensíveis na longa duração. A história total preconizada por Braudel (1958) teve por foco privilegiado a análise das estruturas, valorizando as mudanças econômico-sociais, de longo prazo, e as geo- históricas, de muito longo prazo.

Vários historiadores preocupavam-se com as opiniões das pessoas comuns e suas experiências de mudança social, assim, as fontes não mais se restringiam aos documentos. Apesar de tamanha repaginação da história, a crítica dos documentos ainda se calcava nos métodos aperfeiçoados pelos eruditos. O ponto alto da história quantitativa seria alcançado

64 A importância de Marx é difícil de precisar, residindo, principalmente, na crítica do positivismo e nas

afirmações sobre a história, distintas de suas considerações sobre a sociedade em geral. Associada a essa linha de pensamento, a “história marxista” orienta várias frentes de estudo e ação, mostrando-se tímida na França das décadas de 1920/30. A reiterada e frágil utilização de alguns elementos de Marx enforma a expressão “marxismo vulgar”. Cf. HOBSBAWM, 1982, p. 244-261.

65 Documentos partem da escolha do historiador; a história os transforma em monumentos, apresentando uma

massa de coisas que precisam ser dispostas em conjunto. Monumentos são heranças do passado; perpetuam a recordação; no século XIX, denominaram as grandes coleções de documentos. Cf. FOUCAULT, 1987; LE GOFF, 2003, p. 525-541.

entre os anos de 1950 e 60, quando a observação dos movimentos coletivos sobrepujasse as ações estudadas através da ótica de uma personalidade.

O afastamento da narrativa se transformava num dos algozes da biografia:

coube aos Annales as mais poderosas críticas ao método. E, embora Febvre e Braudel tivessem tomado figuras históricas como marcos referenciais de suas obras, o fizeram no sentido de situar tais vidas no correr da longa duração: Rabelais, Lutero e Felipe II estariam, assim, inelutavelmente submetidos às ‘forças profundas da história’ (MOTTA, p. 105, 2000).

Mesmo que a historiografia tradicional dominasse até o movimento estudantil do maio de 1968, as reformulações proporcionadas pelos Anais fecundariam sua “terceira onda”. A próxima geração ampliava os objetos historiográficos, a ponto de se confundir com a nouvelle

histoire. Entre aqueles que organizaram, divulgavam e tentariam definir a “nova história”,

encontravam-se Jacques Le Goff e Pierre Nora, ambos, destacados estudiosos da memória. A ciência histórica estreitava seus laços com a antropologia social, a biologia, a literatura, a psicanálise, a semiologia e a sociologia, em paralelo ao sucesso do estruturalismo. A história veio tratar do cotidiano, das festas populares, dos fenômenos fronteiriços da cultura etc. Ações de grupos minoritários, descolonização, feminismo e revalorização da oralidade atingiram o que se fortaleceria como história cultural,66 cujas fileiras engrossavam com as “mentalidades” (LE GOFF; NORA, 1995).67

Os historiadores da cultura destacariam a função das representações no mundo social, correspondendo aos vínculos da etnologia com os estudos históricos. Suas novas balizas históricas esbarravam em questões de síntese, métodos, fontes e definição. Le Goff (2001) aventa o esmaecimento das fronteiras entre campos que se opunham, como acontecimentos e estruturas, erudito e popular, história política e não-política, voltando-se para escritas até então dispensadas, literárias ou de arquivos: os “etnotextos”.

A história experimentaria uma “virada epistemológica”, retornando ao acontecimento, à biografia, à narrativa e à política, mas em temáticas ou formas reestruturadas. Distinguiam-se nesses limites: a antropologia histórica;68 a história

66 No campo da história da cultura, são consideradas as relações da historiografia com as histórias da arte, da

ciência e da literatura. Cf. BURKE, 1992, p. 195-236; LE GOFF, 2001, p. 177-202.

67 As mentalités valem-se da psicanálise freudiana; abordando as ideologias, o imaginário social e grupos à

margem do discurso hegemônico, intercomunicam-se com as histórias do imaginário e dos marginais. Mantendo elos com alguns pressupostos da história sócio-econômica, constituem-se como a primeira fase da história cultural. Cf. CHARTIER, 1990.

68 Essa corrente valoriza a antropologia cultural ou simbólica. Também denominada “etno-história”, embora se

manifestasse no século XVIII, vai renascer com Ariès, Certeau, Le Roy, centrando-se no estudo do folclore e das conjunturas menos formuladas da cultura, da história e da política. Cf. BURGUIÈRE, 2001, p. 125-148.

imediata;69 o neomarxismo, com Christopher Heill, Edward Thompson, Eric Hobsbawm, Maurice Godelier e Pierre Vilar. A atenção a setores anteriormente excluídos tece uma rede de intercomunicações, que se verifica na história vista de baixo, na história dos marginais e na micro-história.70

Os historiadores buscariam suas técnicas no público e no privado, na micro-narrativa, nas histórias em flash-back, nos múltiplos pontos de vista. A obra marxista fundamentava uma zona que seria classificada como história social. Conforme Rojas (2000, p. 12):

Depois de Marx e durante todo o século XX, os Annales de História Econômica e

Social, a historiografia socialista britânica, a micro-história italiana recente, e todas as correntes que representaram, no momento de seu surgimento, inovações ou rupturas importantes no campo da historiografia, construíram-se sempre, de modo preciso, sobre a negação da história positivista, sobre a base da crítica e desconstrução a esse tipo de história dos grandes homens, dos grandes acontecimentos históricos, das grandes batalhas, com o qual o estudo da biografia, no seio da historiografia inovadora, em geral, caía um pouco em desuso.

Enriquecia-se o conteúdo da documentação histórica, sendo fonte mais apropriada a que fornecesse dados maciços, como os registros das paróquias. O historiador deveria constituir as próprias fontes, alargando-as para além dos textos tradicionais e, assim, tratar o novo documento, convertido em dado, “como um documento/monumento. De onde a urgência de elaborar uma nova erudição capaz de transferir este documento/monumento do campo da memória para o da ciência histórica” (LE GOFF, 2003, p. 539).

Certeau (2002, p. 78) alerta às implicações particulares que se infiltram na construção textual, pois a história se articula com o lugar onde é produzida. Discorrendo sobre a popularidade atingida pelas narrativas históricas sob diversas formas, como a do romance histórico, Le Goff (2003, p. 16) destaca: “as nações do Terceiro Mundo se preocupam, antes de mais nada, com dotar-se de uma história – o que, de resto, talvez permita tipos de história extremamente diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal.”

As reestruturações que tomavam conta da historiografia e dos estudos literários fertilizariam os vínculos mantidos por esses campos. A convivência entre historiadores e profissionais das letras geraria atitudes dissonantes: ou de revalorar a história, ou de relativizá-la. Carlos Rojas (2000) pensa que o contato aproximado dos historiadores com as biografias lhes proporciona análises mais intensivas dos fatos. Além disso, conduz a

69 Seus componentes são as proximidades temporal e material do tema e do fato narrado. A expansividade dos

media é crucial à mútua implicação do historiador e do jornalista. Cf. LACOUTURE, 2001, p. 215-240.

70 A micro-história nasceu na Itália, ressaltando o intercâmbio com as ciências sociais, a redução das escalas

reconsiderações acerca de uma dialética liberdade/necessidade, na qual se envolveram filósofos, historiadores e filósofos da história. Para ele, o gênero biográfico pode minar perspectivas que, “concebendo o progresso histórico como uma simples curva acumulativa de avanços necessários e inelutáveis, terminam por apagar e eliminar o caráter contraditório, de encruzilhada e, de certa forma, aleatório do próprio devir histórico” (p. 39).

Vigentes no século XIX, duas concepções quanto à estruturação biográfica se mantêm durante a 20ª centúria. Numa delas, o contexto serve meramente como pano de fundo; na outra, é o produtor da necessidade, das possibilidades, inclusive, da realidade do “vulto” biografado. Em qualquer uma de tais perspectivas, a remontagem das trajetórias individuais apresenta distintos resultados, conforme a força, a função histórica ou a relevância das pessoas cujas histórias dão biografias (ROJAS, 2000, p. 30-31).

Se Freud detectou o “mal-estar na civilização”, a biografia ultrapassaria o caráter apologético, admitindo que uma vida seja explicável consoante as vivências históricas do sujeito e construída segundo valores literários. Em tais circunstâncias, o psico-historiador Peter Gay (1989) elabora sua narrativa biográfica sobre o psicanalista judeu-austríaco. Os métodos utilizados pelos biógrafos auxiliam no desvelamento das estremaduras por onde transitam as existências individuais e as malhas impositivas da história.