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5.3 EXPERIÊNCIAS INTERSUBJETIVAS E CONFIGURAÇÕES RELACIONAIS EMERGENTES NO CAPS

D) Algumas características:

5.6.2. A carga horária dos médicos

A auto-regulação do horário médico em relação a seu tempo de permanência no serviço foi considerada histórica no CAPS. Na percepção de vários dos outros profissionais isto se relaciona a uma série de fatores imbricados, tais como: o maior

poder historicamente constituído dos médicos; questões mercadológicas relacionadas à escassez destes profissionais; certa conivência da coordenação; e um descompromisso e

desinteresse dos profissionais médicos.

O tom de indignação pertinente a esta temática predominou entre diversos profissionais. O trecho abaixo ilustra algumas das questões acima colocadas, na percepção de um profissional de outra área:

“Os médicos, hoje, eles continuam tendo redução de carga horária, ta entendendo? Se eu faltar, o meu ponto é cortado, tem uma falta lá, mas o médico, se ele falta não é cortado, ninguém ousa chegar e cortar o ponto do médico (...). Existe todo um zelo, um medo, é como assim: “Não, já tem poucos médicos, então a gente vai ter que se submeter ao que eles estão fazendo porque senão eles vão embora e é pior. Como é que a gente vai ficar?” Alguma coisa dessa natureza, então ainda hoje eles não cumprem a carga horária.” (TNS2)

médicos, que lhes permite regular o ritmo e o valor de seu trabalho (SCHRAIBER, 1995). Contudo, essa auto-regulação que permite aos médicos maior gestão do seu tempo de trabalho se adiciona a outras questões que levam outros trabalhadores a perceber os médicos como descomprometidos com o serviço:

“É tanto que há ausência de compromisso com as reuniões, a ausência de compromisso com o horário, há uma ausência de compromisso com as necessidades do serviço.” (TNS 7)

“Isso em termos de cumprimento de carga horária, isso em termos de cumprimento de uma série de outras atribuições porque eu não tou aqui só pra fazer triagem e nem só pra atendimento. É tudo isso e muito mais. Então eu não posso esperar que o médico faça só aquilo.Então existe uma indignação que não é falada, não é contida, é dita, é expressada e não só por mim, mas historicamente por vários outros profissionais, e fica realmente essa contradição, esse conflito. E falo em especial da equipe médica, dos profissionais médicos, entendeu?” (TNS1)

Já os médicos entrevistados não consideraram sua maior flexibilidade nos horários de trabalho um problema ou privilégio, naturalizando de certo modo esta questão. Surgiram referências a uma insatisfação e saída do serviço caso houvesse uma cobrança do horário de trabalho79, bem como a justificativa de que no CAPS haveria flexibilidade de horário para todos os profissionais e não apenas para os médicos.

Certa recusa dos médicos a qualquer veleidade controlista que inclua maior regulação de sua carga horária transparece como insatisfação caso haja essa cobrança na seguinte transcrição:

“Por exemplo: um posto em que o médico se sente policiado naquele horário, tem entrar naquele, tem que sair naquele horário, e falha daqui, gera... também insatisfação (...) Eu já tive de expor para os chefes que, que vigiavam, rigorosamente, o horário do profissional. Isso me deixa insatisfeito. Até por que as vezes o médico, né? Ele tem uma urgência pra atender, ele chega atrasado! Não é? Então fazia-se um negócio desse, fazia-se o que, gerava uma situação que o cara ficava... infeliz com o serviço. Ele saía. Entendeu? Pressionava aquilo

79

O que realmente aconteceu posteriormente à pesquisa com 2 de 3 psiquiatras, quando o horário começou a ser cobrado.

ali... Pois ele não é plantonista, não tá trabalhando com urgência,

não é paciente de urgência, né? Por que ele não pode atrasar um pouco, sair mais cedo? Esse tipo de coisa gera muita insatisfação pro profissional, principalmente pro médico.” (P1)

Tal insatisfação pode desencadear a saída do profissional do serviço, em um contexto de escassez de médicos que por vezes pode estreitar as possibilidades de negociação do gestor. Assim, o próprio controle corporativo que tenta regular a quantidade de médicos a serem formados e a entrada destes no mercado também representa claramente um mecanismo de preservação da autonomia profissional.

A necessidade de flexibilidade de horário em determinados tipos de trabalho, bem como a alusão de que outros trabalhadores também teriam tal flexibilidade é ilustrada abaixo:

“Acredito que essa questão do horário relacionado ao caso específico, ela é nem flexível com todos os profissionais, com todos e não só com os profissionais da categoria médica, mas ás vezes ela é utilizada como crítica.” (P2)

Por outro lado, a pressão da demanda para atendimento psiquiátrico também foi colocada como justificativa por um médico para acontecer essa maior flexibilização da sua carga horária. Este profissional alegou que maior tempo de permanência do médico no serviço implicaria tanto em maior reforço a um modelo ambulatorial quanto em maior cansaço do médico, por haver uma espécie de ‘captura’ do médico em um processo de trabalho limitado à realização de muitas consultas individuais cuja manutenção se deve a reforços oriundos não apenas dos médicos, mas da própria equipe, da população e da gestão.

Isto parece reiterar, pelo menos entre alguns médicos, que não são apenas eles os responsáveis por manter sua ‘captura’ nesse lugar, ligado a um trabalho intensivo caracterizado pelo de atendimento individual de grande número de pessoas, que, somado aos conflitos interprofissionais gera sofrimento e cansaço.

Por outro lado, a detenção de maior autonomia, que representa um tipo de

capital simbólico, é o que assegura aos médicos a auto-regulação de sua carga horária

em detrimento da construção de um trabalho coletivo e multiprofissional mais integrado e das necessidades institucionais. Além disso, tal flexibilização no horário médico

geralmente também se vincula à tendência destes profissionais manterem múltiplos empregos, visando um padrão salarial compatível com o estipulado por um ideal liberal

de profissão (SCHRAIBER, 1995).

Essa vinculação a múltiplos empregos também representa uma dentre as várias estratégias de preservação de um ideal liberal de autonomia em um contexto de proletarização do trabalho médico (SCHRAIBER, 1993). Ou seja, a flexibilização dos horários médicos, que geralmente ocorre em serviços públicos, mas não no consultório privado, possibilita a vinculação destes profissionais a múltiplos empregos como modo de tentar atingir determinado padrão econômico historicamente construído, além de se associar à preservação de certo ideal liberal de autonomia profissional.

Por outro lado, a grande visibilidade e ênfase dada a essa auto-regulação da

carga horária dos médicos que possibilita a redução de sua permanência no serviço

parece ofuscar a percepção de algumas questões subliminares no CAPS. Os médicos trabalham intensivamente quando estão no CAPS, atendendo sem parar. Em parte como forma de agilizar seu tempo e viabilizar maior auto-regulação de seus horários; em parte pela grande demanda; e em parte pela própria organização do serviço em relação ao processo de trabalho médico, baseado na produção de um grande número de atendimentos.

Se, por um lado, a modificação dessa organização do processo de trabalho médico depende, pelo menos em parte, dos próprios, por outro, como já dissemos, diversos atores estão implicados com o reforço e manutenção dessa forma de organização. Esse trabalho intensivo dos médicos observado no CAPS não corresponde ao de alguns dos demais profissionais, sobretudo no que diz respeito aos atendimentos individuais. Vários destes profissionais lidam de outras formas com a gestão do tempo no decorrer de sua permanência no CAPS, o que lhes permite ter tempo livre para espairecer e compartilhar momentos de convivência com os colegas.

Embora os médicos tenham autonomia para auto-regular seus horários de trabalho, pareceu-nos que os mesmos têm menor controle que outros profissionais sobre a quantidade de seus agendamentos, como ilustram as seguintes falas:

“Mas assim, a maioria dos CAPS de que eu tenho conhecimento, você tem em média dezesseis a vinte pacientes. E isso não é... pense num psicólogo se ele aceita atender dez pessoas. Geralmente os psicólogos eles atende quatro, cinco, no máximo, numa tarde.” (P3)

“Deixa eu falar uma coisa de certa forma defendendo os médicos,

mas existe u-uma coisa assim, que eles são obrigados a atender um tanto de pessoas, que é um número muuito grande.” (TNS 4)

O fato dos demais profissionais cumprirem suas cargas horárias gera diferentes formas na gestão do tempo de trabalho entre eles e os médicos. Assim, se por um lado os médicos auto-regulam seu tempo de permanência no CAPS abertamente, por outro, eles detém menor controle de seu processo de trabalho no que diz respeito ao número de agendamentos, pois há sempre pressão para ‘atender mais um’. Em contrapartida, os outros profissionais detêm maior autonomia sobre o número de atendimentos específicos individuais, e estabelecem também outras estratégias de autonomia na gestão de seu tempo de trabalho embora permaneçam no CAPS durante o expediente que lhes é estipulado.

Outra interpretação possível e não excludente da questão em foco, relacionada às diferentes formas de gestão do tempo de trabalho entre médicos e demais profissionais poderia relacionar-se a diferentes estratégias de fuga da tarefa primária. De certo modo isto apareceu subliminarmente ao observarmos que alguns profissionais atendem “no

máximo 3 triagens por turno” e, excepcionalmente mais um atendimento individual.

Embora este número de atendimentos tenha sido justificado sob a alegação de qualificar a escuta e apurar as avaliações, diversos comentários de corredor deram a entender que alguns desses atendimentos não ocupariam um turno inteiro, e que alguns profissionais passariam o restante do expediente trancafiados em suas salas. Essa questão gera conflitos velados entre os profissionais, visto haver uma combinação de ajudar os colegas no acolhimento e no ‘atendimento de sala’, geralmente também sobrecarregado, à medida que os profissionais terminam outras atividades e não têm o que fazer.

Parece haver assim, diferentes estratégias de fuga da tarefa primária, ora mais, ora menos explícitas, conforme as posições ocupadas no CAPS. Assim, a auto- regulação do horário médico parece relacionar-se a uma série de questões, tais como: a detenção de maior capital simbólico; a necessidade de transitar por múltiplos empregos para fazer jus a determinados ideais econômicos; a estratégia de preservação de determinado ideal de autonomia; e a estratégia de fuga da tarefa primária, como forma de lidar com o cansaço e sofrimento.

Segundo KÄES (1991 apud ONOCKO CAMPOS, 2004), essa fuga da tarefa

primária representa uma estratégia de proteção de um sofrimento institucional

relacionado a processos de identificação entre trabalhadores e usuários que colocam em risco a auto-estima pessoal. Os trabalhadores e a própria instituição acabam criando mecanismos que protegem os trabalhadores de suas próprias tarefas. Estas estratégias são mais intensas em contextos onde o trabalho é percebido como pouco valorizado ou não valendo a pena.

Em síntese, há em curso no CAPS diversas estratégias para lidar com diferentes margens de autonomia interprofissional, das quais a gestão do tempo de trabalho e o número de atendimentos estipulados por categoria profissional fazem parte, gerando conflitos interprofissionais. Daremos continuidade a esta discussão ao longo de outros textos, passando a apresentar agora a integração dos médicos na equipe.