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OBJETO DE TRABALHO

2.3 EXPERIÊNCIA E INTERSUBJETIVIDADE NO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE

2.3.1 Experiência e intersubjetividade

Para Husserl, “o conhecimento natural começa pela experiência e permanece na

experiência” (HUSSERL, 2006: 33). Compreendida como modo de estar no mundo, a

experiência não é passível de ser enquadrada na lógica operada pelo conhecimento científico.

Segundo Husserl, a produção de conhecimento que se expressa em teorias e conceitos, não é fruto da abstração singular, mas representa um conjunto de operações reflexivas mediante as quais os elementos singulares são reunidos em uma classe para constituir um todo de relações homogêneas (HUSSERL, 2006). Esse processo envolve o movimento da consciência como intencionalidade, como consciência de algo, em uma relação de significação onde a separação ente sujeito e objeto é apenas um artifício

cognitivo.

Distinguindo experiência de conhecimento, a primeira não se forja em uma atitude reflexiva que dicotomiza a relação sujeito-objeto, havendo, portanto, um tipo de experiência pré-reflexiva ou pré-objetiva onde o mundo se apresenta como esfera de ação ou prática, antes de se apresentar como esfera de conhecimento. Os fins de uma ação não se destacam enquanto formulações abstratas para posteriormente pô-las em prática, mas integram a própria situação de ação, que se desenvolve no mundo da vida cotidiana (lebenswelt) (ALVES et al., 1999).

Este caráter fluido, multifacetado, indeterminado de experiência escapa e não pode se reduzir a um sistema ordenado de idéias, símbolos ou representações, não bastando decifrar códigos operantes subjacentes às práticas, nem explicar as mesmas pelas suas representações expressas. A experiência para além do conhecimento implica em um modo de estar no mundo e na idéia de ser-em-situação, considerando, na perspectiva husserliana, a intersubjetividade como condição para a objetividade (DUROZOI & ROUSSEL, 1996).

Torna-se possível articular assim, uma concepção de experiência vinculada ao seu contexto social, já que a experiência presume, desde sempre, ser-com-outros (ALVES et al., 1999). Essa perspectiva visa compreender como a experiência das pessoas pode se articular a outras dimensões do mundo da vida cotidiana, que é o mundo pré-dado que se dá constantemente como realidade, constituindo o mundo da práxis, onde o conhecimento cotidiano está atrelado a interesses práticos.

Este mundo constitui o substrato comum no qual agimos e compreendemos nossas ações e as ações dos outros, predominando o que Husserl denomina de atitude

natural. Esta atitude representa a crença na existência do mundo enquanto realidade

exterior, composta de objetos circunscritos e ordenados, dotados de propriedades que independem das vivências intencionais dos indivíduos e, que podem oferecer resistência a seus projetos e ações. A atitude natural tem também como pressuposto a existência dos outros indivíduos, com perspectivas recíprocas e intercambiáveis entre si.

A atitude natural é aquela com a qual nos dirigimos às coisas que nos são dadas, distribuídas aleatoriamente no espaço, que estão “à disposição”, independentemente de nos ocuparmos delas ou não. Além da atitude natural, também temos consciência de um mundo espaço-temporalmente infinito que encontramos imediatamente, inscrevendo

assim, toda experiência atual em um horizonte de realidade indeterminada, de que se tem obscuramente consciência. Tal horizonte jamais deixa de estar aí, embora nunca seja determinado em sua plenitude.

A crítica husserliana não se dirige ao modo como lidamos com o mundo, mas à reflexão que estabelecemos acerca dele, mediante a elaboração de enunciados a seu respeito que ditam, no campo prático, regras de conduta objetiva. Essa crítica trata assim, da atividade de conhecimento que, de um modo geral, tenta compreender e expressar nossas experiências, mas acaba por enquadrá-las em juízos e formulações aprioristicos.

O pensamento husserliano destaca que, independente desses juízos, o objeto julgado e o mundo circundante em geral, já estão de alguma maneira contidos na experiência originária, pré-reflexiva ou pré-objetiva, onde, como já dissemos, o mundo se apresenta como esfera de ação ou de prática antes de se apresentar como esfera de conhecimento.

Apesar de Husserl, sob a influência de Heiddeger, ter introduzido a noção de

intersubjetividade na ultima fase de sua filosofia, concebendo a mesma como inerente à

experiência, Gadamer tece críticas a Husserl, pelo fato da subjetividade transcendental formar a base constante de sua proposta de fenomenologia (GADAMER (2007). GADAMER (2007) questiona então, a subjetividade transcendental de Husserl por fundamentar-se em uma empatia transcendental que considera artificial, na qual o outro seria visado primeiramente como uma coisa percebida que, somente após um segundo ato de renivelamento da percepção adquiriria animação.

Assim, apesar da fenomenologia defender o retorno às coisas mesmas, Husserl, por motivos epistemológicos, optou por movimentar-se sob o signo de uma desconstrução de encobrimentos dogmáticos, e não sob o signo da dação primária das coisas. Daí ele ter insistido no fato de o outro só poder ser dado inicialmente como coisa percebida e não na vitalidade, na dação corporal.

Para Gadamer, o fato de se dizer ‘o outro’ altera a perspectiva, inserindo-se em uma relação recíproca na constituição do eu e tu. É nessa perspectiva que apresentamos o conceito de intersubjetividade em GADAMER (2007), que, em uma reconstrução histórico-conceitual do termo, situa “por trás do conceito de intersubjetividade, o

Partindo do hypokeimenon do pensamento aristotélico, como sendo “aquilo que

se encontra inalteravelmente na base de todas as transformações”, GADAMER

(2007:11) retoma o conceito grego estabelecido em relação à natureza, daquilo que distingue a coisa mesma, ligado ao que faz tudo acontecer de um ou de outro modo, lembrando que a tradução latina medieval do termo grego original para substanctia e

subiectum manteve seu significado original.

É então na modernidade que os conceitos de sujeito e de subjetividade se afastam dessa orientação fundamental, a partir de uma passagem inicialmente operada por Kant e posteriormente por Locke e Descartes, deslocando a palavra subiectum e o conceito de subjetividade em direção a uma nova conotação.

Com Kant essa passagem da substância para o sujeito reconhece a função da subjetividade como conceito que empresta unidade a todas as nossas representações.

Sujeito e subjetividade passaram a referir-se a uma auto-relação, a uma reflexividade e

egoidade não presentes na concepção grega de hypokeimenon, da qual o termo sujeito foi a sua tradução.

A partir daí, o conceito de subjetividade se desenvolveu em paralelo a uma estrutura da reflexividade que se tornou central para a filosofia. Assim, o termo latino

reflexio, que originariamente representava o caráter distintivo da luz, foi associado a

uma auto-referencialidade e mesmidade que advém enquanto auto-movimento, e que constituía para os gregos o conceito de alma ou psyche.

Contudo, para o pensamento grego, a reflexividade era sempre um fenômeno secundário do pensamento, pois o pensamento seria sempre “o inicio do pensamento de

algo e somente então o pensamento do que se pensa” (GADAMER, 2007:13). Já no

caso da filosofia moderna, a reflexividade torna-se central, vinculando-se à questão da autoconsciência. Para Gadamer sua relevância se relaciona ao primado da certeza ante a verdade, fundamentando-se por meio do método, compreendido desde Descartes como o caminho da auto-certificação na ciência moderna.

Somente no século XIX Brentano retoma Aristóteles combatendo esse primado da autoconsciência. Posteriormente, pensadores como Nietzcshe, Marx e Freud também compartilharam o fato de não poder se aceitar de boa-fé o que é dado pela autoconsciência como um dado em si. As críticas ao conceito de subjetividade no idealismo remontam a Kierkgaard, que inspirou Buber entre outros, para quem a

relação-tu faz contraponto ao kantismo contemporâneo e ao primado do ego transcendental, do qual, como já apontamos anteriormente, Husserl não conseguiu se subtrair durante muito tempo.

GADAMER (2007) lembra que no inicio de século a presença do idealismo alemão explicitado nos termos “eu” e “tu” já tinha sido questionado por Wittgestein, pela substancialização mistificadora que se esconde em tal modo de falar, destruindo o acesso aos problemas reais. Essa foi também a direção tomada por Heidegger ao iniciar sua ontologia fundamentando-se em uma critica à fenomenologia husserliana.

Segundo GADAMER (2007), Heidegger assumiu a proposta de limitar o pensamento da subjetividade e descortinar o preconceito ontológico da fenomenologia e da pesquisa filosófica que se encontra por trás dela. Retirou assim, a validade do conceito de autoconsciência e de sua função basilar para o idealismo transcendental ao descobrir nesse conceito o efeito secreto tardio da ontologia grega. Assim, Heidegger tomou a questão da finitude por construir seu pensamento em um tempo em que todas as tradições estavam se dissolvendo, não subsistindo mais nenhum elemento comum inconteste e nenhuma outra solidariedade além da situação limite do morrer e da morte, que atinge a todos os homens.

É nesse contraponto com a finitude que Heidegger elabora seu pensamento, tomando como ponto de partida a questão do ser, que só pode ser formulada para além de toda a metafísica, de modo a excluir o primado da subjetividade. A inflexão de Heidegger opera assim uma substituição do conceito de subjetividade pelo conceito de cuidado.

A questão da intersubjetividade em Heidegger cabe na consideração de que o

ser-ai é tão originariamente ser-com quanto ser-aí. Assim Heidegger fala em cuidado

(Sorge) e preocupação (Fürsorge). No entanto, esta preocupação assume uma perspectiva de ‘preocupação liberadora’, que indica que a verdadeira preocupação não se trata de cuidar do outro, mas muito mais um liberar o outro para o seu próprio ser-si- mesmo – em contraposição a um cuidado com o outro que lhe satisfizesse todas as suas necessidades e que lhe retirasse o cuidado próprio do ser-ai.

Gadamer considera distanciar-se de Heidegger ao propor que a compreensão do outro possui uma significação fundamental. Para Gadamer, Heidegger tinha desenvolvido a questão do outro na preparação da questão do ser, de maneira que o

outro em Heidegger, só podia se mostrar em sua própria existência como uma limitação. Assim, Gadamer se lança na questão que mobiliza a experimentação do próprio caráter limitado a partir da réplica do outro, alcançando um âmbito para além das próprias possibilidades, no interior de um processo dialógico, comunicativo, hermenêutico (GADAMER, 2007).

Essa direção hermenêutica, apontada por Heidegger que posteriormente introduziu a expressão ‘hermenêutica da facticidade’, foi uma maneira de se contrapor ao seu próprio modo de colocação do problema ao idealismo da consciência. “A

facticidade é manifestamente o inaclarável que resiste a toda tentativa de alcançar transparência e compreensão” (GADAMER, 2007: 18). Em toda compreensão de

sentido permanece algo impassível de ser esclarecido, que sempre precisa se retrojetar ao que motiva a própria compreensão. Com isto, altera-se todo o conceito de interpretação e ele se aproxima da radicalidade da sentença de Nietzsche: “Não

conheço nenhum fenômeno moral. Só conheço uma interpretação moral dos fenômenos” (GADAMER, 2007:15-16).

Essa é a direção assumida por Gadamer em seus trabalhos, orientando-se pela interpretação também como base de contestação do ideal da auto transparência da subjetividade. Desse modo, para Gadamer (2007:18-19): “Toda compreensão de

sentido se encontrará sempre limitada. Mas também uma compreensão de sentido ilimitada encurtaria o sentido da compreensão”. O pensamento de Gadamer vincula-se

ao tema da linguagem e ao primado do diálogo, pois para ele, “quem pensa a

‘linguagem’ já sempre se movimenta em um para alem da subjetividade” (GADAMER,

2007: 27).

É nessa perspectiva acima exposta que pretendemos compreender as experiências intersubjetivas de trabalho enfocadas nesta investigação.

3 METODOLOGIA