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OBJETO DE TRABALHO

2.1.4 O lugar do CAPS em redes territoriais de saúde

O que é um lugar, senão uma possibilidade? Um lugar não está necessariamente dado, mas pode ser fugaz, mutável, oscilante, fluido. Ao abordar o lugar do CAPS em redes territoriais de saúde não o fazemos de maneira pré-determinada, assumindo rigidamente um determinado lugar. Pelo contrário, acreditamos que um lugar é uma construção, um devir que se espacializa em territórios físicos, sociais, existenciais e simbólicos. Daí, para pensar o lugar do CAPS, seria necessário percorrer os lugares que ele já ocupou situando-os historicamente, de maneira a esboçar os que porventura se pretende que ele venha a ocupar. E pensar em rede de saúde é pensar em uma trama que entrelaça fluxos que sustentam novas possibilidades de cuidado e potência de vida.

Então, retomando o lugar oficial inicialmente instituído para o CAPS, lembramos da portaria 224GM/1992, que incorporou os CAPS/NAPS junto a uma série de outros dispositivos na política de Saúde Mental. Proposto como um dispositivo relevante entre outros, o CAPS passou a ocupar um lugar estratégico caracterizado por

uma centralidade – no sentido de atrair diversos fluxos e assumir atribuições25 que, em uma proposta de atuação em rede, talvez devessem ser compartilhadas com outros dispositivos.

Lembramos, entretanto, que essa concepção do CAPS como dispositivo estratégico da Reforma (BRASIL, 2004) centralizando diversas atribuições e responsabilidades surgiu em um contexto histórico no qual eram inexistentes ou incipientes outros dispositivos e serviços de saúde territoriais na maioria dos municípios. Ante o vazio inicialmente existente, visto a Reforma Psiquiátrica ter sido simultânea à construção do SUS, talvez fosse de se esperar que os dispositivos emergentes passassem a assumir incumbências bastante amplas, como é o caso dos CAPS.

Contudo, outros dispositivos ainda precisam ser contemplados para garantir avanços na transversalização da Saúde mental. Assim, entre os desafios atuais continua a necessidade de manter a expansão de CAPS e, simultaneamente, criar novas estratégias e ações entrelaçando fios e fluxos na configuração de redes de saúde que possivelmente irão deslocar os CAPS de seu lugar inicialmente ocupado.

Nesse deslocamento cabe problematizar o próprio conceito de CAPS ante as mudanças macrossociais contemporâneas. Em sua análise documental, TRALDI (2006) destaca que os CAPS não escapam às mesmas contradições de caráter mais geral, que atravessam diversas esferas de regulação social e de reprodução da vida. Sob a aparente superfície discursiva, os CAPS operam os mesmos mecanismos de manutenção dos modos de reprodução da vida que favorecem e dão sustentação ao capitalismo, assim como permitem o surgimento de artifícios que tentam ocultar esses processos.

Embora a crítica desta autora seja pertinente, parece evidente que o CAPS enquanto instituição social não escapa à lógica predominante na sociedade, nem às

25 O CAPS deve: atender em regime de atenção diária; gerenciar projetos terapêuticos oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado; promover a inserção social dos usuários através de ações intersetoriais; organizar a rede de serviços de saúde mental de seu território; dar suporte e supervisionar a atenção à saúde mental na rede básica, PSF, PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde); regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental da sua área; coordenar junto com o gestor local as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território; manter atualizada a lista dos pacientes de sua região que utilizam medicamentos para a saúde mental (BRASIL, 2004: 13). Além disso, o sucesso do acolhimento da crise é essencial para o cumprimento dos objetivos de um CAPS, que é de atender aos transtornos psíquicos graves e evitar as internações” (BRASIL, 2004: 17). Maiores detalhes sobre a composição da equipe dos CAPS constam no ANEXO I.

contradições nela vigentes. Neste sentido, não surpreende que alguns estudos sobre práticas e processos de trabalho nos CAPS encontrem contradições de outras ordens, como a reprodução de uma lógica asilar que pretensamente deveria estar superada, associada à reprodução de um modelo ambulatorial médico-centrado que se contrapõe a perspectivas psicossociais de cuidado (OLIVEIRA & ALESSI, 2005a, 2005b; ALVERGA & DIMENSTEIN, 2006; BICHAFF, 2006; SILVEIRA et al., 2007; LEÃO & BARROS, 2008; YASUI & COSTA-ROSA, 2008).

Contudo, a superação de determinados modelos de atenção não se garante apenas a partir de mudanças espaciais vinculadas ao local onde se efetua o cuidado (LOBOSQUE, 1997), sendo necessário problematizar os conflitos e contradições que expressam a internalização de manicômios mentais (PELBART, 1991) que criam novos

desejos de manicômio vigentes tanto nos trabalhadores de saúde mental quanto na

sociedade em geral (ALVERGA & DIMENSTEIN, 2006). Neste sentido, os CAPS representam uma possibilidade importante (dentre outras) para a superação dos manicômios.

Embora haja dificuldades na instituição de práticas orientadas por perspectivas psicossociais em muitos CAPS, cabe reiterar que mudanças de concepções e práticas são graduais. Cabe, no entanto, tentar reforçar determinadas tendências, criando vetores a partir dos quais as contradições e ambivalências possam ser utilizadas como ponto de partida para o surgimento de uma práxis mais próxima do ideário que tenta inspirá-la.

Essa processualidade dialética têm sido constatada por estudos sobre os CAPS que apontam mudanças graduais nas concepções e vivências dos trabalhadores (GARCIA & JORGE, 2006; FIGUEIREDO, 2007; SCHNEIDER et al., 2007). Por outro lado, diversas questões externas aos CAPS, relacionadas à organização da rede local de saúde na qual os CAPS estão inseridos, contribuem para reforçar um modelo ambulatorial que se pretende superar.

Para ZAMBENEDETTI & PERRONE (2008), os fluxos frágeis e a fragmentação do trabalho dentro da dentro da rede de saúde também podem afetar o cuidado em saúde mental, gerando descontinuidade dos tratamentos e desresponsabilização profissional. Isto se reflete na adequação dos serviços substitutivos ao SUS e nos efeitos ambíguos do modo como as estratégias de construção e articulação da rede são efetivadas.

A sobrecarga de demanda e a cobertura de grandes áreas de abrangência populacional também afetam o lugar do CAPS no território e na rede de saúde, dificultando, por vezes, a possibilidades de efetuar um cuidado mais singular (PONTES

et al., 1995; JORGE, 2007; SILVEIRA et al., 2007). Além disso, questões gerais,

relacionadas às condições de trabalho e ao tipo de vínculo empregatício ao qual os trabalhadores estão submetidos também interferem nestes dispositivos, afetando o vínculo e a capacidade de responsabilização dos trabalhadores de saúde mental (MILHOMEM, 2007).

Embora as questões acima apontadas sejam importantes na configuração dos modelos de atenção emergentes nos CAPS, podendo condicionar e/ou determinar os lugares do CAPS em redes territoriais de saúde, não pretendermos esgotar aqui essa discussão. Apenas tentamos apontar para a complexidade do panorama que situa os CAPS como dispositivos instigados a lidar com a transição entre modelos de atenção por vezes antagônicos, de maneira a elaborar novas tendências e sínteses para os discursos que neles coexistem e os atravessam.

Assim, muitos são os lugares possíveis para os CAPS, dentre estes, o de uma perspectiva de atuação rizomática, intersticial, descentrada e plural, capilarizando tecnologias e práticas ativadoras e ativadas por muitos outros dispositivos articulados em uma rede de saúde constituída por sujeitos dinamizadores que aceitem novos riscos e desafios na constituição de uma estratégia de atenção psicossocial.

Apresentamos a seguir, uma breve leitura crítica que reconstitui o processo de Reforma Psiquiátrica em Fortaleza.