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OBJETO DE TRABALHO

2.2.1 Algumas concepções sobre o trabalho em saúde

Segundo a tradição marxista, o trabalho representa uma atividade humana voltada para a atenção de necessidades onde, ao transformar a natureza, o ser humano também se transforma (BOTTOMORE, 1988). Fundamentados em tal referencial, diversos autores brasileiros abordaram o trabalho em saúde aportando contribuições importantes e pioneiras no campo da Saúde Coletiva, como os estudos sobre a prática médica de DONNANGELO (1975) e as análises sobre o processo de trabalho em saúde de MENDES-GONÇALVES (1994).

sentido teleológico, abrangendo um território de práticas e saberes operantes36 que fundamentam um agir produtivo baseado em tecnologias37 materiais e não materiais, visando o atendimento de necessidades sociais. Por ser um trabalho da esfera da produção não material, para PIRES (2000: 53) o produto do trabalho em saúde é indissociável do processo que o produz; “é a própria realização da atividade e se

completa no ato de sua realização.”

PIRES (2000) destaca uma dimensão que MERHY (2002) denomina de trabalho

vivo em ato, relacionada ao trabalho no momento em que é executado. Contudo ao

considerar que o trabalho em saúde orienta-se teleologicamente para a produção de atos de cuidado, MERHY (2002) também postula que ele conjuga tanto o trabalho vivo em

ato quanto o trabalho morto - que já aconteceu e pode estar materializado em um

determinado produto com valor de uso e/ou de troca. Para MERHY (2002) estes diferentes tipos de trabalho operam a partir de tecnologias38 distintas. O trabalho vivo

em ato utiliza tecnologias leves, enquanto o trabalho morto se operacionaliza,

sobretudo, a partir de tecnologias duras.

Ao retomar a discussão de MENDES-GONÇALVES (1994) sobre o atendimento a necessidades sociais como finalidade do trabalho em saúde, CAMPOS (2000a) acrescenta que os resultados deste trabalho também se expressam através de

36 A categoria saber operante permite apreender o agente do trabalho como mediador que estabelece relações entre os conhecimentos científicos, os saberes e as dimensões ético-políticas de ambos, e, na prática cotidiana do trabalho, utiliza o saber operante mediando a conexão entre o objeto, os instrumentos e a atividade do trabalho (Mendes Gonçalves, 1994). O trabalho em saúde constitui-se tendo entre seus instrumentos de trabalho diversos saberes, que são campos de inscrição de ciências e de outros conhecimentos.

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Mendes Gonçalves (1994) se embasa na etimologia do termo tecnologia para referir-se aos nexos técnicos estabelecidos no interior do processo de trabalho. Para ele a noção de tecnologia não se restringe ao conjunto de instrumentos materiais do trabalho, concebendo a tecnologia como uma modalidade de organização do trabalho e também como um saber.

38 Tributário ao pensamento de MENDES GONÇALVES (1994), que, como já dissemos, utiliza a concepção de tecnologia tanto para elementos materiais quanto não materiais do trabalho em saúde, MERHY (1997) propõe uma classificação das tecnologias segundo critérios de materialidade/imaterialidade e grau de estruturação das mesmas, dividindo as mesmas em: 1) Tecnologias leves - constituídas por ‘relações intercessoras’, efetivadas atraves do encontro, do diálogo, do acolhimento, representam o campo comum que todos os trabalhadores em saude devem dominar. Geralmente elas possibilitam um processo de trabalho com maiores graus de liberdade em termos de sua utilização do que as tecnologias leve-duras e as duras; 2) Tecnologias leve-duras - abrangem os saberes técnicos estruturados; 3) Tecnologias duras – constituídas por máquinas e instrumentos materiais, predominando nestas a utilização de uma lógica instrumental.

produtos com valor de uso39, efetivando-se a partir de instituições com um duplo objetivo: produzir valor de uso e realizar seus trabalhadores. Partindo da idéia já presente em Marx de que o trabalho transforma não apenas seu objeto, mas também o agente que o produz, CAMPOS (2000a) tenta resgatar uma idéia de positividade sobre o trabalho em saúde enfatizando a necessidade de valorizar teleologicamente a subjetividade dos trabalhadores. Assim, para ele, o trabalho em saúde apresenta uma dupla finalidade de produzir saúde e produzir sujeitos.

CAMPOS (2000a: 53) também se inspira em vertentes contemporâneas que postulam a importância da imprevisibilidade e incerteza como componentes de certos tipos de trabalho. Propõe então, que o trabalho em saúde deve constituir-se como um

Trabalho Criativo de Valores de Uso, já que a inventividade e a criatividade não se

restringem às ciências e às artes, devendo ser exercitadas em áreas em que o trabalho humano não possa ser substituível inteiramente por máquinas (CAMPOS, 2000a).

A incerteza e imprevisibilidade impossibilitam uma padronização e pré- determinação completa do trabalho em saúde assumida também por PEDUZZI (2003). Para ela, o trabalho em saúde é reflexivo, seguindo tendências contemporâneas de mudanças no mundo do trabalho, com maior intelectualização e incorporação da microeletrônica e da informática em diversos tipos de trabalho em geral.

As concepções acima apresentadas a respeito do trabalho em saúde confluem com as reflexões de autores que vem estudando o trabalho em saúde mental. Referenciados em vertentes ergológicas de origem francesa, HONORATO & PINHEIRO (2008) ressaltam a necessidade de flexibilidade e renormalização contínua do trabalho em saúde mental. Nessa linha, inspirada em Nourudine, ANDRADE (2007) também postula uma perspectiva de positividade do trabalho em saúde mental e propõe tomar o risco como potencialidade.

A incerteza e imprevisibilidade implicam na necessidade do trabalhador “arriscar-se”, produzindo rupturas nos limites grupais, organizacionais e institucionais, estimulando um ato de criatividade que não deve ser necessariamente dominado. Assumir o risco permitiria criar, inventar, produzir e agir a partir de novos saberes e

39 CAMPOS (2000a) resgata a concepção marxista de valor de uso aplicada às mercadorias aplicando-a também aos serviços. O `valor` tem a ver com uma relação que não é técnica, mas social. As relações de valor constituem a forma particular assumida pelas relações sociais capitalistas. Segundo Marx, no capitalismo os produtos apresentam um duplo valor: o valor de uso e o valor de troca. O valor de uso se relaciona com a utilidade de um produto e permite sua realização, ou seja, seu consumo. O valor de troca transforma o produto em `mercadoria`, passível de circular no mercado (BOTTOMORE, 1988).

fazeres, incorporando o inusitado como inerente à atenção em saúde mental (ANDRADE, 2007).

Incorporar esse risco requer um trabalhador implicado enquanto sujeito de uma práxis que conduz ao resgate da dimensão política do trabalho em saúde mental (HONORATO & PINHEIRO, 2008). Dialogando com autores como Hannah Arendt40 e Norberto Bobbio, HONORATO & PINHEIRO (2008) retomam um conceito de política que remete à multiplicidade, à diversidade, àquilo que emerge da convivência dos homens entre si em espaços públicos onde o discurso produz ação e onde ocorre a expressão das opiniões, discussão, julgamento e avaliação, conflitos, embates, negociações, argumentações.

Baseando-se em Gramsci, estes autores também assinalam que tais debates engendrados na sociedade civil geram ideologia, poder e transformação, o que atestaria, para eles, a legitimidade da tarefa política da Reforma Psiquiátrica brasileira. O trabalho em saúde mental como prática política representaria uma práxis que tem a transformação social como objetivo.

Essa dimensão política do trabalho em saúde também é reportada por FRANCO & MERHY (2007), ao considerar que este é um trabalho coletivo que deve ser construído a partir de um processo pactuado. Nessa pactuação emergem disputas, consensos, conflitos, mediações e negociações a partir das quais se estabelecem determinadas tendências na produção do cuidado.

Parece-nos assim, que ao resgatar a dimensão política do trabalho em Saúde mental, HONORATO & PINHEIRO (2008) referendam a noção dos trabalhadores como operadores (ROTTELLI et al., 1990), ou seja, sujeitos dinamizadores norteados por uma ética da alteridade que possibilite avanços na constituição de estratégias psicossociais de atenção. Essa dimensão ético-política do trabalho em saúde também é

40 Cabe, porém, lembrar das criticas de Habermas a Hannah Arendt, por esta aderir a um conceito aristotélico de política que no fundo teria implicações conservadoras. Na polis grega a vita activa (vida ativa) relacionada às atividades humanas se dividiam em: labor – atividades cotidianas de sobrevivência deixadas aos escravos; trabalho – atividades artesanais e criativas deixadas ao povo; e a ação política ou práxis – discussões e argumentações realizadas na ágora, espaço publico, e reservada apenas aos cidadãos, pois a política só poderia ser exercida entre iguais apenas os cidadãos participavam da política (ARENDT, 1989). Habermas (FREITAG & ROUANET, 1993) critica o caráter elitista da noção de política em Arendt por ela defender que apenas os que tiverem interesses em temas públicos devem participar da política. Para Habermas, todos os integrantes da sociedade devem participar do discurso, pois todo poder efetivo precisaria, em principio, fundamentar-se em um consenso universal. Habermas também critica a redução do político à esfera comunicativa em Arendt, excluindo a ação estratégica, que não visa ao entendimento mutuo, mas à competição de poder.

postulada por outros autores (LOPES et al., 2007; GOMES et al., 2007; BONALDINI

et al., 2007).

LOPES et al. (2007) articulam a dimensão política do trabalho a uma

responsabilização coletiva dos trabalhadores que deve ser pautada por uma ética da

alteridade e do cuidado. Esta responsabilização implica em um coletivo que assume a responsabilidade pelos atos de qualquer um de seus membros, em um processo de caminhar juntos, pois não há como cuidar de si sem cuidar dos outros (GOMES et al., 2007:33).

BONALDINI et al. (2007) resgata a importância de um saber fazer comum pautado por contínuas tomadas de decisões individuais e coletivas, onde todos os atores envolvidos devem responsabilizar-se coletivamente pelo cuidado em saúde como valor ético e político defendido e exercido cotidianamente.

Lidar com a alteridade, essencial para o campo da Saúde Mental, também deveria incluir posturas tolerantes em relação à alteridade vigente entre os próprios trabalhadores, sob risco de incorrer no obscurecimento de certas práticas perpetradas por trabalhadores porta-vozes de um discurso militante da Reforma Psiquiátrica, que podem levar à exclusão do processo de trabalhadores não militantes (NARDI & RAMMINGER, 2007).

Um segundo risco nessa mesma perspectiva, que nos parece relacionada a concepções demasiado polares da relação instituído/instituinte, seria, conforme assinalado por CECILIO (2007), certa naturalização da idéia de que as mudanças nos modos de organização do cuidado seriam decorrência automática do contato dos trabalhadores de saúde com determinados conceitos produzidos e introduzidos por um "pensamento crítico".

Segundo CECILIO (2007: 347) “muito longe de ser uma 'caixa vazia', cada

trabalhador e cada usuário tem idéias, valores e concepções acerca de saúde, do trabalho em saúde e de como ele deveria ser realizado”. Este autor nos alerta assim,

para certa incoerência entre uma pretensão de protagonismo dos trabalhadores e uma possível expectativa de adesão automática dos mesmos a determinados projetos, mesmo que estes possam ser justos, necessários, democráticos e participativos no julgamento de quem os formula.

em nome de projetos justos e necessários, favoreça a idéia de um trabalhador

funcional/moral, do qual se admitiria expropriar suas margens de liberdade. O trabalhador moral seria então, um ator “desistorizado e desterritorializado (...) que pensa, formula e joga nos espaços que os dirigentes definem, sempre dentro de uma moldura definida pelos objetivos organizacionais” espécie de “trabalhador ideal(izado) perscrutado pelo grande olho (o "coletivo") que tudo vê, que tudo avalia, que tudo controla, que tudo sabe, em nome de uma necessária "publicização" das relações organizacionais” (CECILIO, 2007: 345-346).

Entre os problemas dessa concepção funcional/moral consta a impossibilidade de qualquer arranjo institucional, “por mais público e coletivo que seja”, poder

“capturar ou circunscrever a complexidade das relações institucionais”, já que algo

sempre “transborda desses espaços e se realiza nos territórios da micropolítica

organizacional”. ( CECILIO,2007: 346).

Caberia assim, contemporizar um discurso militante que por vezes pode tornar- se intolerante com trabalhadores portadores de concepções e práticas que pressupostamente deveriam ser superadas. Além de ser necessária uma distinção entre a concepção que está sendo veiculada daquele que a encarna, evitando a personalização de posturas ‘instituídas/instituintes’. Também é importante lembrar “(...) que somos, em

certas situações, a partir de certos recortes, sujeitos de saberes e das ações que nos permitem agir protagonizando processos novos como força de mudança de mudanças. Mas, ao mesmo tempo, sob outros recortes e sentidos, somos reprodutores de situações dadas. Ou melhor, mesmo protagonizando certas mudanças, muito conservamos”

(CECILIO, 2007: 349). Por outro lado, tampouco "há um sujeito completamente

instituído, por mais enquadrado que ele possa estar em uma dada situação. Sempre haverá brechas, rachaduras e fluxos irreprimíveis" (CAMPOS, 2000a: 27).

Assim, a dimensão política do trabalho em saúde mental teria entre seus desafios, o de desconstruir cisões em um processo que é conduzido por sujeitos e atores sociais que são simultaneamente instituintes e instituídos. Acolher as diversas alteridades pertinentes a sujeitos e atores sociais dentre os quais se incluem os

trabalhadores implicaria orientar-se em direção a um agir comunicativo41.