• Nenhum resultado encontrado

Ambivalências, contradições e o processo de trabalho médico

5.3 EXPERIÊNCIAS INTERSUBJETIVAS E CONFIGURAÇÕES RELACIONAIS EMERGENTES NO CAPS

D) Algumas características:

5.6.6. Ambivalências, contradições e o processo de trabalho médico

Conforme já exposto anteriormente, o CAPS se caracterizou historicamente por adotar uma tendência ambulatorial médico-centrada. Algumas modificações vêm ocorrendo, sobretudo pela reorganização dos processos de trabalho de outras categorias profissionais, possibilitando maior integração e colaboração interprofissional.

Quanto ao processo de trabalho médico, caberia distinguir algumas nuances de maneira a possibilitar uma análise menos monolítica desta questão. Os médicos envolvidos no atendimento cotidiano do CAPS utilizam predominantemente arranjos tecnológicos pouco diversificados, baseados em atendimentos individuais e em uma lógica de procedimentos referenda pelo recebimento de produtividade. Seu trabalho é centrado nessas consultas e o tempo de permanência no serviço está vinculado ao tempo em que são realizados esses atendimentos pré-agendados.

Há uma quantidade grande de consultas além de atendimentos extras que surgem no cotidiano do serviço. Estes últimos implicam na percepção de certa sobrecarga por parte de alguns médicos, o que talvez também implique na possibilidade de sua maior permanência no serviço. Contudo, apesar de algumas similaridades gerais em relação ao processo de trabalho médico, alguns trabalhadores estabeleceram diferenças interessantes, em relação ao perfil dos psiquiatras.

Conforme já apresentamos anteriormente, haveria um perfil de psiquiatra

ortodoxo, que não escuta o paciente nem a equipe, e um perfil de psiquiatra com perfil pra CAPS, que escuta a ambos, e entre estes diversas nuances possíveis. Encontramos

também no CAPS referências a psiquiatras que escutam os pacientes e não escutam a

equipe, bem como psiquiatras que não escutam os pacientes, mas escutam a equipe.

A escuta do paciente esteve vinculada a uma qualificação da clínica caracterizada pelo maior tempo da consulta e por uma postura do psiquiatra que possibilita maior subjetivação da queixa do usuário, caracterizando-se por ser uma consulta mais centrada no usuário do que na queixa. Já a não escuta do paciente esteve vinculada a um menor tempo da consulta e ao fato do médico nem olhar pro paciente, centrando sua consulta na prescrição da medicação.

A escuta da equipe por parte do médico esteve relacionada a acolher gentilmente outros profissionais para discutir casos, tirar dúvidas e, principalmente, atender pacientes extras. Apenas um médico daqueles que atendem cotidianamente no CAPS

teria esta postura com a equipe, segundo alguns profissionais. Contudo, este médico não

escutaria seus pacientes, sendo o médico que atende mais rápido. Mas apesar disso, o

fato de este médico atender a quem chegasse, parecia ser conveniente para alguns profissionais e para a coordenação:

“E esse médico aqui há muito tempo e ninguém mexe com essa prática dele, nós já questionamos isso em reunião várias vezes e ele não tava presente nas reuniões. Então ele atende os dezesseis que ele tem pra atender em uma hora e vai embora, você pensa que ele chegou e ele já ta indo embora, né? Aí o grande agradecimento para com esse médico é que ele aceita novos: “Não, tem mais..., atende vinte e dois, não, se tiver mais...”. Ele é bonzinho, ele é considerado bonzinho porque ele abre a agenda dele pra atender mais seis, mas é um atendimento que nem olha pra cara do paciente e muitas vezes ele não tem tempo de fazer um diagnóstico correto. São pacientes que, eu pelo menos percebo os pacientes não evoluem, não melhoram e ao invés de resolver o problema dele. E tem paciente que fica dez anos aqui dentro porque fica só prescrevendo e o tratamento do paciente não é resolvido, não melhora com a qualidade de atendimento de um médico desse.” (TNS 7)

Esta questão revela contradições entre as expectativas de alguns profissionais em relação aos médicos, e a qualificação do atendimento destes últimos em relação à população.

Mesmo considerando a pressão da demanda e o grande número de pacientes para atender, o tempo de duração de cada consulta depende assim, mais do médico e de seu

compromisso com o paciente do que do processo de trabalho a que o médico é ao

mesmo tempo submetido e reprodutor. Essas diferenças entre os médicos surgem na fala abaixo:

“Porque tem uns que atende em pouco tempo porque só atende dessa forma mesmo independente de ter dez, vinte, trinta né? Mas assim, essa pessoa especifica o [nome do médico] é porque ele comprometido, ele já atende realmente comprometido com o paciente, as consultas dele os pacientes gostam e tudo, ele dá um feedback pra gente muito bom os que são acompanhados, mas se eles [médicos } se queixam realmente porque é muita gente.” (TNS 7).

Essas questões sugerem que apesar da dificuldade de integração atribuída a todos esses médicos que atendem cotidianamente no CAPS, há a percepção de algumas diferenças no que diz respeito à condução de seus processos de trabalho. Embora a grande maioria dos psiquiatras centralizar sua atividade em torno das consultas individuais, há variações importantes em relação ao objeto e à finalidade de seus trabalhos, e diferentes percepções do lugar da medicação enquanto instrumento do processo de trabalho.

Apresentamos anteriormente uma discussão sobre certas tendências grupalistas no CAPS, caracterizada pela maior valorização de atividades grupais compreendidas por alguns trabalhadores como sinal de mudança do modelo de atenção. Entretanto, tanto os atendimentos individuais quanto grupais representam apenas formas de arranjos tecnológicos ligadas aos instrumentos de trabalho, que por si só, não garantem tal mudança nos modelos de atenção. Nesse sentido, as concepções a respeito do objeto e da finalidade do trabalho pareceriam ser mais determinantes nas mudanças dos modelos de atenção (TEIXEIRA et al., 1998).

Daí surge certa contradição que merece ser explorada, decorrente das consultas individuais também serem necessárias, só que valorizá-las referenda a importância de

núcleos profissionais como a Psiquiatria, que tradicionalmente as utilizam como o

principal instrumento de seus arranjos tecnológicos. Isto poderia ser paradoxal para alguns trabalhadores que vem tentando afirmar um processo de maior integração interprofissional que exige a configuração de um campo comum de atuação.

Por outro lado, parece-nos que apesar das características ambulatoriais descritas sobre o trabalho médico no CAPS, há diferenças sutis que já apresentamos, onde apesar da centralidade nas consultas individuais, haveria distinções em relação ao objeto, e à

finalidade do trabalho, bem como ao lugar da medicação enquanto instrumento de

trabalho, questões que dependem mais da singularidade de cada médico em questão. Há assim, nesse CAPS a co-existência do que iremos denominar de um processo

de trabalho médico tradicional, voltado para as queixas e a patologia (objeto), baseado

no atendimento individual em larga escala, utilizando como principal instrumento a medicação, visando predominantemente o diagnóstico e o alívio sintomático (finalidade). Encontramos também, um processo de trabalho médico com tendências à

ampliação da clínica, mais voltado para o usuário e seu sofrimento (objeto), visando à

utilizando também tecnologias leves (instrumentos).

Ambos os processos de trabalho médico têm nas consultas individuais seu principal arranjo tecnológico, mas as diferenças no exercício da clínica individual parecem claras. Contudo, mesmo havendo certa tendência de alguns psiquiatras em relação à ampliação da sua clínica, o diálogo com outros profissionais parece estar reciprocamente truncado, de maneira que tecnologias leves ativadas com o usuário não parecem estar sendo ativadas entre os próprios trabalhadores.

Neste sentido o problema não seriam as consultas individuais nem a preservação dos núcleos profissionais, mas a constituição de arranjos tecnológicos que levem em conta dimensões relacionais que permitam maior integração, visto, isoladamente, alguns médicos tentarem manter um processo de trabalho minimamente qualificado em relação á clínica que praticam dentro das condições de massificação a que são tanto submetidos quanto reprodutores.

A cada um desses processos de trabalho médico correspondem psiquiatras com diferentes trajetórias subjetivas e profissionais. No caso do CAPS, uma concepção mais naturalizada do processo de trabalho médico tradicional, que pareceu reforçar sem maiores conflitos subjetivos o mesmo se apresentou em psiquiatras com trajetórias profissionais orientadas, sobretudo, por experiências asilares. Estes profissionais também expressaram distinções claras entre o atendimento em serviço público e serviço privado em termos do tempo de duração da sua consulta, da qualificação da escuta e da diversificação das abordagens utilizadas. O que denota uma cisão na sua prática médica e, conseqüentemente em seu processo de trabalho segundo o espaço no qual este é operado.

Já médicos com formações mais psicossociais ou em Saúde Pública apresentaram menor cisão entre as práticas efetuadas no setor público e no setor privado, bem como maiores tendências para efetuar processos de trabalho médico com

tendências à ampliação da clínica. Foi também entre um destes médicos que apareceu

maior incômodo em reproduzir um processo de trabalho próximo do tradicional em termos da grande quantidade e a rotinização do trabalho, atribuído a uma série de fatores conjugados, incluindo a sua própria acomodação enquanto profissional.

Outras possibilidades para além do lugar de prescritor no CAPS também foram aventadas e almejadas por alguns destes médicos. E foi entre eles que também surgiram