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Algumas contribuições para a micropolítica do trabalho em saúde

OBJETO DE TRABALHO

2.2.4 Algumas contribuições para a micropolítica do trabalho em saúde

A micropolítica do trabalho em saúde tem sido objeto de interesse de diversos autores como MEHRY (1997, 2002, 2007b), CECILIO (1999), CAMPOS (2000a), ONOCKO CAMPOS (2004) e FRANCO (2006), dentre outros, que vêm incorporando, como já dissemos, vertentes psicanalíticas, institucionalistas, esquizoanalíticas e hermenêuticas. Isto tem produzido um diálogo fecundo na interface entre dimensões macrossociais e microprocessos cotidianos vigentes nos serviços de saúde, possibilitando a valorização das relações estabelecidas entre os trabalhadores como elemento fundamental na constituição do processo de trabalho em saúde

Parece-nos, entretanto, interessante acrescentar alguns aportes oriundos de

53 Bourdieu retoma a palavra latina habitus utilizada por Durkheim e pela tradição escolástica, derivada da hexis grega (“disposições adquiridas do corpo e da alma”) empregada por Aristóteles. Bourdieu dá uma definição mais complexa e dialética ao termo, com a pretensão de ser também mais operacional. Ele compreende o habitus como um conjunto de disposições e “esquemas implantados desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível de ser utilizada pelos grupos e/ou classes, sendo responsáveis (...) pelo campo de sentido em que operam as relações de forca” (BOURDIEU, 1998a – XLII).

54 DUBAR (2005) denomina de formas identitárias a uma conjugação entre trajetórias subjetivas e trajetórias sociais que compõem uma concepção de identidade sem conotação de essencialidade, mas dinâmica e constituída em determinado tempo e lugar.

autores como Pierre Bourdieu, por suas contribuições para a comrpeensão da micropolítica do trabalho em saúde, temática eminentemente interdisciplinar.

A obra de Pierre Bourdieu abordou uma grande diversidade de objetos, fundamentando-se na Sociologia, na História, na Lingüística e na Antropologia. Questionando vertentes como o Estruturalismo e a Antropologia Cultural, ele recusou a noção naturalizada de papel social. Historicizando a relação do indivíduo com a posição que ele ocupa, propôs o conceito de habitus, para denominar os mecanismos interiorizados sob a forma de disposições pertinentes às maneiras de ver o mundo social. O habitus é, portanto, produto da história que tende a inculcar no indivíduo um conjunto de esquemas de percepção, de apreciação e de ação, encarnando os princípios que se encontram nos fundamentos das práticas sociais (RIUTORT, 2008).

Para BOURDIEU (1996), o mundo social é delineado a partir de determinados

espaços sociais onde se organizam as diferenças sociais. À medida que estes espaços

sociais se estruturam e adquirem certa autonomia uns em relação a outros, eles constituem campos compostos por agentes portadores de disposições (habitus) que ocupam determinadas posições e são detentores de certo tipo de capital.

BOURDIEU (1998a) se inspira na noção de capital da teoria marxista, ampliando este conceito para além do sentido economicista que inicialmente lhe foi atribuído, no intuito de compreender outros fenômenos sociais. O capital representa um recurso que rende lucros para quem o possui. BOURDIEU (1998a) utiliza esta noção para compreender trocas simbólicas que ocorrem em outros campos. Para ele, existem diversos tipos de capital (cultural, econômico, simbólico, por exemplo) e estes tipos de capital têm um valor maior com base no campo ao qual estejam referidos.

No caso do trabalho em saúde e das relações interprofissionais, parece-nos que a discussão já apresentada sobre autonomia profissional remete, sobretudo, para um

capital simbólico que para BOURDIEU (1998a) não é imediatamente perceptível e os

efeitos de sua duração também obedecem a lógica(s) diferente(s). É assim, uma espécie de poder ligado à propriedade de "fazer ver" e "fazer crer", uma medida do prestígio e/ou do carisma que um indivíduo ou instituição possui em determinado campo.

A partir de uma marca quase invisível de distinção, o capital simbólico permite que um indivíduo desfrute de uma posição de proeminência frente a um campo, reforçada pelos signos distintivos que reafirmam a posse deste capital (como as

insígnias do militar ou a mitra sacerdotal de um papa). O capital simbólico pode expressar-se como violência simbólica, não sendo fruto da opressão pura e simples de uns agentes sobre outros por haver certa anuência, inclusive, daqueles sobre os quais tal capital é exercido.

Pensamos assim, que algumas das noções aportadas por Bourdieu podem contribuir para a compreensão de relações interprofissionais do trabalho em saúde, caracterizado por processos intensos de profissionalização em que a autonomia representa um tipo de capital simbólico fundamental. Esta discussão será explorada no decorrer do exercício hermenêutico que orienta esta investigação.

Na tentativa de articular as experiências intersubjetivas de trabalho a dimensões micropolíticas emergentes no cotidiano, optamos por adotar, além das concepções apresentadas de Pierre Bourdieu, a noção de configuração de Norbert Elias (ELIAS, 1999). Tal noção parece avançar em relação a concepções monolíticas de equipe criticadas por CECILIO (1999), possibilitando identificar no espaço cotidiano dos serviços processos e fluxos relacionais que tampouco são possíveis de enquadrar em tipologias ideais de equipe, conforme a proposta já apresentada de PEDUZZI (2001) de

equipe agrupamento e equipe integração.

ELIAS (1999, 2000) propõe a noção de configuração pretendendo contribuir para a eliminação da dicotomia que distingue e separa o indivíduo da sociedade. Este autor pressupõe certa impossibilidade de capturar e dar total inteligibilidade aos movimentos, fluxos e descontinuidades vigentes nas relações sociais, constatando também a falta de conceitos e palavras que permitam indicar uma aproximação adequada ao que está diante dos nossos olhos.

Seguindo essa linha de pensamento, Elias recusa tanto a perspectiva de uma sociedade composta exclusivamente por indivíduos quanto a de uma sociedade que se sobrepõe e age sobre estes. Para ele a sociedade é um conceito abstrato, já que se constitui necessariamente de indivíduos, mas estes só podem agir dentro de um quadro social e histórico particular (RIUTORT, 2008).

O seu conceito de configuração é aplicável para a observação de realidades sociais situadas em escalas bem diferentes, designando um equilíbrio de tensões emanadas de uma situação de interdependência que coloca em relação diversos indivíduos, grupos sociais ou até Estados (ELIAS, 1999). A configuração estaria vinculada, portanto, a

uma abrangência relacional, ao modo de existência do ser social e a uma possibilidade conceitual de aproximação às emergências do cotidiano.

Ao explicitar seu conceito de configuração entendido como um “padrão” mutável, um conjunto criado por ‘jogadores’ através de suas mentes, suas ações e relações com os outros, ELIAS (1999) toma metaforicamente o jogo como referência. Concebe este como um sistema de interdependência complexo que serve para pensar relacionalmente os grupos humanos. A concepção de jogo em Elias não remete a um conjunto de regras e nem é definido por elas, mas representa apenas uma combinação provisória e dinâmica das relações sociais.

Assim, o estudo de uma configuração social não pode ser reduzido ao estudo de um elemento isolado, enfocando apenas aspectos do comportamento ou das ações das pessoas, individualmente consideradas, devendo-se permanecer atento para a interdependência e as configurações que as pessoas estabelecem umas com as outras.

Essa centralidade das relações no pensamento de Elias tem levado alguns autores a considerar o trabalho do sociólogo sob um perspectiva estruturalista (HEINICH, 2001) por considerar que seu conceito de configurações sociais estaria subordinado a leis internas que determinariam a sua forma e o seu conteúdo, a serem desvelados pelo pesquisador. Contudo, tal crítica não nos parece procedente, pois o conceito de

configuração de Elias não se prende a leis nem a determinismos de qualquer tipo.

As configurações devem ser compreendidas adentrando em suas singularidades, contemplando e descrevendo seus movimentos e jogos, que são permeados de incerteza e imprevisibilidade. Ou seja, no interior da configuração não há possibilidade de controle absoluto das trocas e das relações. Estas pressupõe também relações de poder e um equilíbrio instável, flutuante, ambivalente por ser constituído de fluxos com valências abertas ou desligadas, possibilidades a partir das quais emergem vetores que podem atingir zonas conhecidas ou desconhecidas, na dependência ou não do indivíduo.

Assim, nas configurações se manifesta também o poder, que para ELIAS (2000) é um atributo das relações sociais, fruto do contato entre os indivíduos e das suas ações a todo instante. O poder representa algo concreto, podendo assumir diversas formas e ocorrer nas relações sociais mais variadas, apresentando-se em situações cotidianas, desde as maneiras de vestir, às formas de portar-se em diversas situações, por exemplo.

O poder circula nas relações através de diferentes vetores, estabelecendo um equilíbrio mais ou menos instável, figuras de ordem/desordem ocasionando dissensão pela diferença, desafiando as regras existentes do jogo e podendo dissolver determinada configuração. Assim, as configurações permitem entender a existência social não ordenada, pois não tem necessariamente direção nem são planejadas, representando o contraponto de uma concepção de mundo ordenado e previsível, constituído de ligações constantes, passíveis de controle e de medição.

O conceito de configuração constitui-se, portanto, na e pela ambivalência, e possui aspectos diferentes ou até opostos que convivem e não se excluem. Com esse conceito Elias traz novas contribuições epistemológicas coerentes com sua perspectiva de recusa do pensamento disjuntivo, possibilitando aprofundar a compreensão de processos sociais complexos e seus fluxos e dinâmicas de relação.

A idéia de configuração permite uma flexibilidade e amplitude que comporta diferentes níveis de estruturação de fluxos e adensamentos relacionais, que, como já dissemos, não nos parecem enquadráveis em concepções como equipe55 nem de

processo grupal e grupo56.

Por outro lado, a noção de configuração permite compreender determinados processos situados no tempo e no espaço, contemplando noções que descentram a

grupalidade, concebida por PELBART (2002) de maneira mais múltipla, acentrada,

calcada, sobretudo, entre as singularidades e o comum, na potência ampliada a partir de um processo de afetações recíprocas.