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5.3 EXPERIÊNCIAS INTERSUBJETIVAS E CONFIGURAÇÕES RELACIONAIS EMERGENTES NO CAPS

D) Algumas características:

5.6.1 Breve descrição do trabalho médico no CAPS

Como já referimos anteriormente, o processo de trabalho médico no CAPS é predominantemente baseado no atendimento individual, referendando uma lógica ambulatorial que coexiste com processos de trabalho mais integrados. Nesse sentido, encontramos no CAPS diversas tendências que esboçam diferentes modelos de atenção. Há uma tendência mais psicossocial voltada para o território, sobretudo entre trabalhadores que vêm integrando seus processos de trabalho e ampliando as ações do CAPS (NUNES, 2008). Há também uma tendência mais voltada para a escuta psicoterapêutica (MÂNGIA & MURAMOTO, 2006), próxima da clínica psicológica tradicional, entremeada com uma tendência psicossocial centrada na equipe (NUNES, 2008). E também uma tendência ambulatorial médico-centrada (SÁVIO & GULJOR, 2000), que comporta variações internas, sendo ora mais, ora menos humanizada (NUNES, 2008), na dependência do profissional médico em foco.

A lógica ambulatorial do processo de trabalho médico historicamente predominou no CAPS. Tal lógica, constituída e reforçada por diferentes vetores e atores, se expressa na predominância das consultas individuais como procedimentos determinantes dos arranjos tecnológicos vinculados ao trabalho médico. Com exceção de um médico cuja contratação envolve apenas atividades de matriciamento e visitas domiciliares, todos os demais (4) dedicam-se ao atendimento de cerca de 16 a 25 pacientes em turnos que vão de 1 hora a meia a 4 horas, durante 3 a 5 dias na semana, dependendo do médico em questão. Além disso, esses médicos também fazem muitas receitas, visto a dispensa de medicamentos ocorrer mensalmente, enquanto os retornos

das consultas são geralmente trimestrais.

Embora os médicos desta configuração tenham pressionado por uma redução de sua carga horária, eles mantiveram uma agenda de atendimento compatível com sua carga horária original de 20 horas semanais. Isto acarreta com diferentes variações segundo o médico em foco, uma redução no tempo de cada consulta dos usuários. Os novos usuários são vistos geralmente por outros membros da equipe, sendo encaminhados aos médicos no caso de haver necessidade de consulta psiquiátrica. O agendamento psiquiátrico de usuários novos e antigos fica sob responsabilidade da recepção.

Não há limites claros sobre a capacidade de absorção de novos usuários para os psiquiatras, sendo a agenda deles a que sofre maior pressão por atendimento proporcionalmente a outros trabalhadores que também realizam atendimentos individuais. Isto gera sobrecarga dos médicos, haja vista a captação de usuários superar a alta e/ou transferências, havendo diferentes reações segundo o médico, tais como: queixas, recusa em atender mais pacientes, acomodação, cansaço, absenteísmo, e frustração com o trabalho, por exemplo.

Já foram poucos os profissionais não médicos a mencionar ou perceber essa

pressão por atendimento médico como problemática para os médicos. Predomina entre

estes outros profissionais o desconforto em relação ao que é percebido como privilégio dos médicos, que detém autonomia para auto-regular seu tempo de permanência no serviço. Além disso, os médicos são percebidos desinteressados e descomprometidos com o projeto coletivo do CAPS e uma maior integração interprofissional.

A pressão por atendimentos médicos gera problemas para a recepção e para o acompanhamento dos próprios usuários cadastrados, sobretudo devido ao grande espaçamento entre as consultas. É também a recepção o setor que tradicionalmente organiza os prontuários e os usuários para atendimento psiquiátrico. Os demais profissionais cuidam de suas próprias agendas, visto terem poucos atendimentos individuais por turno (4 a 6 atendimentos). A recepção funciona assim, mais vinculada ao trabalho médico, o que reproduz o tipo de equipe ambulatorial, baseada no binômio

médico-atendente.

Os atendimentos médicos não são agendados com hora marcada, sob a alegação de diferentes trabalhadores de que o povo está acostumado e prefere assim. Isto gera

uma grande concentração de pessoas na sala de recepção nos turnos em que há atendimento médico. Isto não acontece nos turnos de atendimento individual de outras categorias profissionais, até porque, como já dissemos, estes outros profissionais atendem bem menos pessoas por turno. Ou seja, em outros horários sem atendimento psiquiátrico os espaços de circulação do CAPS (corredores, sala de espera) ficam vazios.

Esta diferença expressiva no número de agendamentos por turno entre os médicos e outros profissionais foi algo que nos chamou a atenção. A situação não pareceu se explicar apenas pelo fato de os médicos concentrarem seus atendimentos de maneira a proceder a maior auto-regulação de seu tempo de permanência no CAPS. Alguns fatores associados a esse agendamento proporcionalmente maior para os psiquiatras vinculam se a questões como: o pagamento de produtividade78; a grande demanda por consultas psiquiátricas advindas da própria população; questões organizacionais do próprio CAPS; e a certo reforço paradoxal dessa lógica ambulatorial por parte de diversos profissionais que imputam apenas aos médicos a responsabilidade por manter esse modelo.

De qualquer maneira, foi o processo de trabalho médico no CAPS o que mais se aproxima de moldes tayloristas de controle do tempo para aumentar a produção. Seja por opção dos próprios médicos, ao concentrar os atendimentos, seja por pressão de uma lógica historicamente construída e reforçada por diversos atores envolvidos.

Foi também o trabalho médico o que gerou maiores expressões de indignação e de conflitos interprofissionais, sobretudo da parte outros profissionais em relação aos médicos e não o contrário. Entre os principais motivos que acirram os conflitos encontramos: a maior flexibilidade no cumprimento da carga horária médica e as dificuldades de integração do trabalho médico em relação ao trabalho dos demais profissionais.

Esses conflitos, relacionados em parte a questões históricas da trajetória do trabalho em saúde, geram bastante desgaste não apenas nas relações profissionais, mas

78 A produtividade está vinculada à quantidade de atendimentos no caso dos médicos. Vigente nos serviços públicos de saúde de Fortaleza, a produtividade foi criada através de lei municipal para compensar a defasagem salarial e a ausência de um plano de carreira. A produtividade não gera apenas desigualdades, mas pressiona por um trabalho massificado em detrimento da qualidade, onde quanto mais atendimentos, maior a remuneração recebida pelo trabalhador, sendo antagônica a perspectivas que se pretendem transformadoras, como a do SUS e da Reforma Psiquiátrica.

também interpessoais, atiçando diversas estratégias defensivas de ambos os lados. A integração do trabalho médico está assim, permeada de ambivalências, tanto da parte dos médicos quanto dos demais profissionais.

Já, os trabalhadores de nível médio, sobretudo da recepção mantêm parcerias relativamente boas com os médicos. Reconhecem a grande pressão por atendimento e a sobrecarga destes profissionais e assumem uma posição subalterna bastante naturalizada em relação aos médicos, mas também referem dificuldades em acessar estes profissionais quando precisam encaminhar atendimentos extras.

Diferentes estratégias são utilizadas para lidar com essa dificuldade de acesso aos médicos. Por outro lado, tais dificuldades parecem barreiras estabelecidas deliberadamente pelos próprios médicos, como forma de lidar com a pressão por atendimentos oriundos dos colegas do CAPS. A seguir exploramos mais detalhadamente algumas das questões apresentadas acima.