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5.3 EXPERIÊNCIAS INTERSUBJETIVAS E CONFIGURAÇÕES RELACIONAIS EMERGENTES NO CAPS

D) Algumas características:

5.6.4. A “pouca integração” na perspectiva dos médicos

A pouca integração na equipe e desta com os psiquiatras, surge na fala do médico abaixo:

“Trabalho de equipe, eu acho que tem que melhorar. Precisa melhorar. Precisa melhorar. Principalmente no que tange, eu não sei

se as outras equipes... estão bem integradas, mas com certeza esta equipe, com os médicos psiquiatra não houve muita integração, não. Precisa melhorar.” (P1)

A necessidade de mais reuniões ou de possibilitar a participação do médico nessas reuniões desagendando seus pacientes surgiu como sugestão. Entretanto, chama a atenção certa desresponsabilização da parte dos psiquiatras em ser mais pró-ativos na busca de soluções. O que pode representar certa ambivalência, da qual já falamos a respeito, relacionada, entre outras coisas, a certa reticência em deslocar-se de determinadas posições. Tanto o próprio deslocamento em si, quanto assumir novas posições poderiam ser concebidos como uma fragilidade na preservação da autonomia,

ameaçando a detenção de determinados capitais dos quais os médicos não estariam dispostos a abrir mão.

Por outro lado, ausentar-se da reunião também poderia representar uma forma de

fuga da tarefa primária da qual os médicos talvez queiram escapar. Já discutimos no

tópico sobre os espaços coletivos intra-institucionais que, a depender do sentido das reuniões de equipe, estas podem gerar maior desgaste e sofrimento para alguns trabalhadores, desencadeando essas estratégias de fuga da reunião.

Por outro lado, embora a presença do médico pareça intimidar algumas pessoas nas reuniões, nestas talvez também se reforce o posicionamento dos médicos em um lugar de adversário, réu, carrasco e bode expiatório que eles tampouco estão dispostos a assumir. Situar os médicos neste lugar dificultaria ainda mais as relações interprofissionais, favorecendo, maior distanciamento dos médicos em relação à sua cobrada ‘integração’. Essa posição de adversário também amplifica o cansaço e a pouca realização com o trabalho, como observamos abaixo:

“Enquanto a equipe de trabalho não conseguir se despir dessas defesas, eu hoje me sinto às vezes como adversário, como pleno adversário dentro da minha instituição de trabalho e é ruim. Isso é ruim, porque se eu erro tem muitos desses erros que não são intencional, mas pode ser corrigidos obviamente, né? Mas eu particularmente, e cansa, cansa como pessoa, como profissional, como indivíduo que você ir ao seu trabalho e não se sentir realizado, né? Ou ir já não se sentindo bem, né?” (P2)

Neste sentido, para um dos médicos haveria um processo coletivo de projeção nos médicos de diversos problemas da equipe:

“Mas não temos um trabalho em grupo, nós temos uma equipe multiprofissional, mas não trabalhamos, então na realidade o que eu acredito e já ouvi é uma crítica como se aquela postura fosse do médico psiquiatra e ele então é que não se integra, eu já não vejo assim, eu vejo que a coisa envolve a todos, há resistências entre alguns profissionais da área médica, da área psiquiátrica e porém há mecanismos de defesa onde os outros profissionais tem atitudes que reforçam e que dificultam a participação desses profissionais nesses momentos e projetam nos profissionais médicos a razão daquela situação.” (P2)

tentativas de deslocar os psiquiatras de suas posições de poder, quanto a tentativas de afirmar certa autonomia coletiva de outros trabalhadores. Parece, no entanto, que tal estratégia de culpabilização acaba gerando maior distanciamento dos médicos, reforçando a interpretação de que são estes os que resistem a se integrar. Há assim, ao que parece um processo de ‘cobrança por integração–culpabilização dos psiquiatras–

distanciamento dos psiquiatras’ que se replica gerando maiores desgastes e conflitos

entre os trabalhadores.

Essa culpabilização dos médicos também foi observada por SIMPSON (2007), ao referir que alguns psiquiatras de equipes comunitárias de saúde mental do Reino Unido se sentiam tão ou mais estigmatizados que seus pacientes, pelas posturas de seus colegas de equipe. Segundo ELIAS (2000), os processos de estigmatização relacionados aos jogos de poder representam estratégias de distinção daqueles grupos que buscam resguardar/ampliar seu poder, ante aqueles que pretendem/precisam excluir.

Parece assim, que haveria certa contradição em cobrar do psiquiatra maior integração através de estratégias que favorecem seu distanciamento. Entretanto, subjacente a esse processo, haveria necessidade de certa exclusão ‘necessária’ do psiquiatra - justamente por ser o profissional que individualmente detém maior capital simbólico e político – como forma de garantir e não ameaçar o acúmulo de capital simbólico e político coletivo do restante dos profissionais.

Seria assim, após certo fortalecimento destes outros profissionais que se iniciariam os embates com os psiquiatras. Tanto é que formas menos conflitivas de tentar lidar com a tradicional carga horária reduzida dos médicos já tinham sido utilizadas no CAPS, ao se garantir a redução geral de carga horária dos demais trabalhadores no passado, por exemplo.

Essa necessidade de ‘culpabilizar’ os psiquiatras estaria relacionada também a questões históricas do trabalho em saúde, relacionadas a um maior poder médico em relação às demais profissões. Esse poder surgiu nas falas de outros profissionais, como podemos ver logo abaixo:

“Eu acho que a relação de poder que historicamente já existe, né? Assim e que nas instituições de saúde elas sempre....tem o poder que eles determinam assim os horários, as férias, existe um poder do médico, né? Que já existe historicamente, essa relação de poder com os médicos e os que não são médicos, existe o poder financeiro que

eles tem um ganho muito superior aos outros e assim, e eu acho que

ao longo das gestões isso de alguma forma vai se cristalizando. ” (TNS 9)

Ante esse poder, diversas seriam as estratégias utilizadas para possibilitar maior afirmação da identidade profissional de trabalhadores de outras áreas da saúde. Entre elas a de culpabilizar/acusar os médicos como forma de negar a dependência que vários desses outros profissionais muitas vezes ainda têm dos médicos, como demonstra a transcrição que se segue:

“Eu acho que ele vem apenas se somar a um conflito maior que há anos... que há talvez no surgimento das outras opções da área de saúde, onde todas nasceram sobre os auspícios da medicina, né? E isso é uma coisa histórica e que hoje gera grande conflito porque essas profissões estão peitando ter uma identidade própria e acreditam que a medicina é quem pede essa definição dessa identidade né? Isso é uma coisa também que vem dificultar bastante o trabalho de equipe de saúde, onde nós médicos somos visto como aquele pai carrasco, sei lá, aquele pai que não dá liberdade, aquela mãe que quer manter o controle sobre os seus filhos, né? Filhos esses que tão querendo se tornar independentes com o direito deles, né, (risos) não é verdade? E na realidade isso é um processo que devia envolver todos de forma pra que todos crescessem, porque eu particularmente não vejo em nenhum ao contrário, nenhum dificultador. Ao contrário, eu vejo como facilitador onde todos nós possamos realmente ter nossas identidades e trabalharmos junto, então. Mas só que ainda tá no processo, né, de construção disso, né? Então às vezes você encontra os profissionais, aqueles que são muito dependentes do médico, aqueles que são dependentes, mas negam a dependência (risos) e terminam demonstrando, negam a dependência e então atacam, né (risos)? Mas isso a gente tem que trabalhar, só se despir das defesas, das proteções, né?” (P2)

Este trecho ilustra a influência dos processos de profissionalização e as disputas por autonomia que ocorrem nas relações interprofissionais cotidianas no CAPS. Ante um poder médico historicamente maior, outras categorias profissionais tentam estabelecer suas próprias estratégias intercorporativas, por vezes pouco efetivas para garantir sua maior autonomia e menor dependência do médico.

uma dependência técnica em determinadas situações. Retomamos aqui a discussão do

uso do jaleco e do termo doutor como signos distintivos, que segundo um dos

profissionais (não médico) é exigido dos usuários por uma minoria de colegas. Parece- nos haver, nesta situação uma ambivalência entre rejeição e desejo do próprio poder que o médico representa por parte de alguns dos outros profissionais. Por outro lado, usar os mesmos signos distintivos talvez represente uma forma de aproximação desse poder culturalmente valorizado, historicamente construído e pessoalmente emanado.

Embora nem todos os demais profissionais necessariamente perpassem por essa relação de desejo e aproximação do poder emanado pelo médico nem pretendam reforçar a utilização dos mesmos signos distintivos, temos mais uma interpretação possível para certa relação ora polarizada, ora ambivalente com os médicos, de rejeição- admiração, afastamento-aproximação, que colabora na constituição de posições antagônicas onde o médico ora é colocado como inimigo, ora como salvador.

Por outro lado, essa dependência do médico também pode se expressar como recusa do médico por parte do profissional que depende dele. Esse processo expressa certa confusão entre a figura do médico real, presente no serviço, e a instituição simbólica que ele representa - a Medicina.

Na fala acima também observamos uma referência a outras profissões ainda em processo de profissionalização como filhos rebeldes que precisam rejeitar o pai ou a mãe (a Medicina) para se emancipar. Parece que esta explicação se aproximaria de vertentes psicanalíticas onde há tanto uma dependência quanto uma rivalidade com o médico, tornando-se necessária a sua interdição80. A culpabilização e a acusação teriam, nesse caso, realmente a função de afastar a ameaça representada por um poder médico do qual alguns profissionais pretenderiam se equiparar.

Dois problemas surgem dessa situação: maiores conflitos e afastamentos, que podem trazer sofrimento aos trabalhadores e repercutem no cuidado aos usuários; e a impossibilidade de extirpar a Medicina - e seus agentes, do trabalho em saúde, posto que são imprescindíveis na produção do cuidado.

Estas questões também assinalam que no cotidiano do CAPS opera-se uma fusão entre a figura do médico e a instituição que ele representa, reforçando os conflitos interprofissionais relacionados a questões de poder, travados por diversos agentes

envolvidos.

Como já dissemos, essa culpabilização percebida pelos médicos gera estratégias defensivas de maior distanciamento, o que acaba reforçando as possibilidades de não integração, como observamos abaixo:.

“Olha, na realidade, lá nós, como psiquiatras, que eu me sinto e acredito que outros também, muito, muito ilhado, né? Muito pouco participo.” (P1)

Esse sentimento de estar “ilhado” emerge como solidão, em parte gerado por processos relacionais de ‘cobrança-culpabilização-distanciamento’, e em parte, talvez pela própria organização do processo de trabalho médico centrado em arranjos tecnológicos baseados em procedimentos individuais. Assim, ante a configuração de um trabalho mais coletivo e compartilhado que vem emergindo nos serviços de saúde, a solidão do processo de trabalho médico tradicional parece ficar mais evidente. Este

lugar do médico, histórica e socialmente construído, é reforçado no cotidiano por

diversos atores, dentre eles os próprios médicos e demais trabalhadores, conforme iremos explorar posteriormente.