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A “pouca integração” na perspectiva de outros profissionais

5.3 EXPERIÊNCIAS INTERSUBJETIVAS E CONFIGURAÇÕES RELACIONAIS EMERGENTES NO CAPS

D) Algumas características:

5.6.5 A “pouca integração” na perspectiva de outros profissionais

Quanto às perspectivas de outros profissionais sobre a pouca integração dos

médicos, esta pareceu ser imputada exclusivamente a estes últimos, reforçando o

processo já mencionado de culpabilização dos médicos. Esta pouca integração dos médicos se vincula a uma falta de compromisso mais geral com o serviço, com o horário, com as atividades, com os demais profissionais e com os usuários.

Nesta perspectiva, os médicos estariam mais preocupados em seus próprios interesses, reforçando uma posição individualista que geraria ainda maior distanciamento e, conseqüentemente, maior solidão. Se por um lado os médicos atendem muitos pacientes, por outro, profissionais de outras categorias consideram que também trabalham muito e levam o serviço nas costas, realizando múltiplas ações que exigem muito deles:

“A categoria de não médico, obviamente veste muito mais a camisa. E eu tenho tranqüilidade em dizer, que a gente leva muito mais esse serviço, do ponto de vista pensado, sabe, das ações mais coletivas, assim, nas costas, né, então não que os outros que não participem,

mas participam naquele seu fazer cotidiano e rotineiro. Preso ao

atendimento, entendeu, e... como se isso bastasse ao serviço.” (TNS 1)

Nesse sentido há também nessa concepção de integração e de vestir a camiseta certa necessidade de valorização das atividades coletivas, do campo interprofissional. Como já mostramos na discussão sobre integração e colaboração interprofissional, tal valorização pode implicar, na desvalorização por parte de alguns profissionais dos

núcleos profissionais de seus colegas. Entretanto, não há uma pretensão de que os

médicos parem de fazer suas consultas individuais, mas que apenas compartilhem um pouco mais as outras atividades.

Para isso seria necessária uma reorganização do trabalho médico que permitiria maior integração interprofissional, com o que diversos profissionais concordaram como se registra abaixo:

“Penalizaria uma agenda de um dia de uma forma [de atendimentos individuais], mas a gente ganharia em outro tipo de, de atividade, de troca, eu acho que isso sem dúvida o efeito multiplicador de um outro tipo de atividade, tanto é assim, que não há nenhuma experiência e nem nunca houve nessa casa, nenhum médico se envolvendo em atendimento grupal. Não tenho essa experiência.” (TNS 1)

Para alguns profissionais, a própria maneira como o serviço é organizado estabelece essas tendências opostas entre os processos de trabalho de médicos e de outros profissionais, do que decorrem também distintas tendências de modelos de atenção, conforme esclarece o seguinte relato:

“Mas, a organização do serviço também implica nesse modelo, a forma de organização, eu acho que também implica nesse modelo de, de médico tá no apêndice e a equipe voltada pra outro, pra outra consoante, né? Eu acho que, é muito mais além do que isso, é um coisa muito complicada, é um nó que, que é um desafio desatar esse nó, de não ter tantos pacientes por unidade, de ser um atendimento mais, mais próximo de uma certa forma da equipe, sei lá, mas eu acho que, também existem outras que sobrecarregam também o médico.” (TNS 4)

Nesse aspecto começam a haver convergências entre alguns médicos e esses outros profissionais. Entretanto, além da organização do próprio serviço, outras

questões estão implicadas na organização do processo de trabalho médico, conforme discutiremos no próximo tópico.

Um segundo aspecto relacionado à pouca integração dos médicos com os demais profissionais esteve relacionado às referências de dificuldades de acesso que alguns profissionais tiveram em relação a alguns médicos para tirar dúvidas, conseguir atendimentos extras ou atendimentos de urgência. Esta dificuldade de acesso foi atribuída tanto ao poder detido pelos médicos quanto à grande demanda atendida por eles. Alguns desses aspectos são explicitados pela seguinte transcrição:

“E tudo que a gente vai ter contato com eles parece que a gente tá pedindo um grande favor entendeu? Vamos supor, a gente acabou de fazer uma triagem onde a gente tá em dúvida se realmente seria o caso do CAPS porque tem a questão da neurologia e não sei. Então a gente quer que pelo menos aquele médico tenha uma disponibilidade nessa ocasião. Vamos supor, de tá escutando, de tá fazendo uma pequena avaliação, uma escuta daquele paciente se seria de fato ou se não seria, né? Ou então, em outros casos. Mas não, a gente já entra na sala e já é um absurdo porque ele já tem aquele número X (de pacientes) e aí mais um de forma nenhuma, tá entendendo? Então assim, é toda essa falta, mesmo, de comunicação.” (TNS 8)

Nessa fala surge a alusão a barreiras comunicacionais (e relacionais) que talvez sejam estabelecidas deliberadamente pelos psiquiatras. Estratégias evitativas de contato, talvez representem uma forma de proteção em relação a uma maior sobrecarga de atendimentos. A necessidade de estabelecer estratégias de acesso aos psiquiatras se fundamentam em verdadeiros ‘mapeamentos relacionais’ que identificam como, quando e quem pode ‘chegar’ mais no médico, reforçando essa dificuldade de acesso colocada pelo médico como possível estratégia de proteção para evitar ‘mais trabalho’. Por outro lado, essa dificuldade de acesso piora as possibilidades de integração e reforça a idéia de distanciamento dos médicos.

Algumas dessas estratégias geram incômodos entre alguns profissionais por implicar na necessidade de adular os médicos, conforme demonstra o seguinte relato:

“Por exemplo, uma paciente chega em crise e não tem a agenda de médico pra atender (...) porque aí passa três médicos e a gente consegue adular um psiquiatra pra conseguir consultar, mas é na base da adulação, e se tiver sorte daquele psiquiatra ter boa

vontade.” (TNS 7)

Tangenciar essas barreiras relacionais e comunicacionais estabelecidas pelos médicos também provocam constrangimento, bem como um sentimento de estar pedindo um grande favor, o que, de certo modo, acaba reforçando certa hierarquia de poder vigente entre os médicos e o restante dos trabalhadores, piorando ainda mais o distanciamento e a cisão.

“Eu mesma toda vida que eu tenho que entrar, tá entendendo? Numa sala pra poder pedir qualquer coisa pra perguntar, pra mim é um constrangimento incrível (...) . E tudo que a gente vai ter contato com eles (psiquiatras) parece que a gente ta pedindo um grande favor, entendeu? (...) Então, a gente quer que pelo menos aquele médico tenha uma disponibilidade nessa ocasião, vamos supor, de tá escutando, de tá fazendo uma pequena avaliação, uma escuta daquele paciente (...). Mas não, a gente já entra na sala e já é um absurdo, porque ele já tem aquele número X e aí, mais um, de forma nenhuma, tá entendendo? Então assim, é toda essa falta mesmo de comunicação.” (TNS 8)

Essa dificuldade de acesso, associada a uma pouca escuta e atendimento rápido dos usuários constitui o que foi denominado de psiquiatra ortodoxo. Já aquele médico que acolhe e escuta os demais profissionais e atende bem os usuários seria o psiquiatra

com perfil pra CAPS. Se por um lado um dos problemas é que há poucos psiquiatras

com perfil pra CAPS, por outro, surgiu um hiato na discussão que classificava os psiquiatras do serviço.

Um desses psiquiatras, considerado ortodoxo por atender rápido e escutar pouco os usuários, aceita, entretanto, sem reclamar, atendimentos extras, assim como escuta (pelo menos alguns ) dos outros profissionais. Isto deu margem a dúvidas sobre como enquadrá-lo. Já outro psiquiatra que cumpre sua carga horária e estabelece um controle rígido a respeito de seu número de atendimentos pois pleiteia uma boa escuta, foi considerado ortodoxo por ter destratado alguns profissionais ao não aceitar atendimentos extras.

Por outro lado, como as estratégias de acesso aos médicos dependem, em certa medida, dos vínculos afetivos e das relações interpessoais estabelecidas com eles, variáveis entre os distintos profissionais, parece que as opiniões a respeito dos

psiquiatras também se modelam por esses vínculos.

Essas barreiras de acesso estabelecidas pelos médicos podem representar também, conforme já mencionamos, uma forma de colocar limites ante a pressão dos próprios colegas de equipe por outros atendimentos, trazendo à tona a contradição entre as necessidades de outros profissionais – de discussões e avaliações x necessidades dos

médicos – de administrar a sobrecarga de trabalho e, em alguns, mas não todos os casos,

visaria, entre outras coisas a garantia de certa qualidade da consulta.

A questão é que tanto as necessidades dos outros profissionais quanto as

necessidades dos médicos são importantes para uma boa produção do cuidado, e caso

estas se situem em vetores opostos isso acaba gerando problemas. O que também denota dificuldades na comunicação entre os trabalhadores e na organização do serviço, além de problemas externos relacionados à organização da rede de saúde. Essa conjunção de fatores acaba gerando conflitos interprofissionais que precisam ser mais bem contemplados.

Nesse sentido, apesar das barreiras comunicacionais estabelecidas pelos médicos gerarem constrangimento e intimidação em profissionais predispostos (BOURDIEU, 1996), houve também relatos de profissionais que não se deram por aludidos. Ativaram outras estratégias comunicativas realizando um movimento em

direção aos médicos de maneira a tentar envolvê-los na co-responsabilização pelos

pacientes, conforme demonstra o seguinte relato:

“Eu gosto muito, assim, por exemplo, de ir até os médicos e assim, conversar sobre meus grupos. Eu gosto de dizer como é que tá nos grupos, pra que eles comecem a encaminhar, entendeu? Então a minha política, já que eles não vem até a gente, eu posso ir até eles: “Olha, eu faço o grupo tal, encaminhe, isso é importante ali, no acolhimento e tudo”, ta entendendo? Porque eu vi que, nos grupos, hoje em dia, assim, eles, eles já-já encaminham, já estão encaminhando e tudo. E outra coisa também, na questão assim, dessa troca, quando o meu paciente eu percebo que ele não está bem por conta de algum medicamento e alguma coisa, então eu gosto também de ir até ele e dizer: “Olha, será que não era melhor mudar esse medicamento? Vamos dar uma olhada, né? No humor dele, né? Na labilidade, como é que tá”. Então, eu gosto de fazer essa troca porque, assim, eu já vi que é até mais próximo aos médicos. Discuto, né? Os casos de alguns pacientes com eles. Então assim, já pra mim,

já é-é mais, tá sendo mais interativo comigo e com os médicos. Eu até

já compartilhei com as meninas e ta dando resultados com alguns pacientes mesmo, certo? Porque assim, é isso que eu comecei a perceber, porque já que não vêm, então eu é que vou, ta entendendo? Então.... porque eu tou vendo, pra mim, assim, a meu ver, ta crescendo, ta sendo melhor.” (TNS5)

Esse relato, dissonante dos demais, foi feito de forma animada, mas também teve algo de titubeante e atento, parecendo havendo certa expectativa do relator a respeito da reação do grupo. O relato não pareceu ter muita recepção no grupo, que desviou o assunto evitando maiores comentários. No decorrer do trabalho de campo, alguns profissionais reiteraram que tentaram por diversas vezes estabelecer infrutiferamente maior comunicação com os médicos. Por outro lado, as dificuldades com os médicos por vezes foram expressadas raivosamente por alguns profissionais ao longo do trabalho de campo, dando a sensação de haver uma relação já bastante desgastada com os mesmos.

Alguns profissionais relataram cansaço em tentativas infrutíferas de maior integração. A estratégia de ir em direção aos médicos acima mencionada foi operacionalizada por uma pessoa relativamente nova no serviço, que talvez ainda não esteja cansada.

Outra leitura possível a respeito desse relato de que ‘se o médico não vem se vai

em direção a ele’, lembra a metáfora de Maomé e a montanha, onde a montanha cede e

vai até Maomé. Neste sentido, ir até os médicos não seria ir de qualquer forma, mas seria ir ‘cedendo’, talvez adotando até uma postura subalterna ou estabelecendo um fluxo relacional que poderia estar sendo concebido como reforço da maior hierarquia médica por outros profissionais. Ou seja, aquele que se ‘desloca’ é que estaria ‘cedendo’, abrindo mão de sua posição, permitindo assim, ao outro, ‘continuar’ em sua posição.

Essas estratégias comunicacionais expressam assim, jogos de poder arraigados. Por outro lado, há no CAPS claramente uma estratégia de grupo, que aglutina vários profissionais, como já dissemos, em um processo que lhes permite se contrapor ou questionar os médicos. Assim, estratégias comunicativas individualmente estabelecidas com o intuito de favorecer o diálogo talvez não representem a posição de alguns dos profissionais do serviço.

narrativa:

“É uma relação de poder no sentido de que é como se... fosse permitido a eles [psiquiatras] um trabalho a parte, tá? Mas aí, por um outro lado, eu vejo que o grupo consegue também ter uma relação de poder, nem que seja um micropoder de tá colocando, e se coloca, entendeu? Porque existe o poder e o micro poder, mas o nosso poder não é só micro, eu acho que a gente tem um grande poder, tá entendendo? De levar uma proposta toda de diferença nas costas. Então assim, em relação a qualquer produto, a qualquer discussão a equipe é muito guerreira de ir pro tête-à-tête, então não tem nenhuma relação de imposição médica: Ah porque é assim e vai ser, assim!. Não existe. Houve recentemente uma situação em que o médico; “Essa aqui não é perfil para CAPS”... Então nós nos contrapusemos e tal; Essa paciente é perfil para CAPS por isso e por isso, entendeu? E ela se manteve e ele teve que atender e por aí foi. Por uma relação de que nós também temos o conhecimento e que nós provamos, por A mais B. Quer dizer, não houve uma conivência; Ah porque o doutor tá falando assim e vai ser assim, entendeu? Então eu acho que isso foi também construído historicamente. Não é uma relação de força e de conflito constante, mas se tem que prever, vamo briga, aí vamos guerrear, aí é, sabe, uma relação assim. (...) Mas assim, não é aquela coisa da imposição médica. O direcionamento do trabalho não está sobre a tutela do médico. E isso aí eu te digo claramente. Não está. Porque o trabalho dos profissionais de outras categorias também é muito ativo e muito atuante, muito atento e muito envolvido, é aí que faz o diferencial, entendeu?” (TNS 1)

Nesse relato parece haver clareza em relação à necessidade de avançar em relação a outro modelo. Segundo esse mesmo profissional, também são necessárias estratégias de tentar atrair e incluir os médicos para potencializar o trabalho. No entanto, talvez alguns médicos tenham suas objeções em participar de um grupo no qual sejam tratados por igual.

Assim, a integração maior dos médicos exigiria diversos deslocamentos, que nem todos os trabalhadores estariam dispostos a efetuar. Contudo, pontes entre os médicos e os demais profissionais não depende apenas de ambos, mas também implica em lidar com a ambivalência desses processos relacionais, bem como com uma série de questões mais gerais que também contribuem para manter os médicos nesse lugar

historicamente construído.