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3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.1 Rodas de Conversa: IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos

3.1.6 O sexto encontro (10/10/2016)

O tema dessa Roda era “Quem fala?” “O que fala?”. O encontro girou em torno de quem gostaria de ir ao IV Seminário e sobre o que deveríamos falar, deixamos claro que quem iria não estava sendo privilegiado; ao contrário, recebia a responsabilidade de representar o

grupo e, sendo assim, o que seria dito precisava ter o acordo do coletivo, em princípio. Só poderiam ir quatro jovens-adolescentes no total, dois de cada unidade.

Fizemos uma coordenação compartilhada nesse encontro, eu e Paula Vargens, que já estava totalmente integrada ao grupo, e Angélica Barbosa. Estiveram presentes dezesseis jovens-adolescentes, oito de cada unidade.

Entre nós pedagogas já tínhamos uma ideia de quem poderia estar no Seminário. Pensamos em critérios como: quem nos últimos encontros havia trazido discursos fortes e que representavam um pouco do que vínhamos trabalhando nas Rodas de Conversa, como Isidora e Orfeu, pensamos que DandaLua poderia expressar a temática “maternidade”. Além desses, não sabíamos quais outros deveriam estar presentes. Nesse dia entendemos que Orfeu receberia progressão de medida em sua próxima audiência, na terça-feira, antes do Seminário e, por proposta da Paula, decidimos tentar a ida dele para além dos outros dois, representando a unidade. Assim ganharíamos a presença de mais um representante no evento. Orfeu assentiu ir ao Seminário mesmo recebendo progressão da medida socioeducativa. Iria de casa, já que a progressão, para a semiliberdade, oferece a eles, desde o início dos anos de 2016, uma semana em casa, antes de iniciar o cumprimento da medida, um momento de transição. Sendo assim nos restavam duas vagas para a unidade masculina. Pensamos na representatividade racial, forçando a presença de meninos com fenótipo marcadamente negro; propusemos, então, ao Donatelo. Apoiamos a ida de Davenga, emblemático no grupo por todas as suas falas e intervenções, mesmo elas sendo muitas vezes contrárias a um pensamento crítico e a uma reflexão real sobre si mesmo. Ele, de fato, representava o grupo, pois sua presença era marcante.

Jovens-adolescentes da unidade feminina pediram para que mostrássemos as fotografias para os jovens-adolescentes da EJLA, aquelas que havíamos visto no encontro anterior, mas eu havia esquecido o pen drive com as imagens e não pudemos assistir. O que causou frustração no grupo.

Figura 7- Roda de Conversa, data 10/10/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

A Figura 6 pra mim é bastante representativa da uniformização pelas vestimentas e da mobilidade e movimentação corporal restrita e ainda tímida. A expressão corporal precisava constantemente ser provocada. Julgo que ao longo dos encontros pouco provocamos essa expansão corporal.

Macela, que chegara após todo o grupo, vindo da unidade feminina, revoltada e agredida, relata ter ficado com as algemas travadas e que os agentes socioeducadores, segundo ela, não se esforçaram para liberá-la, mas ela deixava claro que fez todo o possível para chegar à Roda de Conversa. E chegou, um tanto abalada e fragilizada. Ela pediu muito para participar do Seminário, mas já estava acertada com duas jovens-adolescentes da unidade feminina a participação e tivemos que explicar isso para ela.

Eu não sei por que, mas naquele momento privilegiei a presença de DandaLua ao invés de Macela. As duas eram mães, as duas pretas, as duas com trajetórias difíceis. Mas me parece que foi uma questão de falas. DandaLua se expôs mais, mais esperta dos caminhos de como alcançar o que quer, deu-se a conhecer de maneira a alcançar seus interesses. Já Macela, mais inocente, estava preocupada com selfs, com os carinhos e com a amizade entre as companheiras durante os encontros, o que em alguns momentos me soava descompromisso e só fomos descobrindo isso mais profundamente nos últimos encontros.

Houve uma negociação na Roda de Conversa quando foi preciso criar a lista de quem iria representar o grupo no Seminário. Barbier (2004, p. 110) afirma que a negociação “só pode se desenvolver num universo de avaliação, isto é, de discussão sobre os valores, sobre o sentido”, em que se lida com o incerto, com o dinâmico da vida, que não se pode controlar.

Na proposta da pesquisa-ação existencial, a avaliação e a negociação aparecem como uma prática constante, em que os conflitos são entendidos como oportunidade criadora, como potência para novas elaborações. Como nesse caso, em relação a ida de DandaLua ou Macela, a inicial decisão gera reflexão, troca de ideias entre as profissionais, entre profissionais e as jovens-adolescentes, a expressão de decepção de Macela provoca a tentativa de mudança da decisão. Um constante ir e vir, reconhecer e identificar o que parece mais adequado para as pessoas envolvidas e para o grupo.

No grupo, essa avaliação e negociação foram complexas, pois todos queriam participar do Seminário. Diante da realidade concreta que impossibilitava a ida de todos, o grupo foi tentando entender o sentido de representatividade, o sentido de ser representado por outro, o que iriam fazer lá, o que iriam falar, a troca de informações sobre o que deveria ser apresentado. A leitura de textos preparados por DandaLua e Isidora, evidenciam essa conquista de compreensão sobre o que era aquele espaço e a importância de garantia dele.

Howard Zehr (2008, p. 265) afirma que a Justiça Restaurativa “nos faz lembrar a importância dos relacionamentos, nos incita a considerar o impacto de nosso comportamento sobre os outros e as obrigações geradas pelas nossas ações”. O nome de DandaLua permaneceu na lista até o momento final, mas em conversa telefônica com o gestor da unidade, acertamos a participação de Macela no dia. Porém, na data, DandaLua brigou por sua participação e foi atendida. Quando DandaLua chega ao evento, perguntaram-me porque ela não viria, porque havia sido retirada da lista. Explico que as duas possuíam falas importantes e mereciam estar ali, que Macela tinha demonstrado o quanto desejava estar ali, sua relação com Orfeu e provavelmente sua última oportunidade de encontrá-lo, que independentemente de quem estaria, o que importava era a Roda de Conversa como espaço de troca ser apresentada. Sobretudo, tentava dizer para DandaLua que não havia melhor nem pior, que talvez se ela se colocasse no lugar da outra poderia reconhecer o significado da participação de Macela. Tratou-se de um exercício constante de construção e negociação, na busca de evidenciar que todas as pessoas importam e que o trabalho com esse reconhecimento e protagonismo compartilhado precisa ser aprofundado.

Davenga pergunta quem estará lá os assistindo, pergunta se a juíza estará, que se tivesse ele falaria “que é um menino bom, que se arrepende de tudo e que nunca mais vai

voltar a cometer atos infracionais”. Configura-se um discurso pronto, amplamente repetido no cotidiano dos atendimentos socioeducativos, em que jovens-adolescentes se aplicam, acreditando corresponder à expectativa dos profissionais que o acompanham. Davenga afirma que irá convencer a juíza de que já pode “sair”, progredir de medida socioeducativa. Pontuamos sua irreverência, relembrando que esse não era o propósito do encontro e que, muito pelo contrário, sua postura poderia ser mal interpretada.

Toda terça-feira são realizadas audiências nas dependências do DEGASE, disponibilidade do Judiciário que inicia essa prática em 2016, e no dia 18/10/2016 Orfeu, que seria um dos jovens-adolescentes a participar do Seminário dia 20/10/2016, teve audiência. Paula pode acompanhar junto com profissionais da equipe técnica que o acompanhara e orientar seus familiares sobre essa participação. Garantimos o dinheiro de sua passagem e acordamos o encontro no Prédio do Ministério Público, na quinta-feira seguinte.

DandaLua diz que lá irá falar que se arrepende, mas para nós diz: “posso até falar que me arrependo, mas de fato não me arrependo da vida loka, vivi muitas coisas (fala positiva), mas quando penso na minha filha, aí sim me arrependo, mas acho que é melhor não falar nada disso né..” (Informação verbal)33

. Chega à conclusão, pelas nossas intervenções, a fala de Davenga que seria melhor não abordar esses assuntos.

Paula ajudou muito nos trâmites de lista de nomes, contato com unidades para saber dos nomes dos agentes acompanhantes, nomes dos jovens-adolescentes que iriam pro IV Seminário. O MP criou uma série de exigências em relação à segurança.

Após a Roda fizemos a reflexão que era triste não ter a presença de todo o grupo e que poderíamos pensar em uma representação desta presença, algo lúdico, fotos, imagens, desenhos, palavras, que simbolizassem a presença de todos. Todas as propostas foram fortemente criticadas por uma das profissionais que acompanhava a atividade, receosa das artes geralmente apresentadas como trabalhos dos jovens-adolescentes de baixa qualidade. Chegamos ao consenso do uso de bandeirolas. Essa presença diferenciada finalmente não se realizou, mas este episódio me fez avaliar inseguranças e medos em relação à proposta pedagógica conduzida. A vertente de formação ética e estética do trabalho era de grande importância, mas ainda estava fragilizado e frente a certezas e críticas fortes não se consolidavam.

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Depoimento da jovem-adolescente DandaLua, no sexto encontro da Roda de Conversa, no DEAGASE, Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 2016.