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Rodas de Conversa: III Seminário Internacional Socioeducativo 38 1 O primeiro encontro de retomada (07/11/2016)

3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.3 Rodas de Conversa: III Seminário Internacional Socioeducativo 38 1 O primeiro encontro de retomada (07/11/2016)

Retomamos com o mesmo tipo de estrutura da primeira etapa. Nesse período Angélica Barbosa estava de férias e Paula Vargens, já totalmente integrada ao processo, foi a companheira de construção, e coordenamos de forma compartilhada os encontros. Neste primeiro dia explicamos por que estávamos retomando, explicamos que tínhamos sido

convidados para participar de outro Seminário. Estiveram presentes onze jovens-adolescentes, cinco da unidade feminina e seis da unidade masculina, representantes do grupo anterior que ainda estavam nas unidades de internação.

Figura 11- Roda de Conversa, data 07/11/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

A Figura 10 representa o registro do exercício proposto, em que é representada com o corpo a privação de liberdade.

O III Seminário Internacional Socioeducativo teve como tema “Políticas de Restrição e Privação de liberdade: questões, desafios e perspectivas” e tentamos orientar nossos encontros para o trabalho com essas temáticas.

Dividimos o grupo em dois para discutir os sentidos de Restrição e Privação para além da socioeducação e após discussão fizemos um exercício para tentar expressar isso em imagens. Essa parte não deu muito certo, o que agora avalio como coerente, pois a proposta artística restrita a um tema como ilustração de algo que está sendo debatido nos parece

bastante reducionista e estreita as possibilidades da expressão. Naquele momento, não tinha conseguido formular esse reducionismo, pois já estava contagiada pela interpretação utilitarista do espaço de expressão e das propostas artísticas que desejávamos realizar.

Os filmes exibidos ao longo das primeiras Rodas de Conversa não eram passatempo, nem ferramenta para acalmar ânimos; muito pelo contrário, foram pensados por mim desde o início como mais uma ferramenta expressiva e discursiva que era introduzida como alimento e ingrediente ao repertório cultural e intelectual do grupo. Mas foram recebendo essa leitura de refresco, anestésico e freio quando o grupo estava saturado das discussões. Essa interpretação trazida pela pedagoga Paula Vargens foi equivocadamente assumida por mim, que não tive a percepção do reducionismo que estava sendo feito e passei a repetir o discurso.

Levamos alguns cadernos para distribuir para o grupo e passar a usar durante os encontros. Nos encontros anteriores ao IV Seminário de Formação dos Operadores, percebemos que eles estavam sempre solicitando papel e lápis para escrever naquele momento, inspirados pelo desejo de escrita dos discursos, mas avaliamos que deveríamos levar os cadernos e deixar que eles decidissem o que fazer com eles. Quando colocamos na mesa central. todos pediram canetas e começaram a escrever espontaneamente. Alguns queriam escrever carta para algum familiar, outros queriam escrever bilhetes para outro colega, mas dissemos que se quisessem escrever e deixar nos cadernos não iríamos ler, a menos que eles desejassem. Miquelangelo, antes de sair da sala, diz que nós podemos ler, diz quase como um pedido.

Nesse encontro também levamos alguns livros, vários livros e revistas interessantes. s livros eram em grande maioria em formato de Histórias em Quadrinho (HQ) para adultos. Já as revistas, peguei alguns exemplares da revista OCAS39. O grupo todo se envolveu, havia os que liam, os que escreviam, todos ficaram extremamente envolvidos com o material.

39

A Revista OCAS é produzida pela ONG de mesmo nome, que traz artigos críticos sobre questões ambientais e sociais, mas sempre com um viés propositivo. A OCAS é vendida por pessoas em situação de rua e em situação de extrema vulnerabilidade social, gerando renda para as mesmas.

Figura 12 - Roda de Conversa, data 07/11/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

Na Figura 11 podemos ver revistas, HQ‟s, cadernos e canetas que foram espalhados pela sala no primeiro encontro de retomada das Rodas de Conversa e cada participante foi se apropriando e explorando o material. Nesse momento foi impressionante ver como todos queriam escrever, tinham necessidade e interesse em ter acesso ao caderno. Foi uma proposta espontânea, que surgiu do interesse por parte deles em registrar e preparar o discurso para o IV Seminário dos Operadores.

Margarida não quis voltar à Roda de Conversa neste primeiro dia. Segundo jovens- adolescentes da unidade feminina, ela havia dito que ali não era atividade para ela. Anastácia também não esteve presente, parece que estava participando de outra atividade no mesmo horário. Dentre o grupo que vinha da unidade masculina EJLA, dois não apareceram. O grupo alegava que por mudança de alojamento não estavam sendo chamados pelos agentes socioeducadores.

Damaceno fica bastante envolvido com um dos livros de HQ “Cumbe”, de Marcelo D‟Salete. É uma história com personagens negros, que relata a trama de fuga de um escravo. Ele pede para levar o livro emprestado, mas negamos, por saber que as coisas dentro dos alojamentos se perdem e porque aquele era um livro que tinha pego emprestado da minha

companheira. Ele pergunta se vamos trazer o livro na semana seguinte, afirmo que sim e que ele poderá ler à vontade.

A distribuição de material ao final do encontro respondia de outro modo à necessidade apontada anteriormente por Davenga, da preservação de um espaço de trocas informais e expressão livre entre eles, sem uma finalidade específica, mas alimentado de estímulos positivos. Identificar a necessidade do grupo e dar voz e concretude a essa necessidade é uma forma de cuidado e escuta importantíssima na JR, um dos princípios básicos do trabalho.

3.3.2 O segundo encontro de retomada (21/11/2016)

Tivemos uma convidada, Thais Alvarenga, fotógrafa, negra, moradora de uma favela situada na zona oeste do Rio de Janeiro, próxima ao bairro de Bangu, chamada Vila Kenedy. Convidamo-la para explorar ainda mais a fotografia, já experimentada ao longo dos encontros. Paula, eu e Thais coordenamos juntas a Roda de Conversa, que teve a presença de oito participantes, sendo cinco da unidade masculina e três da unidade feminina.

Thais me enviou uma mensagem às seis horas da manhã, preocupada com o horário, contando que estava tendo intervenção policial na Vila Kenedy, e que esperaria o pai sair para o trabalho, para não sair sozinha de casa naquela situação de conflito armado. Aquela informação foi compartilhada com o grupo no início do encontro e tentei propor uma reflexão para que pudéssemos encontrar uma forma acolhedora para recepcioná-la, mas aquela informação não pareceu encontrar eco no grupo, que ficou interessado por saber o local de onde ela vinha e o motivo da intervenção policial. Todavia, para eles, tudo parecia bastante normal e a informação foi ignorada.

Eu fiquei um tanto irritada com aquela reação, não tendo a dimensão naquele momento do quão banal era aquela informação para pessoas que vivem sob essa situação cotidianamente, uma situação de dormir sob o barulho de tiros. E, de fato, para eles, a realidade não seria a de dormir com o barulho e a preocupação naturalizada para quem é confrontado ao conflito diário, eles estariam provavelmente envolvidos no conflito.

Figura 13 - Roda de Conversa, data 21/11/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

Na Figura 12 podemos ver as fotografias de Thais Alvarenga, distribuídas pela mesa central, registros de espaços populares, de pessoas e de momentos festivos, registros do cotidiano. Ela levou fotografias e livros que puderam ser manuseados pelo grupo. Orlando, morador do mesmo território que Thais, levou uma foto de lembrança.

Orlando, fotógrafo oficial do grupo, desde o primeiro encontro, era quem fazia a maior parte dos registros ao longo dos encontros, ficava extremamente envolvido. Além do interesse pela história, queria saber onde havia acontecido o conflito, onde morava Thais, as fotos que nos trouxera. No meio da conversa, Orlando conta que mora na mesma favela.

Donatelo, ao folhear um dos livros trazidos por Thais, reconhece, em uma das fotos, familiares e conhecidos da comunidade, diz que estava lá naquele determinado dia. Conta que conhece o fotógrafo lá da favela, favela do Jacaré, e relata já ter participado de atividades com ele.

3.3.3 O terceiro encontro de retomada (28/11/2016)

Nossa participação no III Seminário Internacional Socioeducativo tomou o tempo inicial do encontro. Tivemos apenas três encontros, o que nos obrigou a abordar o assunto na véspera também. Pensamos juntos quem iria e explicamos como seria o evento. Estávamos eu

e Paula Vargens e havia nove participantes, cinco da unidade feminina e quatro da unidade masculina.

Foi um dia diferenciado, em que eles tiveram a necessidade de fazer relatos de muitas experiências de violência, falas sobre os atos infracionais. Orlando fala muito marcado sobre o primeiro assalto em que viveu, uma cena que não sai de sua cabeça e que tira seu sossego. Anastácia, que não viera nos encontros anteriores, relata situações de ato infracional e diz não ser violência as práticas que tinha, já que não havia agressão física, entre outros relatos dos quais não me recordo. Só sei que saímos eu e Paula extremamente cansadas e carregadas daquele momento. Ouvimos todos os relatos que aconteciam em conversas paralelas, tentamos interferir em alguns momentos e buscar outras vias de expressão, propus um exercício corporal, mas não havia jeito, estavam com uma necessidade grande de colocar aquelas coisas para fora.