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3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.1 Rodas de Conversa: IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos

3.1.4 O quarto encontro (26/09/2016)

O tema da Roda de Conversa foi Educação, em que partíamos da questão “As escolas dentro do Sistema são melhores ou piores?”. Recebemos como convidada Marcela Lisboa, graduanda em comunicação pela UFRJ, criada no Complexo do Alemão, jovem, preta, com cabelos blackpower que impactou o grupo todo. Marcela Lisboa foi convidada por ter participado ativamente do movimento de ocupação das escolas públicas no Rio de Janeiro e fazer parte de movimento político e estudantil, com questionamentos fortes sobre a discriminação racial e segregação racial, direito à educação e políticas de acesso e permanência de pessoas negras nos espaços universitários. Dentre as profissionais que acompanhavam a atividades, estava eu, Angélica Barbosa, duas profissionais da EJLA, a pedagoga Maria de Fátima e a professora Renata, que só acompanharam a parte inicial do encontro, e também tivemos a participação da Paula Vargens. Neste dia fizemos uma condução coletiva da Roda, com intervenção e contribuição de todas as demais profissionais durante o encontro. Havia dezesseis jovens-adolescentes presentes, sendo sete da unidade feminina e nove da unidade masculina.

Figura 6 - Roda de Conversa, data 10/10/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

A Figura 5 evidencia a participação incisiva de uma jovem-adolescente durante a Roda de Conversa. Apesar de termos algumas participações mais calorosas, o grupo de modo geral participava da conversa e interagia, mas sempre tinha participações mais enfáticas. Os corpos masculinos permaneciam geralmente mais contidos.

Iniciamos o dia conversando sobre o último encontro, perguntei a eles o que tinham pensado ou sentido, contei que eu tinha ficado muito mexida com o encontro, tivemos poucas falas, aproveitamos para reforçar os acordos de relacionamento, o respeito, a fala, a importância da escuta, para que os encontros fluíssem com mais dinâmica e trocas do que o último. Todas e todos participaram desse momento opinando. Citei as propostas de Davenga sobre o tempo para conversa livre, música, poesia e cafezinho, que foi prontamente aceito pelo coletivo. Entretanto tive que explicar que tínhamos um problema com o aparelho celular, que inviabilizava a música e sua livre escolha na internet.

A chegada da convidada Marcela provocou grande alvoroço e entusiasmo no grupo. Fizeram reflexões sobre o cabelo dela, ficaram interessadas de imediato naquela figura.

Propus assistirmos a dois curtas antes de iniciar a troca com a convidada. Assistimos ao curta-metragem “Desmonte”, com duração de 6‟, produzido em uma oficina de audiovisual durante a ocupação de uma escola pública no Méier, filme que trazia performance estéticas

diferenciadas, não era uma narrativa costumeira, um filme com protagonista, trama explicita como habitualmente vemos. Era um filme em que alunos protagonizaram personagens criados, não haviam diálogos, o cenário era de uma escola abandonada existente atrás da escola em que estudavam e descoberta durante o período de ocupação. Corpos pretos dançavam, performava, corriam pelas cenas.

O outro vídeo foi o da performance “O Julgamento do Pezão (Paródia Baile de Favela) #MartinsSemPena”, com duração de 10‟, que exibia a performance manifestação realizada na escadaria da ALERJ por alunos da Escola Estadual de Teatro Martins Pena que reivindicavam mais investimento na educação pública e denunciavam a corrupção.

Após a projeção do vídeo da performance, Davenga falou: “é mesmo, esse governador aí roubou muito, né?”. Decidi passar o segundo filme logo em cima para não dar brechas a uma demonização do atual governo, que não era o objetivo; uma crítica mais ampla sim, o que fizemos depois. Cabia falar sobre políticas públicas, orçamentos, destituição da verba pública, o que fizemos superficialmente.

Durante a projeção, Macela dizia: “Isso aí é muita cultura, né, não! Muita cultura!”, fazendo menção às linguagens e estéticas presente nos filmes, tão diferente do seu repertório, mas em diálogo com ele, já que a paródia era de uma música de funk muito conhecida. Muito depois, jovens-adolescentes me contaram que diziam “muita cultura” quando não entendiam, mas mesmo assim pediam pra assistir novamente e a cada vez as reações eram diferentes, iam tecendo considerações e perfazendo suas próprias narrativas sobre o que era visto.

Entendo que esse foi um momento importante, em que vivenciamos juntos uma ampliação de repertório – ouvir uma música, no estilo funk, um repertório musical familiar ao grupo, em um contexto totalmente diverso do espaço habitual, conhecido, de sua socialização. A música recebeu uma leitura de reivindicação e manifestação política, o local (não era um baile), as pessoas e suas maquiagens, as atitudes, tudo destoava do conhecido, levava-os para outra experiência. Essa foi uma expressão interessante de ampliação de repertório ético e estético e ao mesmo tempo de reinvenção do repertório, transformação dos usos possíveis do funk, e ou valorização de um uso especial pouco valorizado: narração, divulgação, denúncia.

Após os vídeos, Marcela se apresentou, contou um pouco de sua trajetória. Discutimos sobre o que significava morar na favela e as escolhas/opções que nos são apresentadas nestes territórios.

Vale destacar que a temática “território”, a segregação territorial vivida cotidianamente, a partir da experiência sofrida por parte de moradores de espaços populares, tem sua identidade territorial depreciada constantemente nas grandes mídias, quando

difundem apenas fatos de violência e precariedade. O território é uma identidade que precisa ser reinventada, fortalecida e discutida, para que a imagem da precariedade e da violência deixe de ser a única saída, pois não é verdadeiro. Na posição de educadoras precisamos, a todo momento, provocar um deslocamento e ampliação desta visão reducionista, ampliar o olhar e poder encontrar, ver, enaltecer relações de sociabilidade, micropolíticas e experiências positivas tecidas no cotidiano dos espaços populares.

Segundo Zehr (2008, p. 55), “pessoas que se veem como fracassados têm maior probabilidade de afirmar sua identidade através do crime”. Essa reflexão trazida pelo autor dialoga com a necessidade de compartilharmos ferramentas que possibilitem aos jovens- adolescentes revisitar suas realidades, a partir de um ponto de vista diferenciado e construir, assim, outras possibilidades de olhar, mais positivas, sobre si próprios. Seguindo o raciocínio do autor, “nossa sociedade tende a incentivar pessoas marginalizadas a se enxergarem como perdedoras ao invés de vítimas” (ZEHR, 2008, p. 56) e essa situação não contribui para que possam exigir mudanças, reivindicar políticas e se implicar na transformação de sua realidade, nem tampouco no reconhecimento de seu valor. Zehr ainda pontua que “muitos crimes são uma forma distorcida de afirmação do próprio poder e valor, uma tentativa desastrosa de autoafirmação e autoexpressão” (ibdem, p. 52). Acredito que precisamos contribuir para outras formas de autoexpressão e autoafirmação.

Marcela, a convidada, falou sobre estudo, escola, educação e pediu para que o grupo se apresentasse e pontuasse algo sobre sua relação com a escola e com a educação. As falas que saíram desse momento foram muito fortes e interessantes:

“A gente é problemático, a gente não consegue ficar na escola.” “A escola é importante. Mas eu não quero voltar.”

“Eu já fui expulsa de todas as escolas, nenhuma escola mais me aceita.”

“A escola devia ser construída pelos alunos, não é só professor que passa tempo na escola.” (Informações verbais)31

Marcela fez referência a dois dados raciais de extrema importância. Pontuou, dados que podem ser encontrados nos estudos de Lilia M. Schwarcz, a influência “da tese de branqueamento e da depuração das características índias e negras que compunham nossa população” (SCHWARCZ, 1993, p. 258 (11)) por João Batista Lacerda em 1900, assinalando que era defendida a ideia de que nossa sociedade só poderia evoluir se não houvesse mais pessoas pretas nem indígenas. E o outro dado abordava os índices de morte de jovens negros no Brasil, divulgados pelo Mapa da Violência no Brasil, sinalizando que “a cada 23 minutos

31 Depoimentos fornecidos pelos jovens-adolescentes participantes do Quarto Encontro da Roda de Conversa, no

morre um jovem negro no Brasil” e, assim, traz a temática racial para dentro da nossa discussão sobre educação de forma impactante.

E eles disseram:

“Conheço mais armas do que livros.” “Estou aqui pra matar e pra morrer.” “Todo mundo vai morrer um dia.” “Já perdi muito amigo meu.” (Informações verbais)32

Apesar de falarmos sobre a morte de jovens negros, eles continuavam afirmando firmemente que estavam ali “pra matar e pra morrer”, não ficavam chocados, nem acreditavam muito em nós. Somente sobre a questão da raça uma das jovens-adolescentes em um momento fala de branquinhas patricinhas da zona sul com agressividade, afirmando que poderia fazer e acontecer, barbarizar com elas. Insistíamos dizendo que morriam mais em certos territórios, em especial, em espaços populares, mas a questão parecia irrelevante para eles.

Nesse encontro o grupo participou intensamente, discordando de nós e deixando claro que nossa visão tão crítica para eles era indiferente. A atitude deles em resposta parecia a priori, descomprometida com a vida, a relação direta, concreta e aceita da morte parecia desumana. Poderíamos ter enquadrado essas respostas em um quadro analítico de banalização da violência, banalização da morte. Porém a radicalidade deles parecia nos mostrar algo além e não conseguíamos compreender. Nosso pensamento elaborado e crítico estava sendo colocado a prova, pessoas pensantes, leitoras críticas estavam face a uma realidade e a um muro de concretude mediante uma situação social que evidencia o descaso político e social com as vidas, com as pessoas, algo que está para além da relação direta e cotidiana deles com a morte. Eles não tinham argumentos para teorizar sobre a verdade da morte, mas a repetiam com força. Nosso interesse era conectar com o valor da vida, com o bem que se chama vida, mas nossa maneira de falar sobre o assunto pareceu em dissonância com a vivência deles e eles não reverberavam nas temáticas.

Uma autocrítica que vale a pena ser destacada a essa altura das Rodas de Conversa é que neste momento chegamos a um impasse do qual julgo não termos sido capazes de ultrapassar. Os jovens-adolescentes afirmavam um ponto de vista e nós outro, oposto. Não soubemos lidar com isso. A questão que fica agora é: será que deveríamos ter nos munido de

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Depoimentos fornecidos pelos jovens-adolescentes participantes do Quarto Encontro da Roda de Conversa, no DEAGASE, Rio de Janeiro, em 26 de setembro de 2016.

um arsenal de informações e provas para combater o que nos parecia ali um pensamento imediatista e sem consistência? Ou a melhor escolha seria nos abrir para entender, ouvir o que se escondia por detrás daquela afirmação “estamos aqui pra matar e pra morrer.”? A partir da ótica restaurativa, a melhor escolha seria investigar o que estavam expressando com aquela sentença, buscar ouvir e perceber que dores se escondiam por traz daquela frase taxativa. Certamente cada um teria uma dor específica e diferenciada.

A reflexão que me permiti fazer após todos os encontros, algo que já me inquietava anteriormente, e que ali tomava corpo, é que entrar para o tráfico, portar uma arma, conduzir uma moto, mesmo não tendo a maioridade para nem mesmo a habilitação, parece ser uma expressão forte de participação e atuação em suas realidades, participam daquele „jogo‟. Participam, intervêm, agem, reagem e interagem com aquela realidade que está presente e é uma verdade não ignorável em seus cotidianos. O fato de existirem redes criminosas territorializadas, pessoas armadas, comércio de drogas ilícitas, constantes conflitos armados, intervenções pontuais e extremamente violentas dos serviços de segurança pública, entre outras violências decorrentes, impõe uma realidade teorizável, porém não sabemos o que significa viver isso cotidianamente. Existem pessoas que se envolvem e atuam com essa realidade e pessoas que se afastam dela, mas não podemos deixar de pensar que esta é uma realidade existente, uma escolha possível na paleta de escolhas e possibilidades de vida.

Nesse sentido, parece-me muito cruel convencê-los de um pensamento crítico, racional, pautado nas regras de civilização e respeito às leis, quando não gozam plenamente de seus direitos e estão ali afirmando que mesmo assim, agem, sentem desejos, têm potência e intervêm em suas realidades. O caminho parece exigir de nós profissionais um exercício mais complexo, que passa pela valorização do ato, valorização da potência, reconstrução de elos comunitários e reconstrução de identidade territorial positiva. Evidenciar relações que valem a pena serem preservadas, vidas, pessoas – mas isso requer um olhar um tanto despretensioso e menos distanciado dessa realidade que não conhecemos e mesmo assim nos permitimos condenar – requer não condenar, nem marginalizar essa que é a experiência deles.