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Pesquisa-Ação Existencial e Justiça Restaurativa

2. JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RECURSOS SOCIOEDUCATIVOS

2.10 Pesquisa-Ação Existencial e Justiça Restaurativa

A presente pesquisa se inscreve no campo da Pesquisa-Ação Existencial, evidenciando pontos de contato em muitos aspectos. Na compreensão dessa abordagem identificamos noções que também se harmonizam com a Justiça Restaurativa. Nesse sentido, fez-se necessário apresentar o quadro teórico da Pesquisa-Ação Existencial, segundo René Barbier (2004), na busca de tecer relações entre as duas propostas.

O pesquisador que nos dá a conhecer essa abordagem teórico metodológica, René Barbier, coordenou investigações no campo da sociologia da educação e das chamadas ciências da educação na França, a título de professor emérito da Universidade de Paris VIII Saint Denis até 2007. A pesquisa de tipo Pesquisa-Ação Existencial apresenta uma proposta científica singular que engloba o afetivo e o sagrado na abordagem social e humana. E não por acaso, quando investigamos suas referências, encontramos um estreito diálogo com culturas orientais, com o educador Jiddu Krishnamurti, com o filósofo Cornelius Castoriadis, com o sociólogo Edgar Morin e com o psicanalista Carl Gustav Jung, dentre outros.

No livro “A Pesquisa-Ação” (2004) o autor afirma que essa modalidade de pesquisa é uma revolução epistemológica dentro da sociologia por sua eficácia política e social. Na pesquisa-ação existencial, o pesquisador é obrigatoriamente implicado e compreende que “as ciências humanas são, essencialmente, ciências de interações entre sujeitos e o objeto de pesquisa” e nesse sentido “não se trabalha sobre os outros, mas sempre com os outros” (BARBIER, 2004, p. 14). Ao mesmo tempo que se está pesquisando, está-se agindo sobre uma dada realidade, provocando transformação e produzindo saberes com as pessoas envolvidas, uma proposta participativa e política, na qual a compreensão vem antes da explicação, uma pesquisa em ação.

Tendo surgido há mais de 60 anos é a partir do final dos anos 60 que o autor identifica uma real radicalização epistemológica, acentuando a ação nessa abordagem. Diferenciando-se de forma radical da pesquisa clássica, o compromisso aqui está centrado nos processos de ação e transformação, em que “não se pode ignorar a sensibilidade, enquanto fato social” (ibdem, p. 21).

Nesse sentido o objeto na pesquisa-ação emerge durante o processo de pesquisa e “o problema nasce, num contexto preciso, de um grupo em crise” (BARBIER, 2004, p. 53). Possui um traço importante que é o feedback. E nesse processo o pesquisador é um mediador que promove condições favoráveis à análise da situação, sendo capaz de fazer uma leitura múltipla das situações, que inclui a intuição, a criação e a improvisação, saindo de esquemas

habituais e dominantes. E Barbier acentua dizendo que a “categoria do “sensível” corresponde a seu eixo central de compreensão” (BARBIER, 2004, p. 71).

Há um destaque em relação aos conflitos que surgirão durante o processo da pesquisa- ação, conflitos não provocados intencionalmente, mas aqueles que emergem ao longo do processo. O conflito “considerado mais criador do que destruidor” (ibdem, p. 71) é uma fonte no processo de pesquisa em que pesquisadores atuam em um contexto de transformação. Não se pesquisará sobre determinado contexto; pesquisa-se o contexto em parceria com as pessoas envolvidas, atuando sobre ele e assim o transformando. Nesse sentido, é considerada a metodologia “que mais diretamente aborda as situações limites da existência individual e coletiva” (ibdem, p. 74), atuando tanto na dimensão teórica quanto prática, incidindo sobre ação e discurso, ao mesmo tempo que o autor nomeia de dimensão praxiológica. É essa característica, da mudança, que a difere de outros tipos de pesquisa ação e que, segundo Barbier garante uma nova maneira de conceber a pesquisa em ciências humanas, visto que confere ao pesquisador uma nova função de atuação prática no meio social.

Barbier (2004) aponta a complexidade, a escuta sensível, o pesquisador coletivo e sua escrita, a mudança, a negociação, a avaliação, o processo e a autorização como noções essenciais à pesquisa-ação existencial. E vale destacar que ao longo de seu livro, a proposta do autor em fazer uso de noção, em vez de conceito, defendendo noção como algo em processo, raciocínio em construção, está mais no campo das hipóteses e propostas provisórias, em oposição ao conceito que traz uma definição fechada.

A complexidade, uma das noções-chave desta abordagem, aponta-nos a interdependência entre as partes, pois permite que lidemos com a incerteza, o imprevisível, a contradição e o não saber, estando baseada no diálogo, no movimento constante entre produto e produtor, e no princípio hologramático: “o todo está no interior da parte que está no interior do todo”.

A noção de escuta sensível nos fala de uma escuta sem julgamento, que não interpreta, uma escuta que ao mesmo tempo nos permite escutar e ver. O autor a associa a uma atitude meditativa que se apoia na empatia; é uma escuta que permite sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo das pessoas envolvidas. Essa atitude que permitiria reconhecer o ser, “sua qualidade de pessoa complexa, dotada de uma liberdade e de uma imaginação criadora” (BARBIER, 2004, p. 96). Trata-se de uma escuta multirreferencial, que não está assentada na interpretação dos fatos, mas que abarca concomitantemente as dimensões científica, filosófica e mitopoética.

Na pesquisa-ação existencial, o pesquisador atua mais como mediador e vai formando o coletivo nesta arte investigativa, que tem implicações com o processo de construção de conhecimento sobre sua própria prática. A participação coletiva é condição para a pesquisa- ação existencial.

A mudança, como dissemos anteriormente, é uma noção importante, podendo envolver diversos aspectos, “atitude, práticas, situações, condições, produtos, discurso” (ibdem, p 106).

A noção de autorização propõe que a pesquisa-ação possa favorecer “a emergência de uma capacidade de ser seu próprio autor” (ibdem, p. 115), e essa autoria diz respeito não só à construção escrita, mas, sobretudo, à autoria em seu processo de desenvolvimento e autotransformação, “tornar-se autor de si mesmo”.

Essas noções dialogam em muitos aspectos com a Justiça Restaurativa, visto que a prática restaurativa convida as partes envolvidas a tomarem partido no processo de resolução do conflito no qual estão envolvidos, seja um conflito de esfera jurídica ou não. Ou seja, convida-os a atuar de forma autoral durante o processo, que a todo momento é pautado por uma escuta de tipo sensível, como a escuta apontada na pesquisa-ação existencial. O diálogo que aparece na pesquisa-ação é o cerne da proposta restaurativa, que não chega com uma proposta pronta, mas vai durante o processo avaliando e negociando a melhor decisão a ser tomada.

Nas duas propostas, a dimensão afetiva está presente e é elemento fundamental que precisa ser acompanhado durante um processo que visa transformação e que fatalmente colocará o grupo em contato com esferas de si mesmo, às vezes profunda. O sentido dado ao conflito no âmbito da pesquisa-ação existencial é o mesmo presente na justiça restaurativa; o conflito como criador, que possibilita a transformação, e não como destruidor.

A pesquisa-ação existencial aborda muitas teorias e noções que merecem uma dedicação aprofundada nos limites deste trabalho; entretanto, estamos apresentando de forma resumida a obra “A Pesquisa-Ação”. Buscamos destacar os aspectos que mais dialogam com o trabalho realizado e analisado neste documento – as Rodas de Conversa –, e que permitem estabelecer uma relação com a justiça restaurativa. O interesse em discorrer sobre a pesquisa- ação existencial dentre as abordagens teóricas utilizadas se fez necessário pela importante associação identificada entre esta e os demais referenciais teóricos utilizados no trabalho.

3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO