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3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.1 Rodas de Conversa: IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos

3.1.1 O primeiro encontro (05/09/2016)

O grupo iniciou com dezoito participantes, dez provenientes da unidade masculina e oito da unidade feminina. Ao longo dos encontros, alguns receberam progressão de MSE, outros mudaram de turno escolar e, no caso das jovens-adolescentes da unidade feminina, outras vieram ocupar suas vagas nos três primeiros encontros. Depois o grupo foi reduzido e terminamos os encontros com 16 participantes.

Esse primeiro encontro foi dedicado ao acolhimento e recepção do grupo. Eu coordenei este momento em que era previsto abordar o tema Justiça, mas que acabou se tornando um encontro de apresentação, com uma conversa despretensiosa.

Realizados os preparativos, os socioeducandos compareceram dentro do horário previsto, os participantes do sexo masculino evidenciaram uma tensão provocada pelo descontentamento em relação à presença de facções diferentes. À minha postura de falar, ao falar sobre a nossa capacidade de convivência juntos, no mesmo local, com o diferente, e à minha pergunta “está tudo bem”, responderam “vai ficar tranquilo”, “suave”, vocabulário muito utilizado e que naquele momento deixou claro que iriam encontrar um meio de

permanecerem juntos. Mexeram-se nas cadeiras, cada um procurou o melhor local para se sentar e cumpriram o acordo com tranquilidade.

Atividade prevista para aquele dia contava com a participação da Paula Vargens, pedagoga do DEGASE, com formação em direito, que teve um problema no carro e chegou já no final do encontro.

Figura 3 - Roda de Conversa, data 05/09/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

A Figura 2 exibe um registro fotográfico feito por um dos participantes da Roda, do primeiro encontro em que estávamos promovendo a ambientação e acolhimento dos jovens- adolescentes na Roda de Conversa. O desejo de compartilhar esses registros fotográficos vem da proposta de compartilhar com o leitor o universo em que eram realizadas as Rodas e evidenciar que são jovens-adolescentes. Se não fosse o uniforme, seriam apenas jovens- adolescentes.

A tensão entre as facções foi constantemente questionada; buscávamos propor outra experiência e reforçávamos a necessidade de deixar todas e todos falarem, a partir de suas percepções. Avaliamos, após todos os encontros, que esse estranhamento inicial já não se imprimia de forma tão agressiva. Na unidade feminina, esse confronto é vivenciado de forma diversa da unidade masculina. Na EJLA, unidade masculina, uma tônica de opressão e hierarquização é constante, o confronto é declarado, passando pela força física e pelo

cerceamento da fala, entre outras experiências. Na unidade feminina as jovens-adolescentes vivenciam uma relação de maior mistura no cotidiano. Apesar de sabermos que é um esforço do DEGASE como um todo promover o convívio e a relação dialógica, a Roda de Conversa pareceu ser mais um espaço para conviverem com a diferença.

Nas atividades cotidianas do DEGASE esse recorte está presente. Jovens-adolescentes se oprimem ou se defendem de acordo com o pertencimento a uma determinada “facção do tráfico”. Nas aulas escolares, nas refeições, na divisão de alojamentos, na participação em cursos, oficinas e atividades, em geral, há iminência de conflito, em consequência da afirmação deste pertencimento. A atuação profissional não fica indiferente a essa prática e, por outro lado, há vigilância permanente para que a dinâmica das instituições não seja pautada pela lógica de separação impressa nas práticas destas redes criminosas territorializadas.

Da unidade feminina, CENSE PACGC, compareceram apenas oito. Novo frisson, dessa vez positivo, já que a lógica institucional é a da separação entre os sexos. Apenas duas unidades de semiliberdade atendem ambos os sexos, e ali, naquele espaço, as brincadeiras, a paquera, os olhares, entre aproximações e repulsas foram vivenciadas.

Iniciamos a primeira atividade em que foi provocado o convívio entre todos. Precisavam formar grupos a partir de trechos de músicas deles conhecidas, distribuídas aleatoriamente, atividade que funcionou medianamente e dessa seguimos para uma primeira roda de apresentação, em que cada uma e cada um falou seu nome e idade. Naquele dia, dois socioeducandos, vindos do CENSE PACGC, que se apresentaram por nomes masculinos, nome social, sendo assim identificados como meninos trans, não sofreram nenhuma retaliação pela diversidade de gênero apresentada.

Havia nomes que remetiam a filósofos, personagens bíblicos. Acabei fazendo associações com personagens da história universal. Praticamente nenhum deles conhecia o significado de seus nomes ou o porquê de terem sido batizados com ele. Duas jovens- adolescentes ficaram curiosas por saber o significado de seus nomes; anotei, pois não sabia e prometi procurar.

Ficamos muito surpresas em perceber que em momento algum nem naquele primeiro dia, nem nos dias que se seguiram, a identidade trans de dois jovens-adolescentes foi alvo de questionamento ou retaliação. Entre nós pedagogas, coordenando o trabalho, julgamos que o ambiente acolhedor e receptivo proposto para a Roda de Conversa, nossa atitude de naturalidade no momento da apresentação, colaborou para isso.

Observam-se nestas práticas características de práticas restaurativas que coexistem com práticas caracterizadas pela CNV e pela pedagogia progressista que, conforme registros

anteriores, são teorias que confluem e dialogam como proposta teórico-prática na busca da promoção humana. As propostas reforçam entre outras as relações pacíficas entre grupos ditos rivais. Estabelecer relações entre hetero e homoafetivos, que na sociedade é perpassada pela perversidade da homofobia, provoca com frequência o homicídio. Estabelecer relações entre os diferentes sexos geralmente hierarquizados em relações pautadas pelo patriarcalismo coloca em discussão, sobretudo, as dicotomias que separam e segregam, promovendo violência e exclusão.

A palavra “paz”, no contexto da Justiça Restaurativa e da CNV, toma um sentido diverso das bandeiras e slogans que defendem a igualdade entre todos. Relações pacíficas dentro das correntes estudadas visam admitir as relações violentas e cuidar delas, identificar os conflitos e buscar soluções em que as partes sejam cuidadas.

Fizemos uma dinâmica com trechos de música: a dinâmica consiste em distribuir frases de músicas e os participantes precisam encontrar as frases que fazem parte daquela mesma letra. A ideia era provocar já de início uma mistura e um encontro entre meninas e meninos, entre diferentes. Havia selecionado trechos de seis músicas (“Beijinho no ombro”, da Valesca Popozuda; “Vou Festejar”, de Beth Carvalho; “Meu Rap é Jazz”, de Tássia Reis; “24 Horas Por Dia”, de Ludmilla; “Boa viagem”, de MC Thetheus e MC Juninho (jovens- adolescentes que estavam na EJLA); “A Vida é Desafio”, dos Racionais Mc's).

Tentamos ouvir as letras e ver os clipes, mas não foi possível por um problema de conexão de internet. Tínhamos vontade de ler a letra das músicas, mas tudo parecia muito rápido e eram muitas informações por segundo. Todos participaram da dinâmica, com certa dificuldade, pois queriam evitar esse confronto/encontro com o diferente. Nós pedagogas ficamos incentivando, dando dicas para ajudar e alimentando a proposta. Após todos terem encontrado os trechos correspondentes, terem mais ou menos se reunido nesses grupos e identificado suas músicas, pedimos que fossem ao meio colocar em ordem e ler/cantar para o grupo, formaram-se cinco grupos e cada ida ao meio foi feita por um ou dois representantes daquele trecho. Vimos jovens-adolescentes que ficaram de fora, principalmente do sexo masculino; entendemos que para as jovens-adolescentes do PACGC esse convívio entre facções é constante, não causando repúdio.

Após essa dinâmica propus um jogo usado no teatro para nos ajudar a guardar os nomes e que ao mesmo tempo provocava um movimento corporal, já que ainda estavam muito estáticos, pouco usavam o espaço, e já sabíamos previamente que seria assim, em especial, com relação aos da EJLA, que apresentam geralmente corpos contidos, com menor possibilidade de expressão e movimento nos espaços. O jogo consistia em falar o nome de

outra pessoa da roda, andando em direção a essa pessoa e ocupar o seu lugar na roda. Fazíamos até completar o nome de todos; fizemos duas rodadas.

Após a dinâmica com a música e a primeira rodada de apresentação, tivemos uma breve conversa sobre o que era uma Roda de Conversas, se já haviam participado de alguma e, se sim, como acontecia. Algumas meninas relataram já ter participado sim e o grupo em geral apontou regras: como pedir a palavra, quando um fala todos ficam em silêncio, “vocês propõem um tema pra gente conversar”. Recordo-me de falas bem rígidas e nós suavizamos um pouco a dinâmica de regras. Só dissemos que uma máxima era escutar quando alguém está falando. E apontamos que eles também poderiam trazer temas do interesse deles para a conversa. Outra reflexão de nossa parte era de que não existia um ponto de vista correto, que a ideia era trocar e respeitar a visão do outro. Falamos ainda que todo sentir era livre e toda fala tinha valor.

Contamos pra eles sobre o objetivo daqueles encontros, que visavam à participação deles em um seminário. Em praticamente todos os encontros pontuamos isso e íamos explicando o que era um seminário, como acontecia.

Começamos uma conversa buscando a princípio abordar o tema previsto – justiça. Disseram que queriam falar de Justiça, Liberdade e a conversa acabou girando em torno do tema Traição e saíram as seguintes reflexões (trechos retirados de minhas anotações, são aproximações das falas dos jovens-adolescentes):

“Os políticos roubam milhões”;

“posso trair porque não sei o que ela está fazendo”; “o importante é amar e ser amada”; “a mulher precisa se dar o respeito para ser respeitada”; “não tem regra prévia, se for bom pra mim e pra ela, a relação pode ser como a gente quiser”; “na vida loka tem traição”;

“É normal, é a condição do preso, se relacionar com outra menina, a namorada lá fora tem que entender!” (fala de jovem-adolescente do PACGC);

“Tu acha que eu não queria estar tranquilinho com a minha mulher? Quando for mais velho, vou morar em um lugar sossegado e não vou precisar pegar um monte de mina” (fala de jovem-adolescente da EJLA, Davenga). (Informações verbais)27

Tenho lembranças das falas de Davenga, lembro-me dele dizer que “as mulheres tem que aceitar mesmo”, fazendo menção à traição de homens. Suas reflexões tinham cunho extremamente machistas e reforçavam a todo momento as regras de sua facção. Por outro lado, afirmou em vários encontros que quando ficasse mais velho e não tivesse mais na “vida loka” (sinônimo de vida do crime, vida no tráfico) queria outra coisa, não precisaria trair. Afirma também que gostaria de ser um playboisinho (menino de classe média, bem vestido,

27 Depoimentos fornecidos pelos jovens-adolescentes participantes do Primeiro Encontro da Roda de Conversa,

que mora em bairro chique), com “carrinho” do ano, fazer faculdade; mas parecia ver tudo isso como muito distante dele: “não é pra mim ”.

Uma das jovens-adolescentes, que só esteve presente nos dois primeiros encontros, afirmou taxativa que “as mulheres tem que se dar o valor” (respeitar as regras machistas/ do tráfico), “estão junto por que querem”, “já sabiam como era”. E ela segue reforçando que é assim e ponto. Ela fica muito irritada com a fala de Isidora quando relata sobre o carnaval, que diz: “aí a gente entra no trenzinho, e como... doidona. É bom demais”.

Nas posturas descritas acima, percebemos a reprodução de comportamentos coercitivos, em relação à postura da mulher na sociedade. A postura da jovem-adolescente segue incondicionalmente à dominação masculina, típica do patriarcalismo. A cada encontro afloravam inúmeras temáticas; cada fala dava a oportunidade de abrir um novo campo de discussão, pois no relato trazido temos de um lado um posicionamento de reprodução de padrões machistas e por outro lado uma identificação entre felicidade, prazer, satisfação, ao uso de drogas ilícitas.

Heitor (nome social), menino trans, fala de poder construir junto com a parceira o tipo de relação que se quer; não quer impor nada, nem ser submetido a nada.

André (nome social) já tem uma visão mais machista. Ametista diz que não consegue falar quando perguntamos para ela o que ela pensava sobre o assunto.

A Margarida se colocou “muito bem”, sua fala dialogava com nossas falas; não sabia se podia ou não trair, mas foi fazendo ponderações, tentando opinar e construir sua posição. Lembro-me dela sentada perto da porta com discurso eloquente e empoderado, mas não consigo me lembrar do conteúdo da sua fala, só lembro que ela se colocava em alto e bom som, diferente de suas colocações posteriores, e sua fala destoava de todas as demais. Vale destacar que mesmo sua fala estando em consonância com nossa visão de mundo (das pedagogas), buscamos não exaltar nem privilegiar seu pensamento.

Durante as reflexões, deixamos a conversa fluir solta, fazíamos algumas perguntas ou tentávamos passar a palavra para um ou outro jovem-adolescente que não estivesse participando, mas procuramos manter uma postura de não julgamento às falas que eram trazidas pelo grupo. Provocávamos reflexões, tentando ir além do que era dito, entender melhor, mas sem posicionamento, dizendo que algo estava certo ou errado. Quanto à fala de não ser a vida deles ter carrinho do ano etc., questionamos por que, e eles afirmavam que era assim. Nas falas sobre traição, falamos que para nós as coisas podiam ser acertadas, o que era combinado podia acontecer para ambas as partes do casal e aí eles diziam que isso era no nosso mundo, só funcionava para nós e não para eles.

Nem todos os participantes ficaram à vontade para fazer colocações durante a roda. Alguns preferiram observar, ficar quietos isso nos parecia insatisfação. Ao serem questionados se estavam gostando e se continuariam, respondiam positivamente. E alguns falaram claramente: “qualquer coisa para sair do alojamento”. Ao final do encontro, li uma poesia e propus ao grupo passar o livro de poesias para ver se alguém gostaria de recitar. Muitos olharam o livro, leram para si, mas somente duas jovens-adolescentes se sentiram à vontade para recitar. Macela, menina negra, iniciou a leitura e logo se desencorajou, sendo substituída por Margarida, a única branca do grupo, sob a alegação de que esta última lia melhor, mais alto.

Nesse encontro podemos explorar uma característica comum à Justiça Restaurativa, à Comunicação Não Violenta, à Pesquisa-Ação Existencial e à Pedagogia Progressista, que é o estabelecimento de relações empáticas. A primeira delas é a ênfase no acolhimento. Foi preparado um ambiente favorável à livre expressão dos jovens-adolescentes. O acolhimento nas práticas de Justiça Restaurativa é um ponto-chave para que seja favorecido um espaço seguro de fala e escuta. A recepção e o acolhimento, que podem ser evidenciados nos objetos colocados à disposição (máquina fotográfica para livre registro, acesso à rede para escolha de música de preferência, um lanchinho), além das atividades propostas, a dinâmica de apresentação, uma rodada de apresentação em que buscamos a todo momento construir laços, cuidar de cada um e mostrar o quanto sua presença era fundamental para a realização da atividade, atitudes que os permitia ver que ali havia real escuta e respeito de suas identidades. A valorização de todas foi um ponto importante desta recepção, uma atitude e uma disponibilidade que abriram portas para que pouco a pouco pudessem se entregar aquela interação.

Naquele espaço, os sentimentos e as necessidades não foram elaboradas de forma explícita, mas tudo levou a entender que pediam e gozavam com prazer daquele momento em que podiam se expressar, eram ouvidos e estimulados em suas falas. O pedido estava claro na manutenção de um espaço agradável, sentiram-se respeitados e acolhidos ali. Prezavam pela manutenção daquela experiência; muitos se inquietavam se haveria o encontro seguinte, diziam que aqueles encontros não podiam parar, a cada encontro pelo menos um perguntava se nos encontraríamos na semana seguinte.

O acolhimento e o estabelecimento de relações empáticas também foram favorecidos pela escuta sensível e empática exercitada desde esse primeiro encontro. Na discussão tentamos exercitar a escuta sem expressão de pré-julgamentos ou categorização do que era dito, tais como, a defesa e o pertencimento ao tráfico de drogas, a afirmação de discursos

extremamente machistas. A proposta que me disponibilizei a exercitar intuitivamente foi de acolhimento e busca da compreensão de algo que se expressava por trás da fala aparentemente agressiva e violenta. Buscava investigar, me interessar pelos sentimentos e necessidades não atendidas que aquelas falas anunciavam. Entretanto, ainda não tão segura das práticas de CNV e JR, não consegui passar para a etapa de conferir minhas impressões, confirmar se tinha entendido a informação que eles queriam emitir, ou pelo menos não o fazia de forma consciente.

O movimento e a expressão corporal, apesar de não estarem apresentados nas abordagens teóricas trazidas, é uma via de linguagem e comunicação que foi privilegiada a todo momento, pois entendemos que o corpo possui necessidades e sabedorias, e a expressão precisa contemplar essa dimensão, em especial, em espaços de privação de liberdade, nos quais os corpos são extremamente controlados e a liberdade de movimento é permanentemente cerceada.

Paulo Freire (1996), no livro Pedagogia da Autonomia, defende o “quão importante e necessário é saber escutar”, segundo ele, “somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele” (FREIRE, 1996, p. 127).