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3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.1 Rodas de Conversa: IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos

3.1.3 O terceiro encontro (19/09/2016)

O tema dessa Roda foi “Cuidado” e nos inspiramos na questão “Por que temos acesso a mais direitos quando estamos privados de liberdade?”. Coordenei este encontro, que teve como convidada Flávia Lisboa, psicóloga do DEGASE, que também possui experiência de trabalho com jovens em favelas e construção de projetos de vida. Havia quatorze jovens- adolescentes neste dia, sendo sete de cada unidade.

O dia começaria por uma proposta de dinâmica que a convidada Flávia logo abriu mão por avaliar que era muito aberta e ousada para um grupo que julgou numeroso, que não conhecia e se mostrou agitado e dispersivo, sobretudo na socioeducação em que as atividades que demandam um trabalho corporal (que não seja esporte) são pouco habituais. O dia começou diferenciado e foi assim até o final.

Iniciamos com uma atividade em que todos falavam um pouco do que gostavam de fazer. Todas e todos participaram e num segundo momento a proposta foi pensar sobre o que a MSE traria de contribuição para a vida deles. Iniciou bem, depois houve grande dispersão. Anotamos as falas deles.

As respostas à pergunta sobre o que gostavam começaram com: Eu gosto de “sexo”, “futebol”, “maconha”, “praia”, “traficar”, “roubar”, “eu gosto é de ser piriguete”, “dançar”, “comer buceta”, “mulher”, “curtir a vida”, “liberdade”, “piru”. (Informação verbal)28

Esses foram os interesses que conseguimos anotar ali naquele momento. A listagem ia ficando cada vez mais picante. Entendemos que eles estavam ali experimentando, testando esse espaço onde se podia dizer o que se queria e, ao mesmo tempo, provavelmente nos testando. As falas foram acolhidas, em alguns momentos perguntávamos se era só disso que gostavam ou se existiam outras coisas, mas buscamos respeitar esse espaço de experimentação sem julgar suas falas.

O propósito de Flávia era abordar o tema da construção de projetos de vida, de como encaminhar nossos desejos para ações que nos permitam produzir, criar, ter acesso à renda etc. E cada preferência, desejo sinalizado pelo grupo de jovens-adolescentes, oferecia um rico espaço de discussão e construção de questionamentos para se chegar ao propósito previsto. Entretanto, não foi possível abordas as temáticas; o grupo naquele dia estava em grande alvoroço e não foi possível reverter a situação.

Vale destacar que cada colocação exigia uma discussão sobre determinado tema que não foi feita. Os temas poderiam ter sido tratados com base em reflexões filosóficas e científicas, para desfazer e/ou ratificar os gostos compartilhados.

Identificamos a necessidade expressa por eles de nos afrontar com o que supostamente não quiséssemos ouvir, testar nossa capacidade de aceitação, mas não fomos capazes de naquele momento identificar qual pedido estavam nos fazendo. Em todo caso, não era favorável aquele encontro. Os temas gênero, sexualidade, família, lazer, liberdade e drogas mereciam ser mais profundamente discutidos. A dinâmica dos encontros poderia ter sido reorientada para isso, mas não foi. Os temas afloravam a cada encontro, mas não receberam tratamento específico como discussão e estudo.

A CNV propõe que uma comunicação não violenta é exercitada para além dos julgamentos a que estamos habituados. Os componentes da CNV, descritos no capítulo dois, incluem a observação dos acontecimentos, das falas, dos conflitos e a proposta é separar observação de avaliação. Marshall Rosemberg (2006, p. 57) afirma que “quando combinamos observações com avaliações, os outros tendem a receber isso como crítica e resistir ao que dizemos”. E esse exercício foi vivenciado com o grupo, em que procuramos ouvir sem julgar

28 Depoimentos fornecidos pelos jovens-adolescentes participantes do Terceiro Encontro da Roda de Conversa,

seus interesses, e pouco a pouco o fato de agirmos assim provocava deles uma postura similar a nossa.

Barbier (2004) defende que a escuta sensível abrange os cinco sentidos e possui uma dimensão que ele nomeia de presença meditativa. Destaca que “o amor, a ternura, a segurança relacional” (BARBIER, 2004, p. 99) estão no âmbito da uma necessidade primária das pessoas. E nesse sentido propõe que “a plena consciência de estar, aqui e agora, no menor gesto, na menor atividade da vida cotidiana” confere uma escuta “de uma sutileza sem igual” (ibdem, p. 100). Seria pretencioso afirmar que praticamos uma escuta a nível meditativo; porém, exercitamos uma escuta com presença e disponibilidade que a todo momento estava comprometida com a necessidade advinda dos jovens-adolescentes. A proposta não era responder a cada uma das necessidades apresentadas, mas apoiá-los no reconhecimento e na conexão com suas próprias necessidades.

Zehr (2008) sinaliza a importância de três valores na JR: respeito, responsabilidade e relacionamento. Parece-me que eles foram abordados de forma intensa ao longo dos encontros encontro.

No momento em que começaram a responder sobre a segunda questão, que era algo como: “em que a medida socioeducativa contribuía ou não para sua vida”, pontuaram diversas coisas, como: “escrever carta para sua família”, “fazer cursos”, “aprender a esperar”, “aprender a ler”, “acordar pra vida, a vida não é do jeito que a gente quer”, “estudar”, “fazer coisas bonitas”, “ter uma relação, conversar com a família, passar tempo junto” (Informações verbais)29.

Porém, como citado anteriormente, era um dia confuso, denso, tumultuado, profundo, tenso, reflexivo. Iniciou com gritaria e terminou com grande silêncio. Foi como se falar dessas coisas, admitir coisas boas, em que tudo precisa ser considerado ruim, remexer coisas sensíveis tivesse contribuído para deixar o grupo ainda mais tumultuado. Havia novas meninas no grupo, uma em especial, Valesca, que gritava de forma intensa e competia fala com a Anastácia, com o Davenga e com a DandaLua. Eles estavam berrando, atrapalharam todas as propostas. Sherloc, que havia fotografado até então, com entusiasmo, não estava suportando o espaço nem as pessoas.

Margarida, em outro momento, conta-me que em sua ida ao banheiro havia tirado uma self com o agente que estava na porta da sala, apoiando a Roda de Conversa. A pedido deste,

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Depoimentos fornecidos pelos jovens-adolescentes participantes do Terceiro Encontro da Roda de Conversa, no DEAGASE, Rio de Janeiro, em 05 de setembro de 2016.

contou que o agente já havia excluído a foto, mas que estava sofrendo ameaça das colegas de unidade, em represália a sua atitude amistosa com um agente socioeducativo. Agentes socioeducativos são, em geral, considerados inimigos pelos socioeducandos. Pedi para que ao final do encontro me esperasse para que pudéssemos encontrar uma solução.

Figura 5-Roda de Conversa, data 05/09/2016

© Jovens-adolescentes participantes da Roda de Conversa.

A Figura 4 é o registro da leitura de poesia que aconteceu no final do primeiro encontro. A leitura foi iniciada por uma adolescente negra, que logo renunciou ao protagonismo, direcionando o livro para a única adolescente branca do grupo, que também demonstrou interesse na leitura. Os sinais e marcas da inferioridade estão presentes a cada ato e escolhas. Essa experiência diz respeito ao racismo e a atitude não foi agressiva, foi submissa. Reações diversas entre submissão, combate, violência e reatividade emergem a cada momento frente ao superior, hegemônico, opressor.

Tentamos atrair a atenção do grupo de vários modos. Tentei algumas dinâmicas corporais, sentamos no meio da sala. Eu e Flávia começamos a conversar baixinho, só nós duas. Tentamos pedir silêncio e calma para continuarmos. Enfim utilizamos todas as ferramentas que naquele momento nos parecia plausível, e nada funcionava. Em um momento fui individualmente perguntando baixinho a cada um que parecia descontente com aquela situação, o que pensava sobre o comportamento do grupo, o que achava que deveria ser feito e o que poderia fazer para ajudar? Foi aí que o Orfeu começou a ir de cadeira em cadeira como eu falar com cada pessoa e pedir pra que colaborasse com a continuidade do encontro. Flávia, já bem desgastada, estava sentada, sem saber como agir. O grupo foi ficando mais calmo, pouco a pouco. Iniciei um telefone sem fio em que dizia assim: “antes de acalmar fora, é preciso acalmar dentro”. Orfeu circulou por toda a Roda falando a cada participante, reivindicando o direito a participar de uma atividade coletiva, solicitando silêncio e atenção dos participantes. E depois todas e todos ficamos em absoluto silêncio. Isso durou um minuto talvez, nem sei, mas pareceu longo o suficiente pra emoção emergir. Em mim veio em forma de lágrimas, expliquei que era assim, que eu chorava, que não havia culpa e sim emoção. Levantei indo pro meio da roda e falei algumas coisas como:

Cuidar, saber cuidar, ter carinho, confiar no grupo, como reestabelecer a troca, a escuta, o respeito à fala?

Não está bom? O que você pode fazer pra que fique? Silêncio dói, silêncio dentro. Dói.

Para acalmar fora precisa primeiro acalmar dentro. Como agimos quando há confusão?

Como manter o frescor, o encantamento e a abertura do primeiro encontro? Quem é responsável? (Informação verbal)30

Essa conversa um tanto abstrata foi uma maneira de comunicar os sentimentos; comunicar-se a partir deles, sem culpar ninguém; um convite a todas e todos a se conectar com seus próprios sentimentos. A liberdade de fala, a escuta, o espaço parece os ter colocado em uma situação de desconforto e buscaram a todo custo reprovação, crítica, censura, lugares conhecido. A reprovação não foi apresentada em forma de culpa ou punição. No lugar, fiz uma proposta, um convite ao compromisso, ao compromisso com a manutenção de um espaço de encontro e trocas, compromisso com eles e com o espaço de liberdade tão reivindicado. E um convite à corresponsabilidade, que todas e todos nos pudéssemos assumir a responsabilidade pela convivência agradável nas Rodas de Conversa.

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Depoimento fornecido por mim, por ocasião do terceiro encontro da Roda de Conversa, no DEAGASE, Rio de Janeiro, em 19 de setembro de 2016.

Algumas propostas foram pontuadas pelo grupo para ajudar a dinâmica das Rodas de Conversa. Davenga propôs que tivesse um tempo para conversa livre. Solicitaram a leitura de poesias e o cafezinho com música de sua livre escolha. Naquele dia a música não funcionou, tive um problema no celular e o café chegou cedo demais, ajudando a confusão.

A saída deles foi um tanto impressionante. Jovens-adolescentes do PACGC saíram como se nada tivesse acontecido; já aqueles da EJLA ficaram impactados, mexidos. Orfeu estava profundamente mexido com a situação. Ao saírem, recebi abraço de todos, mas o dele foi especial. Ele estava profundamente mexido com tudo. Davenga pediu desculpas. Sherlok estava desolado. Não só ele como eu, e a Flávia também. Tudo foi muito, muito intenso e forte.

Essa imagem de jovens-adolescentes da EJLA saírem tão mexidos e as do PACGC tratarem a situação com grande naturalidade, além de estarem mobilizadas com a questão self de Margarida com o agente socioeducativo, fez-me pensar que lidar com tensões, emoções poderia ser algo mais comum ao universo feminino, não tendo mobilizado constrangimento. Não que isso fosse desejado, mas foi nítida a diferença entre os dois grupos. Foi explícita a implicação dos jovens-adolescentes que, de algum modo, pareciam ter percebido o sentido da corresponsabilidade.

Essa experiência nos traz algumas conexões com as teorias apresentadas: a Pedagogia Progressista pontua ser fundamental a educação estar comprometida com um exercício de cidadania, em que todos são responsáveis pela realidade vivida e percebem seu poder de contribuição para que uma determinada situação seja alterada em benefício comum. Entender sua realidade, fazer uma análise crítica, buscar uma maneira para que as pessoas possam ser cuidadas naquela dada realidade é um exercício restaurativo e de cidadania, que foi vivido plenamente neste encontro. Em meio a uma situação que poderia ter sido considerada caótica, podemos observar atitudes de compromisso, corresponsabilidade e implicação.

Conversei com a Margarida ao final sobre a situação da self, sem conseguir intervir naquele momento. Flávia me acompanhou em uma fala com o coordenador do campus, que é o coordenador das oficinas e cursos. Ao fazermos isso ele pontuou que entraria em contato com a direção da unidade, já que aquela não era uma postura adequada para o agente socioeducativo que acompanhava o grupo. E entrei em contato com a pedagoga da unidade para prevenir sobre o acontecido e sinalizar que estávamos à disposição para acompanhar o desenrolar da situação e, se necessário, intervir.

A música cessou após o encontro com a Flávia. Houve um problema na conexão do cabo para a saída de som do meu celular; assim, não tivemos mais acesso a esse recurso. Em

alguns encontros levei músicas minhas em um pen drive, para ouvir pela televisão, mas não gostaram do meu repertório. O aparelho foi danificado durante o terceiro encontro quando um jovem-adolescente tentava conectar o celular à caixa de som. Precisei colocar o aparelho no conserto. Uma fatalidade que foi tratada como tal e não como uma punição velada, que muitas vezes acontece. Isso se fez remarcar quando faziam reflexões sobre o celular com menos recursos que usei em substituição. Pequenas experiências que favorecem a confiança, para eles que são historicamente colocados na situação de responsabilizados (culpados) por toda e qualquer situação indesejável.

Uma discussão acerca dos Direitos Humanos poderia ter sido tecida e seria enriquecedor questionar os direitos aos quais não se tem acesso e por que no sentido de proporcionar a apropriação dos mesmos e identificar caminhos de acesso a estes, a temática ficou em aberto.