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A comunidade hindu de Santo António dos Cavaleiros

Capítulo

3.2. A comunidade hindu de Santo António dos Cavaleiros

Falar da comunidade hindu de Santo António dos Cavaleiros significa falar de um grupo de mais de 2000 pessoas residindo num espaço de 3.62 km2, chegando a ocupar 20 habitações por prédio na zona da Cidade Nova, divididas em 13 castas, originárias de diferentes locais na Índia, com diferentes trajectos migratórios e com padrões culturais distintos. Não é possível realizar uma análise estatística desta comunidade, dada a inexistência de dados sobre a população que a compõe. As autarquias não dispõem deste tipo de informação e os únicos valores são avançados pela direcção da associação representativa da comunidade, a Associação de Solidariedade Social Templo de Shiva, que refere a existência de cerca de 2000 hindus residentes em Santo António dos Cavaleiros, alertando para o facto de estes dados não serem consistentes, dada a frequente mobilidade dos seus membros. A associação tem projectada a realização de um censo populacional da comunidade, mas este encontra-se a aguardar um acordo relativamente aos parâmetros a aplicar75.

A população de origem indiana residente nesta freguesia divide-se em três referências regionais distintas. A grande maioria é proveniente do Gujarate (vide mapa, Anexos: 220) e inclui hindus, muçulmanos e cristãos, seguida de um pequeno grupo de cristãos goeses e de sikhs provenientes do Punjab. A diversidade de línguas faladas pelos diferentes grupos (gujarati, punjabi e hindi em conjunto com o português e o inglês) comprova a situação de pluralismo existente não só nesta freguesia, mas também no interior do conjunto de indivíduos de origem indiana.

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O sector mais jovem da associação é contra a realização de um censo de acordo com as castas dos indivíduos. Afirma-se contra este tipo de classificação da sua comunidade e propõe uma caracterização mais homogénea do grupo.

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Assim, para além do desdobramento do grupo destes indivíduos em subgrupos, a própria comunidade hindu se subdivide, de acordo com a pertença regional, cultural e social dos seus membros. Apesar de a grande maioria ser originária do mesmo estado, eles provêm de zonas distintas: Diu, ilha que se estende longitudinalmente ao largo da costa sul do Gujarate, uma das antigas colónias do Estado Português da Índia, a região do Saurashtra, situada a sudoeste do Gujarate, e Surat, a cidade localizada no extremo sul deste estado76. As características dos subgrupos que compõem a comunidade são decorrentes desta diversidade, associadas a particularidades culturais regionais e também de casta, expressas em formas diferenciadas de realizar rituais de passagem e ritos domésticos, em diferentes orientações religiosas e fidelidades sectárias77.

A observação etnográfica permite afirmar que a comunidade se encontra dividida em 13 castas, sendo duas maioritárias: Vanja e Lohana. Para além das três castas minoritárias, constituídas apenas por poucas famílias (Brâmane, Dobhi e Valand), as restantes encontram-se equilibradamente distribuídas pela freguesia.

Contrariamente a outros bairros de concentração hindu analisados na zona da Grande Lisboa, este encontra-se espacialmente mais disperso e apresenta uma diversidade populacional muito mais complexa (cf. Bastos, 1991; Cachado, 2003). A abordagem realizada por Kim Knott sobre o hinduísmo em Leeds apresenta um universo mais intrincado onde se encontram, para além de diferenças decorrentes da origem regional dos indivíduos, variedade linguística, de acordo com os diferentes estados de origem. Neste contexto, os padrões de estabelecimento foram determinados por grupo linguístico, realizando estabelecimentos consonantes com as fronteiras territoriais dos estados indianos, aos quais se faziam também corresponder locais de culto próprios (Knott, 1987: 22). Ao contrário do caso analisado por Knott, o grupo em análise partilha uma única referência linguística, o gujarati, associada ao mesmo estado de origem, tendo o seu estabelecimento sido realizado com o propósito de congregação espacial de hindus, sendo que as redes de solidariedade familiar condicionaram a concentração de determinadas castas em bairros específicos. A unidade foi conferida pelo facto de partilharem a mesma língua e uma identidade gujarati comum.

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Ambas de passado colonial britânico. 77

A observação de um contexto como este implicou, ao contrário do que seria necessário numa concentração num sub-grupo da comunidade, apreender a realidade complexa na qual se subdivide a comunidade em estudo.

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A principal ocupação destes hindus é o comércio78, actividade que se desenvolve nos mais diversos ramos, entre comércio fixo e itinerante: electrodomésticos, produtos alimentares, vestuário, relojoaria, perfumaria, papelaria, ourivesaria, artigos para o lar, restauração, minimercados. Apesar do abandono das actividades tradicionais de casta entre a maioria dos hindus, alguns ainda preservam estas especializações. Assim, entre as castas de sapateiros, de pedreiros e de alfaiates, alguns indivíduos conservam a sua actividade tradicional, sendo que os primeiros possuem geralmente estabelecimentos próprios, os segundos trabalham na construção civil e os últimos trabalham essencialmente para uma clientela indiana, na confecção de vestuário tradicional, não sendo geralmente esta a única actividade de um agregado familiar. Alguns membros de castas de barbeiros e de brâmanes oficiam particularmente em momentos rituais.

Relativamente aos padrões de educação dos mais jovens, estes tendem a transformar-se nos últimos anos, com uma intensificação da continuidade dos estudos secundários e superiores. A educação é a área onde o contacto com os membros da sociedade envolvente é mais inevitável (cf. Knott, 1986: 49). Esta inevitabilidade é considerada por algumas famílias um risco para a conservação da identidade hindu dos mais novos, funcionando a exposição dos jovens aos valores ocidentais como uma ameaça à sua integridade moral, particularmente no caso das raparigas79. Não é possível definir um padrão de educação entre a comunidade em estudo. Este pode variar entre o abandono precoce da escola, o cumprimento da escolaridade obrigatória, ou o ensino superior que, cada vez mais, é a opção de muitos jovens. Para além deste tipo de formação, os jovens encontram actualmente uma estrutura educacional orientada pelo Templo de Shiva, direccionada para a aprendizagem da língua materna e dos princípios religiosos hindus. Esta estrutura formou-se perante a necessidade de fornecer às crianças uma base moral que não encontravam nas escolas e também, muitas vezes, nas suas casas. Face ao desconhecimento dos fundamentos religiosos e rituais e ao desapego da língua gujarati que se verificava entre as segundas gerações, a escola de gujarati do Templo de Shiva promove desde 2006 a aprendizagem da língua materna ao mesmo tempo que incentiva a consolidação de redes de sociabilidade entre os mais jovens, através da afirmação de referências comuns, sendo a língua um dos elementos centrais

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Apesar de o estereótipo dos indianos corresponder habitualmente à actividade comercial, esta, sendo a principal, não é exclusiva. Muitos hindus encontram-se nos vários sectores profissionais da sociedade portuguesa: serviços, ensino, medicina e engenharia. Outros ainda, trabalham na construção civil.

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Esta é a principal razão que se encontra por detrás do abandono precoce da escolaridade por muitas raparigas, particularmente entre famílias ou castas mais conservadoras.

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no processo de reprodução identitária. É fundamental compreender até que ponto as línguas originais dos indivíduos são ou não úteis nos novos contextos, ou observar processos de desaparecimento ou de transformação (formação de línguas crioulas) no âmbito das diásporas sul asiáticas (cf. Clarke, Colin, Peach, Ceri e Vertovec, 1990: 6). No caso hindu, a proliferação de bala vihars, ou escolas de fim-de-semana para crianças, comprova a utilidade da língua como elemento não só de perpetuação da identidade do grupo mas também de institucionalização do hinduísmo (cf. Kurien, 1988: 42).

A religião é, como vimos, um elemento identificador comum que permite ultrapassar as diferenças que dividem o grupo. No entanto, o hinduísmo abrange um conjunto de crenças e práticas religiosas, sendo utilizado para referir diversos tipos de devoção, de preferência por divindades de culto e festividades centrais, de acordo com a pertença regional e de casta de cada indivíduo, e que se transforma também na diáspora. Como demonstrou Knott, relativamente a um contexto de complexidade de pertença social, cultural, linguística e religiosa como Leeds, a transposição do hinduísmo (nas suas vertentes de “grande” e “pequena” tradição) originou transformações que assumem maior relevância na introdução de mudanças na prática ritual (cf. Knott, 1987: 163).

A religiosidade de cada indivíduo não deve também ser esquecida, bem como o modo como cada um concebe a religião hindu. Neste sentido, é importante ter em conta que a vivência de diáspora influencia o modo como cada pessoa pensa a sua própria religião. O distanciamento face aos padrões religiosos da origem e o convívio com outras religiões num meio em que o hinduísmo é minoritário conduz a uma maior consciencialização e necessidade de interpretação e, consequentemente, de transformação (cf. Knott, 1986, 1987, Williams, 1996, Kurien, 1998, Eck, 2000, Coward, 2000). Por outro lado, a influência de concepções ocidentais de religião poderá ter originado, para alguns, um hinduísmo institucional e formalizado, com maior ênfase nas festividades cíclicas e nos rituais de passagem. Para outros, ainda, a expressão mais popular da religião hindu, diária e doméstica, permanece a peça central das suas crenças e práticas religiosas. Ao afirmar que a religião é um dos elementos centrais do processo de construção da identidade hindu em diáspora, é necessário contudo, resistir à tendência para a estereotipar ou/e essencializar.

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