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Aniversários e casamentos dos deuses

Capítulo

5.2. Calendário religioso

5.2.2. Aniversários e casamentos dos deuses

Os aniversários, bem como os casamentos das divindades destacam-se também no calendário religioso em Santo António dos Cavaleiros e são particularmente festejados pelas mulheres. Ao contrário das grandes celebrações públicas acima analisadas, estes momentos decorrem em dias da semana, durante a tarde, horário em que os mais jovens e os homens se encontram ausentes. Assim, este é o espaço privilegiado do encontro feminino, à semelhança do que acontece com os satsang. Se nos casos anteriormente abordados foi possível destacar a importância das mulheres na

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esfera religiosa, naqueles que se seguirão descritos, esta relevância é ainda mais evidente.

No sétimo dia da primeira quinzena (sud satham) do mês de Kartak comemora- se o Jalaram Jayanti, o nascimento de Jalaram Bapa180. O templo dedicado a Jalaram Bapa em Virpur, no Gujarate é um destino de peregrinação de muitos dos hindus que se deslocam à Índia181. O dia do nascimento de Jalaram é assinalado com um satsang especial em sua homenagem, com cânticos e hinos de veneração a Rama, Sita e Hanuman, as divindades privilegiadas pelo santo ao longo da sua vida de serviço e penitência. Uma refeição particular182 é partilhada pelos participantes como forma de

prasad. O culto a Jalaram é particularmente celebrado pelas mulheres da casta Lohana.

No mesmo mês, o Hanuman Jayanti, nascimento de Hanuman, celebra-se no dia 15 da primeira metade lunar de Chaitra, akshar purnima. Hanuman, o deus com forma de macaco é um devoto ardente de Rama, e é venerado por esta sua inabalável devoção183. O culto de Hanuman é eminentemente masculino, jejuando os homens ao sábado, dia dedicado a esta divindade, e colocando pó ritual cor de laranja no lado direito da fronte. O culto de Hanuman é também particularmente significativo para a casta de tecelões Vanja. Neste dia, os devotos, em grande maioria Vanja, deslocam-se ao templo de Shiva onde se encontra a imagem de Hanuman. A comemoração do seu nascimento inicia-se com a longa recitação do Hanuman Chalisa, os quarenta poemas dedicados Hanuman pelo poeta Tulsidas, seguida de cantos e hinos dedicados a esta divindade, a Rama e Sita. O nascimento é celebrado ao meio-dia, com o lançamento de

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Este devoto de Rama nascido no Gujarate, muito popular entre a casta Lohana, terá nascido em 1799 em Virpur e acredita-se que, desde criança desenvolvera um espírito de serviço (seva) a todos os homens sem discriminação e a sua profunda devoção ao deus Rama tê-lo-á conduzido à realização de vários acontecimentos milagrosos. A sua mulher, Virbai, é também considerada um exemplo de dedicação aos outros e de sacrifício pelo marido. No Templo de Shiva, é possível encontrar as murti de Jalaram e da sua mulher.

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Virpur é uma pequena aldeia aproximadamente 52 km de Rajkot, que se tornou um importante centro de peregrinação, sendo considerada sagrada pelos devotos de Jalaram Bapa, tendo ficado famosa na Índia e nos países da diáspora hindu. Devotos hindus, sobretudo gujaratis, provenientes de vários países, deslocam-se a Virpur para visitar o lugar de nascimento deste santo da casta Lohana e o templo que foi construído em sua homenagem nesse local. Os locais acreditam sentir a presença de Jalaram e aqueles que visitam o local fazem-no na expectativa de corresponderem a este sentimento. O Templo de Jalaram está construído sobre o sítio onde o homem santo terá falecido, encontrando-se o samadhi (mausoléu) colocado aos pés do deus Rama, sendo a entrada do templo localizada do lado esquerdo, oposto a este monumento que consiste nas marcas dos pés de Jalaram, protegidas por uma vitrina.

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Composta por leguminosas, arroz e kadhi, um caldo preparado à base de iogurte (vide Anexos: 227, fotografia 29).

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Hanuman é o símbolo de força e energia. Filho do deus do vento (Vayu) e de Anjani Devi, Hanuman é o servidor de Rama por excelência, o verdadeiro cumpridor do karma e do seu voto de celibato (Brahmachari), expressão máxima da devoção divina.

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pétalas de flores e de bagos de arroz sobre a murti da divindade e encerra com a

performance de aarti dedicado a Hanuman.

O Krishna Janmashtami, o nascimento de Krisnha, é comemorado com um jejum em que se devem consumir apenas frutos e leite e que é quebrado à meia-noite, a hora do seu nascimento. A celebração do seu aniversário faz-se com um bebé do sexo masculino, representando o pequeno Krishna, vestido, ornamentado e transportado, à cabeça, pela mulheres e pelo seu pai, num cortejo à volta do Templo. As mulheres dançam em roda evocando com cânticos a vida de Krishna. O bebé que representa a criança divina é venerado e colocado no interior do santuário e perante ele é realizado

aarti (vide Anexos: 229-230, fotografias 38 a 40).

As crianças do sexo masculino rapazes pequenos usam igualmente os adereços de Krishna, e as raparigas as de Radha, a sua consorte. Diz-se que este dia é dedicado às crianças pois a narrativa mitológica de Krishna é muito centrada na sua infância e, por essa razão, são distribuídos doces e moedas às crianças que estão dentro de pequenos recipientes de barro que contêm, também, um pouco de leite e kumkum (vermelhão). Os recipientes são quebrados e, de dentro deles, caem doces e moedas que as crianças recolhem efusivamente.

No nono dia da primeira quinzena do mês de Chaitra, sud navami, celebra-se o Ramanavami, o nascimento de Rama. Rama é a sétima encarnação de Vishnu e personifica o homem perfeito e o guerreiro ideal, o cumpridor do dharma184. Ele é um dos mais populares heróis mitológicos, o protagonista da epopeia Ramayana, a narração da vida de Rama e da sua mulher, Sita, que personifica esposa virtuosa e a mulher ideal. O casal é venerado pela sua coragem e cumprimento dos valores e deveres religiosos. O nascimento de Rama é celebrado com cânticos (bhajan) e um puja em que uma imagem de um bebé Rama sentado num baloiço é o centro da devoção, sendo sobre ele derramadas pétalas de flores e arroz ao meio-dia, ao mesmo tempo que o pequeno berço é baloiçado pelos devotos, mimetizando o embalar do bebé. Neste dia são lidas passagens do Ramayana e o livro contendo a narrativa é venerado (vide Anexos: 227, fotografias 30 a 32).

Como vimos, o processo ritual para celebrar o nascimento das divindades é semelhante. Do mesmo modo, os seus casamentos são ritualizados de formas equivalentes, habitualmente no contexto da leitura dos textos que contam as suas vidas. Nos nove dias que precedem a celebração de Ramanavami, o Navratri do mês de

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Chaitra, a epopeia Ramayana é lida pelas mulheres, no templo ou nas suas casas. Todos os dias este ritual é iniciado com cantos e hinos dedicados a Rama e a outras divindades, particularmente Sita e Krishna. Estes satsang são também compostos pela veneração do livro, considerado sagrado, e um deles é dedicado à performance do casamento das divindades Sita e Rama (vide Anexos: 229, fotografias 33 e 34). Este casamento é pormenorizadamente representado, e duas famílias, compostas por dois grupos de mulheres, são responsáveis pela entrega dos noivos. Um palco nupcial é construído com folhas de bananeira em torno do qual todos os passos do casamento são minuciosamente realizados. A performance termina com a saudação das duas famílias, expressa na troca de doces entre as mulheres que se cumprimentam mutuamente e que celebram o êxito do casamento. Esta celebração termina com cânticos em honra do casal divino e com um puja e aarti. No mês de Bhadarvo, após o primeiro agyaras, inicia-se a leitura do Bhagavata Purana. O processo é o mesmo que o da leitura do Ramayana, composto pela leitura do texto e pela entoação de hinos e cânticos, sendo um dos dias dedicado à celebração do casamento de Radha e Krishna. Esta ritualização, como a de Tulsi Vivaha, que será referida de seguida, é realizada praticamente em exclusivo por mulheres e exclui a presença de um ritualista.

O Tulsi Vivaha celebra-se no mês de Kartak. É o casamento entre Krishna e Tulsi, que representa uma das plantas sagradas do hinduísmo, o basílico185 (vide Anexos: 227, fotografia 35). Esta planta, venerada pelos hindus, é uma das consortes de Krishna, Radha, e na lua-cheia do mês de Kartak (dia 15), celebra-se o casamento das duas divindades. Neste dia, a planta é decorada como uma noiva e o casamento é representado, sendo colocados os dois noivos num palco construído com canas-de- açúcar ou folhas de bananeira e decorado com folhas de mangueira. Um puja é realizado e o casamento é efusivamente celebrado. A representação deste casamento divino implica a participação das duas famílias dos noivos. Dois grupos de mulheres representam as famílias divinas e uma, de cada grupo, actua como mãe de cada noivo. No final da performance e do puja, as duas famílias saúdam-se mutuamente e congratulam-se com a realização do casamento186.

A ritualização dos casamentos e a comemoração dos aniversários dos deuses são realizados com grande júbilo pelas mulheres mais velhas. Por vezes, quando a

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OcimumTtenuiflorum 186

A folha desta planta possui um grande significado religioso e é utilizada na grande maioria das

performances rituais, desde a confecção de prasad ou como elemento essencial para a prática ritual, como katha ou rituais de passagem como o de morte, em que a folha de Tulsi é indispensável.

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celebração destes momentos coincide com o fim-de-semana, alguns homens estão presentes, ainda que em pequeno número, e mais devotos acorrem ao templo. Também estas práticas sofreram alterações relativamente ao espaço onde eram realizadas. Transpostas dos espaços domésticos para o templo, tornaram-se mais expansivas e mais elaboradas. As casas onde se celebravam impossibilitavam a realização de cortejos ou danças. Para além de oferecer espaço, o templo facilita também a execução das cerimónias para as quais se encontra o material necessário. A existência de uma cozinha permite que os alimentos sejam preparados no local, evitando o seu transporte. A realização dos casamentos divinos é um dos momentos mais efusivos celebrados pelas mulheres, que gozam dos seus tempos de liberdade para festejar alegremente a sua devoção aos deuses, dançando à sua volta e transportando-os em cortejo, e usufruindo desta situação de exclusividade feminina.