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A diáspora e os novos espaços de acção feminina

Capítulo

2.4. A diáspora e os novos espaços de acção feminina

A reclusão da mulher e a sua inscrição no espaço doméstico e no universo familiar é uma posição que não deve ser negligenciada no âmbito dos estudos sobre mulheres em contexto sul asiático. Por isso, a atenção dada à movimentação para novos espaços de estabelecimento, em consequência dos processos de diáspora, é muito importante para entender a ligação entre género e espaço doméstico. A relação entre mulher e espaço doméstico em diáspora é complexa, dependendo de variáveis que dizem respeito aos contextos familiares, profissionais e sociais em que estas se encontram43. A análise desta relação deverá ter como ponto de partida a noção de complexidade que emana das estruturas familiares e domésticas, apesar da sua «apparent ordinariness» (Krishnaraj, 1989: 17). O espaço doméstico deverá ser compreendido como gerador de papéis sociais, culturais e de género, para além de ser o centro da solidariedade de parentesco, da socialização e da cooperação económica.

Em diáspora, a casa é o espaço privilegiado para a transmissão religiosa e reprodução cultural do grupo, assumindo as mulheres estes papéis, executando-os quer no interior da sua família – particularmente através da educação dos filhos e dos netos – quer num âmbito mais abrangente e organizado de actividade religiosa e cultural. Neste sentido, alguns aspectos associados à actividade quotidiana doméstica devem ser realçados. Em primeiro lugar, os rituais domésticos são essenciais na análise do desempenho quotidiano das mulheres hindus. Estes dão início às suas actividades diárias e ocupam-nas ao longo do dia, com orações e outro tipo de ocupações religiosas, consideradas essenciais ao equilíbrio da casa e da família: «What is important to note about much of this religious and ritual activity is that women do not only perform it for their own good or individual merit, they perform it on behalf of their families» (Caplan, 1985: 78). A permanência das mulheres no espaço doméstico coloca-as no centro das relações de parentesco, consolidadas quotidianamente através do seu contacto com os outros membros da família extensa de aliança que fazem parte de um leque de relacionamentos “obrigatórios”, cabendo-lhes a elas responsabilidade de os manter (Caplan, 1985: 79).

43 Neste sentido é interessante a proposta de observar a sociedade a partir da unidade doméstica, contrária à perspectiva antropológica dominante. Society from the Inside Out. Anthropological Perspectives on the

South Asian Household apresenta uma forma particular de olhar o universo doméstico, defendendo a

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As práticas religiosas domésticas em diáspora conjugam elementos da tradição bramânica e da prática do hinduísmo popular44. Entre estas, Kim Knott destaca a realização de vratas, votos realizados pelas mulheres para assegurar a prosperidade do agregado familiar45, sob a forma de goyanis, mulheres que representam e personificam determinadas deusas, cuja expressão é a oferta de alimentos e outros tipo de oferendas e, finalmente, enquanto bhui, mulheres possuídas pelas deusas, com o poder de mediar entre o divino e o terreno. Eis como a autora apresenta a centralidade do espaço doméstico na relação entre mulheres e deusas:

In this informal, but vitally important arena, women are particularly active in practices involving goddesses, such as Ambamata, Parvati, Santoshima, and Kali. In these, no Brahman intermediaries are required, men are rarely present, and women communicate directly with the deity of their choice, by petitioning her, representing her, or by acting as her medium or one possessed by her (Knott, 2000: 99).

A pertinência do espaço doméstico no campo das actividades religiosas está expressa na afirmação de Eck, segundo a qual a vida religiosa do templo é apenas uma parte da diversificada tradição hindu: «In the United States, as in India, the topography of Hinduism is highly nuanced. Most important and most invisible to the observing eye are the multitude of home altars – in a kitchen cupboard, a coat closet, a corner of the living room sanctified for the domestic worship» (Eck, 2000: 223).

A função de reprodução cultural, associada às mulheres em situação de diáspora, encontra-se também ligada às actividades de lazer, na sua maioria de cariz religioso, que acontecem nas suas casas. Este é o espaço dos encontros religiosos, sobretudo sob a forma de satsangs, reuniões devocionais organizadas por mulheres e que consistem em momentos de sociabilização exclusivamente feminina. As tarefas mais práticas que as mulheres assumem como tradicionalmente femininas (apesar de, progressivamente, em contexto de diáspora a linha que as separa das masculinas se tornar mais ténue) incluem as várias actividades ligadas ao cuidado da casa, como as limpezas, a arrumação e, principalmente, a confecção das refeições. O acompanhamento dos filhos à escola, entre outras tarefas, deixa às mulheres jovens casadas pouco tempo para momentos de lazer, ocupados pelas suas familiares mais velhas.

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Entendido como o conjunto de crenças e práticas que constituem a religião quotidiana e prática dos hindus (Fuller, 1992: 5).

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Através de jejuns e outras privações que são expressão da utilização do seu poder colocado ao serviço de uma divindade particular, geralmente feminina.

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A transformação identitária pode também ser condicionada pelo distanciamento espacial que origina novos ciclos de vida em determinados contextos. Examinando a presença das mulheres sul asiáticas no Golfo Pérsico, Karen Leonard demonstra como estas contribuem para os fluxos de capital e de trabalho económico e cultural e como os lares conservadores sul asiáticos transportados para os estados do Golfo são transformados, conduzindo à reconfiguração das identidades de género que se encontram no seu interior (Leonard, 2002: 214).

A posição das mulheres no mundo do trabalho permite-lhes desenvolver esferas de poder e, simultaneamente, reproduzir um estatuto tradicional feminino que consolida uma identidade, frequentemente conservadora, atribuída às mulheres em diáspora. Assar demonstra como as mulheres comerciantes gujaratis nos Estados Unidos desenvolvem a sua actividade comercial, libertas da dependência dos sistemas laborais mas dentro dos constrangimentos das relações familiares e de parentesco que governam a estrutura comercial em que estas se encontram, produzindo continuamente um estatuto feminino conservador: « […] women increase their labor but retain their ‘traditional’ status in the family. This facilitates further migration, which in turn fuels retention of ‘tradition’» (Assar, 1999: 99).

As experiências profissionais das mulheres gujaratis em Londres, estudadas por Ramji, são consideradas pela autora uma estratégia de renegociação de uma posição de poder no interior das práticas sociais, como o casamento:

Their direct relationship with the labour market as wage-earners had led to increase in their powers of negotiation, an ability to make choices and to increase their influence in the domestic domain. Their newly empowered class status is permitting and facilitating a re- negotiation of old gender divisions. However, contrary to the clash of culture thesis, this is not leading to friction between the mothers and the daughters or to an abandonment of cultural traditions, but to a re- definition of these traditions (Ramji, 2003: 237-238).

Aparna Rayaprol aponta para o desenvolvimento de práticas igualitárias culturais e religiosas, entre os hindus de Pittsburgh, sendo o templo o espaço através do qual estas são produzidas. A questão da reprodução cultural, desempenhada pelas mulheres hindus em diáspora, é recorrentemente exemplificada pelo papel central das mulheres na transmissão cultural e na organização formal dos grandes templos hindus americanos. Rayaprol analisa a participação das mulheres nos aspectos públicos da

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religião e, ao mesmo tempo, o seu papel fundamental na socialização com as gerações descendentes, sendo este último aspecto relegado para o espaço privado da casa e da família, observando os diferentes níveis das realidades públicas e privadas e as renegociações de género que lhes estão associadas. A autora explora ainda o modo como a situação de diáspora conduziu as mulheres à necessidade de conjugar os valores do seu país de origem e as características do país de estabelecimento, através da nostalgia celebrada no espaço do templo (Rayaprol, 1997: 134).

No contexto da diáspora hindu género e religião são, como vimos, indissociáveis. A religião constitui a possibilidade de conduzir, como no caso anteriormente referido, à igualdade entre géneros, embora, na maioria dos casos, esta relação implique a subalternidade das mulheres face aos homens. As mulheres pertencentes à primeira geração a estabelecer-se no Canadá, desenvolveram dispositivos de afirmação da sua identidade e orgulho no género feminino, recorrendo a tradições religiosas seleccionadas, como é o caso da reverência prestada às mulheres através da imagem das mães ou das deusas (Dhruvarajan, 1999: 47). A identificação entre mulheres e deusas eleva a mulher a um estatuto auspicioso e encoraja estados específicos da feminilidade. Esta ligação entre divindades femininas e as suas devotas acontece em espaço doméstico, através de pujas46 e vratas e no templo, com visitas e práticas espirituais47.

Na Índia e em diáspora, as mulheres assumem tarefas religiosas anteriormente dominadas por homens, modificando os seus próprios estatutos. Contudo, estas enquadram-se, na sua maioria, no interior de uma estrutura social conservadora e patriarcal. A aquisição destas novas tarefas funciona, ainda assim, como um impulso à libertação do domínio masculino e à maior abertura para a sociabilização. A compreensão das experiências das mulheres hindus em diáspora implica uma particular atenção ao seu relacionamento com a esfera religiosa. Esta articulação conjuga, muitas vezes, referências de autonomia e de conservadorismo feminino, influenciadas por práticas e ideologias nacionalistas, integradas na actividade quotidiana destas mulheres.

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Culto devocional à divindade. 47

A função de alimentar as deusas, preparando os alimentos oferecidos à divindade, é um dos vários atributos características da relação entre mulheres e deusas (Rodriguez, 2005: 85).

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