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Espaço público e doméstico

Capítulo

5.1. Espaço público e doméstico

No centro do “santuário155” do templo de Shiva encontram-se as imagens tutelares, Shiva e a sua consorte Parvati e, no meio dos dois, o seu filho Ganesh. Dos lados esquerdo e direito existe uma sequência de outras divindades, isoladas ou acompanhadas pelos seus parceiros mitológicos. Do lado esquerdo, podemos observar os heróis do Ramayana: Rama acompanhado pela sua consorte Sita e pelo seu irmão Lakshmana. Aos pés destes, ajoelhado, encontra-se Hanuman, o seu devoto fiel. Segue-

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Utilizo esta palavra para distinguir o espaço do templo mais abrangente, onde decorrem as festividades e outras actividades culturais e religiosas da comunidade, do templo interior (sanctum sanctorum), o espaço sacralizado, dedicado às divindades.

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se o par divino Krishna e Radha e, depois, uma murti156 de Srinath, uma das várias manifestações de Krishna. Por detrás deste, existem imagens alusivas a esta divindade e ao fundador do seu culto, particularmente praticado pelo movimento Pushtimarg, Shri Vallabhacharya. À esquerda do casal Shiva e Parvati encontram-se várias murti de diferentes deusas, de diferentes tamanhos: Gayatrima, Ambema, e por detrás destas, pequenas imagens em papel de deusas como Bhubaneshwarima, Sitalamata ou Lakshmi, perto das quais existe ainda uma pequena estátua de Ganesh. Seguem-se outros pares: Vishnu (ou Vasudeva, como é correntemente chamado) e Lakshmi (ambos de tamanho reduzido) e, a contrastar, duas estátuas do santo Jalaram e da sua esposa, Virbai. Outras representações divinas como pequenas imagens de vacas, por exemplo, ocupam também este espaço (vide Anexos: 222-223, fotografias 4 a 10).

No chão, à entrada do recinto, protegido por um estreita entrada, está o búfalo Nandi, anunciando a entrada num templo shivaíta e, um pouco mais à frente, cresce do chão o símbolo fálico de Shiva, o linga, encaixado no seu receptáculo, o yoni (vide Anexos: 222, fotografias 5 e 6). Sobre o linga ergue-se uma serpente e do tecto pende um recipiente do qual escorre continuamente, sobre este, um gotejar de leite.

Para além das pequenas murti de Hanuman, que se encontram junto de Rama, a sua divindade de eleição, existe no templo uma grande imagem desta divindade que veio, progressivamente, a ocupar o interior da área do templo reservada aos deuses. Anteriormente, esta representação encontrava-se do lado de fora do “santuário”, tendo depois sido colocada no espaço interior do templo, separada das restantes divindades por um cordão que as isola também do acesso directo dos devotos. Finalmente, numa última fase, a grande imagem de Hanuman passou a barreira do cordão que separava os devotos, e o próprio Hanuman, das restantes divindades, tendo sido, finalmente, colocado a par do panteão, se bem que numa extremidade marginal.

O Templo de Shiva acolhe os rituais cíclicos do calendário hindu e o puja semanal, à segunda-feira, dia dedicado a Shiva, a divindade tutelar do templo. De todas as actividades religiosas que acontecem regularmente no templo, escassas são as que requerem a presença do ritualista, como é o caso do Mahashivratari, a grande noite de Shiva, da realização do hawan de Navratri e outros hawan como em Makar Sankranti, ou em casamentos. Apesar do Templo de Shiva não possuir um sacerdote residente, encontra-se aberto durante o dia para receber os devotos que queiram realizar

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darshan157 e oferendas de prasad158 e dinheiro, mesmo nos dias em que não existem actividades religiosas ou sociais a decorrer.

A actividade religiosa do templo pode dividir-se em dois tipos: a das grandes festividades do calendário e que atrai grande parte de comunidade, realizada à noite ou aos fins-de-semana, e aquela que ocorre durante a semana, impulsionada por um pequeno grupo de mulheres, dedicadas a celebrações menores do calendário hindu, como ekadashi ou aniversário de alguns deuses, menos celebrados. De entre o primeiro tipo podemos distinguir, por exemplo, o Navratri, o Mahashivratari, ou grandes hawan realizados em dias auspiciosos como Makar Sankranti. Nestes momentos verifica-se uma grande presença de devotos e o sacerdote é chamado a realizar e orientar o culto. Estas celebrações envolvem geralmente a confecção de alimentos, distribuídos sob a forma de refeição depois das festividades, funcionando como prasad.

As grandes festividades, tal como as de menor dimensão, são organizadas por um pequeno grupo de mulheres (habitualmente chamado «grupo do satsang» ou o «núcleo das senhoras») que se estrutura a si próprio, com tarefas e funções específicas. Os alimentos são cozinhados nas suas casas e templo, quando se trata de distribuir grandes quantidades de comida que assume, quase sempre, a forma de prasad159.

Estes momentos envolvem, como veremos, grandes performances, como o

garba-ras no Navratri, o cortejo do bebé no Krishna Janmashtami, ou a combustão de

piras de hawan em simultâneo, implicando o auxílio de voluntários ao longo destas celebrações. No Navratri é necessário enfeitar a sala com bandeirinhas suspensas no tecto, instalar o garbo no centro do espaço e, durante nove noites, organizar a realização dos vários aarti160, confecção, acondicionamento161 e distribuição do prasad, cozinhar, vender alimentos e limpar o espaço após a saída dos participantes.

Os hawan implicam também uma organização na preparação e depois de terminada a cerimónia. O hawan pode ser realizado directamente por um casal, orientado pelo sacerdote numa única pira comum, em que no final todos os devotos são

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Darshan significa olhar e receber o olhar da divindade e é um dos principais actos religiosos do hinduísmo. Esta troca de olhares implica um relacionamento profundo entre a divindade e o devoto e a sua prática resulta em bênçãos recebidas pelo devoto, que assumem a forma de bem-estar e prosperidade. 158

Alimentos consagrados à divindade posteriormente ingeridos pelos devotos. 159

Apenas os alimentos vendidos, cujo pequeno lucro reverte a favor do templo, não são prasad. 160

Culto à divindade realizado através de movimentos circulares com bandejas de lamparinas. 161

Todas as noites várias famílias realizam aarti em frente ao garbo (estrutura octogonal iluminada em torno do qual os devotos dançam nas noites de Navratri) de Ambe ma, seguidas pelos restantes devotos que entoam o cântico e batem palmas para o acompanhar. Quem celebra o ritual das lamparinas e a ordem pela qual o faz, segue a ordem de inscrição. O prasad é distribuído em pequenos recipientes plásticos com sacos ou caixas pelos devotos, para que estes possam transportá-los mais comodamente.

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convidados a derramar grãos de trigo e ghee162, ou individual, encontrando-se as várias pequenas piras dos diferentes casais ou famílias dispersas pelo espaço do templo, sendo a cerimónia orientada pelo sacerdote, à distância. Esta performance implica a utilização de material diversificado: lenha, fósforos, cordão de algodão tingido de vermelho e verde (maru), ghee, algodão para a lamparina (vath), paus de incenso, cereais (arroz, trigo), fruta, um recipiente metálico (loto) com água, e nozes de betel (sopari). Nestes casos, é necessária uma preparação prévia do material necessário que, apesar de cada um o transportar consigo, por vezes escasseia, sendo urgente a sua reposição163, manutenção e, no fim, a sua arrumação e limpeza do espaço.

Por outro lado, o culto quotidiano do templo possui uma assistência muito mais reduzida. À segunda-feira, dia dedicado a Shiva, realiza-se o puja desta divindade, à noite, hora em que os seus devotos que desejam realizar o culto após regressar do trabalho, tomam banho e vestem roupas lavadas, estando assim preparados para se apresentar perante a divindade. Por vezes decorrem à noite sessões de bhajan164 que terminam com a realização de aarti. Ao contrário dos templos da Índia em que o serviço religioso é realizado diariamente, ao nascer e ao pôr-do-sol por um sacerdote residente, neste contexto cuja base económica deficitária não permite sustentar famílias de sacerdotes vinculadas a cada templo, o puja165 é realizado, geralmente, pelos devotos, sem a presença do ritualista. Apesar de o templo se encontrar aberto durante o dia, para que os devotos o visitem, o puja realiza-se apenas à segunda-feira. Assim, nos outros dias, poucos devotos visitam o Templo de Shiva para poder realizar darshan, visitando as divindades, realizando ofertas e partindo logo de seguida para as suas casas que se encontram, quase todas, distantes do templo.

Se as grandes festividades apresentam um carácter mais expressivo da devoção hindu, outras há que não ocupam os dias e horas de grande afluência de participantes e podem ser consideradas festividades secundárias (por não terem o mesmo impacto que as outras) ou celebrações que ocorrem todos os meses. No primeiro caso, podem incluir- se os aniversários de nascimento e de casamento de divindades como Rama, Hanuman ou do santo Jalaram. No segundo, incluem-se celebrações cíclicas mensais como o

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Acontece geralmente nas grandes festividades como ao longo dos vários dias de Navratri, em que um casal é seleccionado para representar toda a comunidade, sendo convidado a «sentar no hawan», como é habitualmente expresso, numa tradução literal do gujarati para português.

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A interrupção do acto ritual compromete o seu sucesso, pelo que é necessário vigiar constantemente o fogo e a lamparina para que estes não se apaguem, juntando lenha e ghee. Os cereais e os outros elementos deitados no fogo não devem também acabar, sendo necessário repô-los a qualquer momento. 164

Cânticos entoados em honra das divindades 165

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ekadashi, que por vezes é celebrado em espaço doméstico, outras no templo, ou então,

momentos devocionais organizados pelo «grupo do satsang» como satsang ou khata. Estes realizam-se em dias e horas auspiciosas, consultados no calendário astrológico

panchanga166 e são divulgados oralmente, através de familiares e vizinhas, nos encontros nas lojas, na rua ou nos prédios.

Estes momentos são exclusivamente das mulheres167. À semelhança dos encontros religiosos do «grupo do satsang» em espaço doméstico, apresentam um carácter de descontracção, exprimindo as mulheres o seu culto de forma diferente daquela que apresentam na presença de homens, rindo, conversando e dançando.

O templo acolhe ainda outras actividades de carácter cultural ou social. É o caso de espectáculos de música ou dança, organizados pela direcção do templo ou por grupos exteriores, ou o funcionamento de uma escola de gujarati e inglês para crianças, que decorre aos sábados à tarde e que envolve a participação das mulheres mais jovens no ensino e auxílio das línguas, juntamente com um professor de gujarati (cf. capítulo 4).

Paralelamente ao espaço público do Templo de Shiva, destinado a cerimónias comunitárias e festividades cíclicas, existe o culto doméstico individual ou em pequenos ajuntamentos de mulheres. No que diz respeito ao culto doméstico individual, este faz parte da vida de todos os hindus. Cada casa possui um pequeno templo doméstico de preferência colocado num espaço distanciado do local de passagem, protegido dos principais focos de poluição. Os devotos realizam diariamente o ritual de adoração (puja) consagrado às divindades que se encontram no interior deste pequeno mandir. Este ritual consiste na adoração e atenção prestada às divindades, através de actos concretos, como os descritos por Fuller:

In puja, the deity in its form as an image is typically welcomed with a drink of water; it is undressed and bathed, and then clothed again, decked in jewellery and garlanded with flowers. […] the deity is offered a meal, ideally of sumptuous splendour, and entertained by music, singing and dancing; incense is wafted over it and decorated lamps are waved before it. At the end, the deity is bade farewell with the standard gesture of respect (Fuller, 1992: 57).

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Panchanga é a astrologia védica, que permite conhecer os dias e as horas auspiciosas e inauspiciosas. 167

Esporadicamente participam alguns homens, como maridos que acompanham as mulheres, sendo no entanto muito rara a participação masculina nestes momentos em que apenas mulheres e crianças se encontram presentes no templo.

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Este gesto afectuoso para com as divindades propicia-lhes um bem-estar que será retribuído sob a forma de bênçãos recebidas pelo devoto. Mas a casa não só é o espaço privilegiado para a devoção espiritual individual, como acolhe também sessões devocionais organizadas por pequenos grupos de mulheres.

Durante os dias de semana, enquanto os homens se encontram a trabalhar, as mulheres ocupam algumas das suas tardes com estes encontros religiosos. São satsangs, reuniões devocionais que incluem cânticos (bhajan, kirtan), hinos (stotras) e leituras de livros sagrados e que terminam com a realização do aarti (ritual de culto às divindades, veneradas com movimentos circulares de lamparinas acompanhados de cânticos próprios) e distribuição de prasad.

Estas reuniões são organizadas pelo grupo do satsang e são distribuídas rotativamente pelas suas casas. Este grupo é composto na sua maioria por mulheres com mais de 50 anos pertencentes a várias castas, por vezes acompanhadas pelas suas familiares mais jovens quando estas têm tempo livre. As cerimónias públicas onde habitualmente acorrem muitos fiéis são, em parte, organizadas pelas mulheres que nestes momentos recrutam também a participação das jovens.

A celebração dos Ekadashi (ou Agyaras) não varia muito deste tipo de reuniões. No Agyaras, o décimo primeiro dia de cada metade lunar do mês hindu (agyar em gujarati significa “onze”) as mulheres reúnem-se para prestar culto aos deuses com cânticos e danças, acto recorrente em todos os satsangs, terminando igualmente com a realização de aarti e distribuição de prasad. Acredita-se que este dia é benéfico e que a realização de jejuns e de outras austeridades resultará na purificação espiritual de quem os pratica. Estas reuniões nem sempre decorrem no templo. As mulheres preferem reunir-se em suas casas, pela proximidade destas relativamente ao templo, que se encontra num local ermo, deslocado do agregado populacional hindu.

O culto em espaço doméstico funciona também como elemento organizador da comunidade, permitindo a ocupação das mulheres, assente numa lógica religiosa e, consequentemente, uma unidade deste grupo feminino em torno destas tarefas. Desta forma, as mulheres contribuem também para a manutenção de práticas e rituais religiosos específicos que vão sendo transmitidos aos mais jovens com o intuito de assegurar a coesão identitária da comunidade. Face à ausência dos homens, as mulheres assumem a tarefa de conservadoras de práticas culturais e de organizadoras do grupo, ao mesmo tempo que ocupam o seu tempo livre com esta forma de sociabilização feminina. Esta problemática possui elementos que remetem para a articulação teórica

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entre religião e género (cf. Donaldson & Pui-Lan, 2002) cuja relevância social é posta em evidência no contexto da comunidade hindu residente em Portugal.