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Corpo feminino e estereótipos

Capítulo

6.3. Corpo feminino e estereótipos

Para além da entrada no universo profissional, a utilização do corpo pode também revelar o nível de autonomia feminina. Para as mulheres hindus mais velhas o seu corpo deverá ser coberto e as suas formas pouco evidenciadas. Neste sentido, as várias formas de vestuário indiano (sendo o sari e o salwar kameez ou panjabi os mais utilizados) permitem esconder aquilo que, de acordo com as mulheres hindus, o vestuário ocidental não esconde, sendo «vestir calças» uma expressão habitualmente utilizada para diferenciar o uso de roupa ocidental do vestuário tradicional indiano. O cabelo das mulheres não deve ser excessivamente curto e, quando comprido, não deve ser solto. Contudo, muitas mulheres pertencentes à segunda geração possuem outra

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Ser jovem em diáspora implica, em muitos casos, a procura de pontos de referência estáveis, num contexto em que a religião surge como uma linguagem para nação (Shukla, 2005: 233). Como aponta Shukla, alguns jovens rejeitam a fluidez da identidade cosmopolita e procuram organizar-se em torno da identificação com os valores culturais do subcontinente, não necessariamente associados aos movimentos nacionalistas. Contudo, Shukla aponta: «In all these cases, movements in the subcontinent reach out to their wayward sons, even if they are in a new generation and have a relatively abstracted relationship to the nation (Shukla, 2005: 233)».

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visão acerca das regras de vestuário feminino, alegando que as calças são mais práticas para o dia-a-dia e que os saris estão reservados apenas para as festas do calendário religioso.

No entanto, a expressão corporal das mulheres hindus vai para além destas razões práticas, funcionando a adopção do vestuário ocidental como um símbolo de modernidade, por oposição ao tradicionalismo que o sari ou o salwar kameez representam. Nem todas as mulheres podem «vestir calças», por imposição familiar. Enquanto são crianças, não encontram obstáculos relativos à sua forma de vestuário mas, à medida que vão crescendo, a família encarrega-se de limitar a sua exposição corporal. Desobedecer a estas regras é, por vezes, uma conquista de liberdade.

A inspiração da moda ocidental em elementos tradicionais indianos, como os tecidos, os padrões e cores ou ainda os acessórios como pulseiras ou brincos permite às mulheres hindus a adopção de um modo de vestir que conjuga elementos culturais distintos como o uso de túnicas com calças, aceitável pelos elementos mais conservadores da comunidade. Ainda assim, as raparigas mais jovens adoptam o tipo de vestuário utilizado pelas suas colegas de escola ou universidade, tendo sempre em conta os limites que lhes são impostos, sendo o uso de mini-saias ou de outras peças que evidenciem em demasia o corpo, sancionados.

Entre as mulheres mais jovens, o corpo feminino é expressão de autonomia, de modernidade e ocidentalização ou de submissão face à autoridade familiar ou do grupo. A adopção de jeans e de cabelos soltos e cortados poderá ser um fenómeno natural para algumas jovens, mas, para outras, ele é um processo de autonomia face à autoridade patriarcal. A análise das representações do feminino em diáspora permite conceber o corpo como um instrumento de poder, por um lado e, por outro, como um dos eixos da tensão entre tradição e modernidade.

As transformações da sociedade indiana que originaram o crescimento da classe- média em contexto urbano contribuíram para a criação de novas oportunidades que permitem às mulheres confrontar os papéis tradicionais. Kakar e Kakar colocam a mulher no centro das mudanças ocorridas na sociedade indiana contemporânea (Kakar e Kakar, 2007: 42) e resumem do seguinte modo a sua relevância no centro da tensão entre tradição e modernidade:

Caught in the cross-fire of ideologies that seek to defend the traditional vision of Indian womanhood and those that seek to free her

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from the inequalities of religiously sanctioned patriarchies, the modern Indian woman is engaged in a struggle between two opposing forces in her psyche as she seeks to reconcile traditional ideals with modern aspirations (Kakar e Kakar, 2007: 42).

A conciliação entre as duas forças decorre num contexto influenciado pela ideologia conservadora que regula os padrões de comportamento das mulheres, consideradas elementos centrais do processo de conservação das tradições. Apesar de o impacto nacionalista não possuir forte expressão entre a comunidade em estudo, os seus princípios fundamentais estão presentes nos processos de construção identitária de género. Assim, promove-se uma identidade hindu com recurso a um passado glorioso do Hinduísmo, personificado pela mulher. A articulação entre o corpo feminino e nação é um elemento central do discurso nacionalista. Resumindo: «the honour of the family and, by extension, the nation depends on the integrity, modesty, and submissiveness of the female body» (Van der Veer, 1994: 85).

O protótipo da mulher hindu, tema central do nacionalismo indiano de direita é representado pelo culto da vaca sagrada, fazendo do movimento de protecção deste animal, um dos principais temas do nacionalismo hindu emergente (Van der Veer, 1994: 86). O simbolismo da vaca sagrada enquanto mãe protectora e alimentadora, associa-a à mulher, cuja função principal é, como temos vindo a analisar, a da manutenção da família e da submissão ao marido. O paralelismo entre a vaca e a mulher é analisado da seguinte forma por Peter Van der Veer:

Mother cow is thus only one image in a repertoire of images concerning the female body and the interplay of femininity and masculinity. However, it is a crucial image, since as a mother the cow signifies the family and the community at large. She depends on the authority and protection of the male of the family. While mother cow refers to family and nation alike, her protection refers to patriarchal authority and to the Hindu state, the rightful kingdom of Rama (Van der Veer, 1994: 90).

O corpo feminino é, no contexto da diáspora portuguesa e, em particular, entre a comunidade hindu de Santo António dos Cavaleiros, um veículo de produção de novas identidades e estatutos. Por outro lado, ele próprio é a imagem de emancipação ou de submissão em relação ao domínio do sistema patriarcal. A conservação do sari (ou de outros tipos de vestuário tradicional como o salwar kameez) é sinónimo de uma estratégia de construção identitária ou de sujeição aos códigos mais conservadores

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impostos pelo grupo social ou familiar. A adopção de jeans ou de outras peças do vestuário ocidental é exemplar de uma autonomia face a esta autoridade, por vezes problemática, com vista à construção de uma imagem de modernidade e urbanidade, associadas ao protótipo de mulher ocidental.

Mas a questão do vestuário encontra-se também relacionada com o estereótipo feminino que distingue as mulheres que chegam da Índia. Recordo o discurso de uma mulher de 25 anos, nascida em Portugal a propósito das mulheres recém-chegadas da Índia, através do casamento, reprovando o facto de estas terem abandonado o uso do vestuário tradicional: «Estas raparigas chegam a Portugal e deixam de usar o panjabi [dress]. Começam a vestir calças de ganga e roupas “portuguesas”. Quando fazem a mala para vir para Portugal deviam deixar todos os panjabis na Índia, porque quando chegam cá nunca mais os vestem». Lembro também a minha perplexidade, olhando para as suas calças de ganga e top de algodão. Reclamava para si o direito que não lhes dava a elas, as «raparigas da Índia» que deveriam conservar na sua expressão corporal a imagem correspondente ao estereótipo da mulher hindu.

Este episódio demonstra como a construção de estereótipos associados às mulheres hindus não surge apenas a partir dos indivíduos exteriores à comunidade que, habitualmente, associam as mulheres e os elementos corporais que exibem à essência da identidade hindu. Para as jovens nascidas em Portugal, as mulheres chegadas da Índia, como as mulheres mais velhas das suas famílias, deverão corresponder aos estereótipos da mulher tradicional e, deste modo, manter o vestuário tradicional indiano, uma profunda ligação ao espaço doméstico e aos afazeres que lhe são inerentes.

No entanto, estas mulheres estudam português, tiram a carta, vestem jeans, saias e usam cabelo curto, contrariando a ideia essencializada que as mulheres hindus nascidas fora da Índia fazem delas. Mais, elas retiram-lhes o privilégio que haviam conquistado, com a dificuldade anterior que estas não encontraram, ao contrariarem as normas conservadoras que a sua comunidade utilizou para poder sobreviver no meio da sociedade envolvente.

Os papéis femininos, como vimos, são inculcados desde cedo nas raparigas e preparam-nas para o casamento, no qual deverão ter um desempenho virtuoso, capaz de agradar ao futuro marido e à futura família de aliança. No sentido de se tornarem boas esposas, as raparigas deverão ser filhas exemplares e obedecer às normas comportamentais, das quais o vestuário é um elemento fundamental. De acordo com as jovens que cresceram em Portugal, as regras que ditavam o modo como se deviam

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comportar durante a sua passagem para a vida adulta eram mais rígidas do que na Índia. De facto, a entrada na puberdade, aumenta a necessidade de controlo sobre as raparigas223 e estas sentiram-no de forma excessiva, de tal modo que a possibilidade de adoptar estilos de vestuário ocidental é considerada uma conquista. As mulheres pertencentes à segunda geração, assim como aquelas recém-chegadas da Índia, não encontram normas tão rígidas no que respeita ao seu comportamento e, à semelhança das mulheres pertencentes à classe-média urbanizada da Índia, conciliam elementos tradicionais e oportunidades que a sociedade ocidental lhes oferece.

A comparação com o contexto urbano e modernizado indiano permite encontrar mais uma semelhança com a experiência de diáspora, que reside no facto de, apesar da conquista de novas oportunidades, como a aquisição de carreiras profissionais ou a adopção de comportamentos e expressões corporais menos disciplinados, os valores tradicionais associados à maternidade e às obrigações domésticas permanecem centrais na construção da sua identidade feminina. Vejamos como Kakar e Kakar descrevem este fenómeno:

In some ways, the middle-class woman, whether she is working or not, is even more child centred than her traditional counterpart. For instance, she has taken on the primary responsibility for the education of their young children and plays a key role in arranging the children’s recreational activities, areas which used to be earlier in the domain of the husband and elder male members of the joint family […] The achievements of the children, especially educational, are her biggest source of satisfaction and validation as a woman. Irrespective of whether she is working or not, the middle-class woman’s maternal role is not an imposition but freely and joyfully chosen; motherhood remains the acme of a fulfilled life (Kakar e Kakar, 2007: 68).

Do mesmo modo, as mulheres hindus de Santo António dos Cavaleiros atribuem aos valores associados à maternidade uma importância central, não só no âmbito da sua própria família, mas também numa perspectiva mais abrangente, como comprova a sua preocupação com a educação dos membros mais jovens da sua comunidade.

A imagem que as mulheres da sociedade envolvente constroem das mulheres hindus baseia-se igualmente em estereótipos. O fechamento da comunidade e a

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Evitando o contacto com o sexo oposto, que possa por em causa a honra (izzat) da jovem e de toda a sua família. Acredita-se que a transformação do corpo feminino e o início da sua capacidade de reprodução colocam as raparigas numa situação de vulnerabilidade, devendo ser protegidas do contacto com os rapazes, e o seu comportamento controlado. Neste contexto, o vestuário que adoptam é muito importante.

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circunscrição das suas mulheres ao espaço doméstico dificultou a interacção com as suas congéneres ocidentais. Para além dos encontros fortuitos nas lojas, nos prédios ou nas escolas, o seu relacionamento mais profundo ocorre apenas entre as mulheres jovens que nasceram em Portugal. Contudo, o crescimento do interesse pelos valores culturais da Índia, associado a uma forma cosmopolita de moda, por um lado, e a intensificação da interacção da geração mais nova com a restante população, por outro, conduziram a um processo de conhecimento que permitiu diminuir preconceitos sobre esta população.

Novamente, as mulheres são vistas como símbolo do grupo e o seu vestuário a forma mais visível da sua identidade. As mulheres hindus referem o interesse das mulheres com quem se cruzam no quotidiano nas suas representações corporais, perguntando-lhes como se designam as suas, como se vestem, o que representam os símbolos exteriores como o brinco utilizado no nariz ou o sinal no centro da testa (chandlo ou bindi). Face a este interesse, as mulheres hindus sentem-se orgulhosas pelo impacto que têm nas outras mulheres e pela oportunidade que lhes é dada de poderem explicar as razões dos seus sinais corporais que as distinguem da restante população. Como descreve uma das mulheres do grupo do satsang: «As minhas vizinhas gostam muito dos meus saris. Dizem que as roupas indianas são muito bonitas. Às vezes perguntam por que é que usamos uma pinta na testa e eu explico que é o sinal de mulher casada. É muito bom elas gostarem das nossas tradições e compreendê-las. Assim vão respeitar.».

Ainda assim, têm que lidar com a imagem estereotipada que as associa à sua origem, essencializando a mulher hindu com recurso à continuidade entre corpo feminino e nação. Como afirma Hole:

Diaspora women have to deal with the burden of being compared to the images that the media prefer to present of women from the “Third World.” […] It is a common feeling among the informants that the receiving community has very limited understanding of “immigrant women”, or, more so, a generalizing attitude towards immigrant women across all categories. To standardize an individual and her cultural, as well as social heritage, is to remove from her the rights as an individual (Hole, 2001: 455).

De facto, esta imagem que retira às mulheres autonomia subjuga-as à totalidade comunitária. Contudo, também a este nível, a intervenção das mulheres permite combater o desconhecimento e desmistificar os preconceitos que essencializam a mulher hindu. O interesse mútuo da entrada nos universos femininos que se gera a partir

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destes encontros é uma oportunidade para a realização de influências mútuas. O crescente interesse pelas referências “exóticas” do “Oriente”, de que a população hindu é a representação mais próxima da população de Santo António dos Cavaleiros, despertou uma actual procura de informação relativa aos mais diversos domínios da vida hindu. O novo “orientalismo” que magnetiza sectores da população portuguesa em torno de expressões culturais, religiosas e estéticas associadas à Índia atribui uma maior visibilidade às mulheres hindus que residem em Portugal há cerca de três décadas.

Embora as mudanças pelas mulheres pareçam lentas e pouco visíveis, elas são, todavia, decisivas no processo de intersecção entre tradição e modernidade:

This, then, is the modern Indian woman: in a white cotton sari at one moment, carrying out an age-old ritual with an attention to detail that both absorbs and animates her, and in a pair of blue jeans at another time, prowled on a sofa in front of the television watching a soap on family intrigues with an intense interest that lights up her entire face. Hers is the driving force in the changes taking place in the Indian family, an institution that is inherently conservative and changes at much slower pace than the political, economic and other institutions of society (Kakar e Kakar, 2007: 68).

Tal como as suas congéneres indianas, as mulheres hindus em diáspora manipulam o seu próprio estatuto no interior do domínio patriarcal. De acordo com as representações que constroem a partir da personagem mítica Sita, consideram-se seguidoras do stridharma e, simultaneamente, capazes de alcançar os seus desejos, graças ao forte poder de persuasão e à fidelidade às suas convicções.