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Articulando diáspora, religião e género

Capítulo

1.4. Articulando diáspora, religião e género

A perspectiva etnográfica sobre os processos de diáspora permite aprofundar a compreensão das categorias que integram estes fenómenos. Nina Glick Shiller destaca, relativamente à perspectiva transnacional do estudo das migrações, em conjunto com Basch e Blanc-Szanton, a utilidade da etnografia no estudo dos fenómenos transnacionais (2007, [1992])25. Com base na observação etnográfica, de resto essencial à prática da antropologia, a análise que proponho da comunidade hindu residente em Santo António dos Cavaleiros, irá direccionar-se, como afirmei, para o domínio que Vertovec denominou de diáspora como forma de reprodução cultural. Como tal, enunciarei, de seguida as categorias centrais do presente estudo.

São duas as categorias centrais desta dissertação: género e religião. Informação mais detalhada será fornecida no capítulo seguinte, apresentando de momento resumidamente as categorias que integram o meu estudo, tentando hierarquizar a sua centralidade na presente dissertação.

A observação de uma diáspora, ou de um conjunto de indivíduos que se encontra comunitariamente organizado de forma diaspórica, implica um olhar abrangente do grupo como um todo e não o isolamento das categorias centrais da análise. Neste sentido, é necessário dar especial atenção também a outros elementos, intimamente ligados ao processo de reprodução cultural: casta,mobilidade social, família, e língua.

Não basta, no entanto, observar a comunidade como um todo. É necessário apreender a sua articulação com o espaço social envolvente, ou seja, ultrapassar as barreiras da sua auto-identificação. Essencial também é ultrapassar ainda as barreiras nacionais, com todas as dimensões que com estas se associam, transpondo para a análise a noção de multi-localidade que caracteriza a diáspora. Demonstrei anteriormente a vantagem de realizar um trabalho de campo itinerante no contexto dos estudos de

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O artigo foi anteriormente publicado em 2003 em: Foner, Nancy (org.). American Arrivals: Anthropology Engages

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imigração, diáspora ou transnacionalidade, ou seja, de acompanhar fisicamente os indivíduos nos seus processos de transposição cultural e territorial (cf. Lourenço, 2005). Assim, para além de ultrapassar as barreiras sociais e culturais do grupo no contexto do seu enquadramento na sociedade envolvente, o investigador deverá também ter presente a necessidade de atribuir às fronteiras nacionais um carácter flexível e crescentemente penetrável, quer física, quer culturalmente.

As dimensões de diáspora como forma social e como tipo de consciência encontram-se associadas ao relacionamento do grupo com a sociedade de acolhimento, a nível local e pessoal e, a um nível mais abrangente, às referências culturais do país de estabelecimento. Neste contexto, podemos incluir, por um lado, as relações sociais entre os indivíduos dentro e fora do seu grupo, a simultaneidade que caracteriza a sua vida quotidiana, as orientações políticas e as estratégias económicas (cf. Levitt e Glick Shiller, 2007), e. por outro, a consciência e memória diaspóricas, os conceitos de identidade, comunidade ou etnicidade e a sua utilização na construção de discursos públicos.

A religião é, como vimos, um dos elementos centrais na definição desta diáspora, e também da comunidade sobre a qual recai este estudo. A razão por detrás da escolha da categoria religiosa para designar quer a diáspora, quer a comunidade é, na prática, a mesma: distinguir este grupo dos outros que, apesar de provenientes do mesmo país de origem, professam religiões distintas: muçulmanos, sikhs ou cristãos.

O elemento religioso é a primeira característica que destaco, pelo impacto mais visível na sua organização social e nas formas de expressão cultural desta comunidade. Cohen, apesar de não reconhecer a possibilidade da existência de diásporas religiosas – ao contrário de Vertovec, como vimos – afirma que: «religions can provide additional cement to bind a diasporic consciousness» (Cohen, 1997: 189). Outros autores referem a pertinência da categoria religiosa na consolidação da estrutura das diásporas, como é o caso de Clarke et alii que incluem a religião na sua análise das diásporas sul asiáticas:

Religion: proportion of faiths (Hindu, Muslim, Sikh, Jain

Christian); presence or activities of sects or movements within these traditions (such as Swaminarayanis or Sai Baba devotees among Hindus, Suni or Ismaili Muslims, and moderate or pro-khalistan Sikhs); extent of organization; existence of centres of worship; prevalence of priestwood abroad (Clake et alli, 1990: 6).

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Roger Ballard considera a religião um elemento essencial na consolidação de

Desh Pardesh, expressão que utiliza para descrever o processo de construção da

realidade social, cultural e espacial das diásporas sul asiáticas em Londres. Martin Baumann refere a construção de Little Indias levada a cabo por esta população, no contexto das quais a religião – o hinduísmo – não só se mantém, como é transformado através de reinterpretações e reificações desta religião (cf. Baumann, 1998). Deixarei para o próximo capítulo a discussão do fenómeno religioso entre as diásporas hindus.

Sendo também uma das categorias centrais desta discussão, as questões de género serão igualmente analisadas capítulo 2, com a profundidade que o conceito merece. Farei, de momento, apenas breves considerações. A diáspora permitiu a alteração dos papéis de género, no âmbito das quais gostaria de destacar a capacidade e responsabilidade progressivamente atribuída às mulheres na reprodução cultural das suas comunidades. Entre a diáspora hindu têm sido observadas transformações claras nos estatutos femininos a nível da organização formal e do domínio público (cf. Rayaprol, 1997), das artes, da mobilização política e também no campo religioso. Mas, antes de analisar as possíveis articulações entre as diferentes categorias, é necessário ter em conta que o movimento de deslocação da diáspora influenciou, à partida, a reconfiguração dos papéis de género.

O restabelecimento num novo espaço social e cultural, com diferentes perspectivas sobre o papel da mulher, juntamente com o progressivo impacto dos meios de comunicação, poderá condicionar o modo como estas se movimentam no interior do seu grupo, mesmo que o façam de forma aparentemente discreta. Contudo, a deslocação pode também originar a associação de rótulos femininos e masculinos dada a necessidade de preservar estatutos de género (cf. Glick Shiller, 2007) e como meio de assegurar a lógica das instituições familiares. A inexistência – ou escassa presença – de mulheres nas comunidades estabelecidas na Trinidade originou quebras da vida familiar e das normas sociais do grupo. Quando este desequilíbrio diminuiu, através do estabelecimento das mulheres, os processos de reconstituição da vida familiar funcionaram como uma fonte de coesão social (cf. Cohen, 1997). A liberdade e o controlo sobre as vidas das poucas mulheres que se encontravam anteriormente em minoria na Trinidade desapareceram através de esforços masculinos para restabelecer o sistema familiar patriarcal.

A complexidade interna das diásporas hindus, bem como as suas particularidades, originarão, decerto, diferentes caminhos através dos quais as mulheres

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vão experimentando novos estatutos, mesmo quando condicionados por lógicas conservadoras e patriarcais. Na Índia e em diáspora as mulheres assumem tarefas religiosas anteriormente dominadas por homens, modificando os papéis de género tradicionais, embora no interior de uma estrutura social patriarcal. A aquisição destas novas tarefas funciona, no entanto, como um impulso à libertação do domínio masculino e à maior abertura para a sociabilização. Falar de mulheres hindus em diáspora, implica portanto, analisar a sua articulação com a esfera religiosa, que conjuga simultaneamente imagens de autonomia e de conservadorismo feminino, influenciadas por práticas e ideologias nacionalistas que, insidiosamente, são integradas na actividade quotidiana destas mulheres.