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Movimentos religiosos: Swadhyay Parivar, Pushtimarg e Satya Say Baba

Capítulo

6.5. Movimentos religiosos: Swadhyay Parivar, Pushtimarg e Satya Say Baba

Referi no início desta dissertação que a sequência do meu trabalho etnográfico na comunidade hindu de Santo António dos Cavaleiros me levou a prescindir de um plano de análise que outros contextos de diáspora revelaram ser central: o nacionalismo. Sugeri, todavia, neste capítulo, a possibilidade de um crescente movimento nacionalista transnacional vir a insinuar-se nesta comunidade – sendo já perceptível ao nível de alguns comportamentos das mulheres mais velhas. As mensagens nacionalistas transnacionais são veiculadas por movimentos religiosos que encontram nas mulheres eficazes canais de comunicação, desenvolvendo, contudo, o «grupo do satsang», uma identidade própria distinta das práticas mais rígidas propostas por alguns destes movimentos. É chegada, pois, a altura de os enunciar.

A importância dos movimentos religiosos na diáspora exprime-se essencialmente no forte impacto da bhakti (“devoção”), a relação de amor entre a divindade e o devoto. O movimento da bhakti surgiu no Sul da índia nos séculos XII- XIII e aplica-se às tradições shaiva e vaishnava. Esta corrente popularizou-se pelo subcontinente e, no Norte, a sua maior expressão encontra-se associada ao culto de Vishnu. Contudo, apesar da centralidade deste deus nestes movimentos, muitos dos seus seguidores prestam também culto a outras entidades. Aliás, Pocock refere, a propósito da tradição vaishnava no Gujarate que: «the most diffuse form is indicated by such terms as Vaishnavism and Shivaism which imply theologies and philosophies centring respectively, but not necessarily exclusively, on Vishnu and Shiva» (Pocock, 1973: 99).

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Os movimentos vaishnava celebram o amor de Krishna e Radha, a jovem guardadora de gado, sendo este o modelo também a seguir pelo devoto, para a sua relação com a divindade. O culto de Krishna durante a sua juventude (como Balagopala e Balakrishna) é particularmente importante para os seguidores de Vallabhacharya, um conhecido filósofo da bhakti e fundador do movimento Pushtimarg. A bhakti promove a ideia de que a relação do devoto para com a divindade deve ser baseada num sentimento de amor, sendo o deus visto como o salvador que desce à terra (através dos seus avatar), procurando aproximar-se dos homens para os auxiliar. Ele garante liberdade, atingida através de uma relação de amor e lealdade entre si e o seu devoto, sendo o amor da mulher pelo seu marido, o modelo desta relação, popularizado pela devoção de Radha por Krishna. A imagem dos amantes unidos é a metáfora para um encontro perfeito com a divindade. Pocock associou também a palavra entusiasmo à noção de bhakti, para além do seu cariz de amor fervoroso (Pocock, 1973: 100), sendo este expresso através dos cantos (bhajan, kirtan) e hinos (stotras) recitados, da música e da dança, que caracterizam este tipo de devoção.

A bhakti promove também a rejeição dos privilégios de casta, do domínio bramânico que promove a exclusão das mulheres e dos socialmente mais desfavorecidos, oferecendo uma oportunidade de diminuir os estigmas sociais e de género dos mais marginalizados. Na diáspora, as ideologias nacionalistas que circulam através destes movimentos, promovem um hinduísmo universal e pan-indiano, pretendendo eliminar as diferenças sociais dos hindus e realçar a sua unidade nacional.

A escolha da infância dos deuses revela também a capacidade divina de brincar. Os deuses são venerados enquanto crianças, sendo frequente ver as imagens de Krishna ou Rama colocados num berço ou baloiço. Para além da infância, também a maternidade é celebrada, na figura das mães dos deuses e também no culto da deusa- mãe. As travessuras de Krishna são o exemplo do humor de deus e da sua capacidade de brincar. Assim, brincar com a divindade, cantando e dançando como modo de celebração, é a forma preferida de expressão da devoção (Michaels, 2005: 258).

A bhakti não deverá ser vista apenas como uma forma de religiosidade, mas também como um veículo de transformação social e política, fruto de várias influências – de que é exemplo o islão – capaz de anular diferenças e de unificar indivíduos:

Vaishnavism provides the idiom for what seems to be a special area of Gujarat social life, a section in which universalist values can be

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expressed through the bhajan, and individualistic values asserted through bhakti. Instead of obliging us to see […] purity and impurity, Brahman and Untouchable, linked by symbiosis which makes this life meaningful, this language speaks of an equality brought about by each individual´s dedication to a single lord (Pocock, 1973: 107).

Transposta para a diáspora, esta ideia torna-se mais concreta, na tentativa de uniformizar diferenças sociais, culturais e de género. A referência regional, o Gujarate, deverá também ser tida em conta nesta análise. Ao contrário do que se verifica noutros contextos diaspóricos, os hindus presentes em Portugal são originários em grande maioria do mesmo estado, o Gujarate. Este facto elimina à partida o problema da confluência de línguas, tradições culturais e práticas religiosas num mesmo local. Sendo o Gujarate a referência identitária central do grupo, também o deveriam ser os movimentos religiosos que maior impacto têm nesse estado, como é o caso do Swaminarayan. No entanto, este tem vindo a perder representatividade entre a comunidade em estudo, cujos membros se direccionam antes para o Swadhyay Parivar e Pushtimarg. O culto de Satya Sai Baba encontra-se também em expansão e as visitas de outros grupos de referência hindu com impacto entre os europeus e também de especialistas do hinduísmo e mestres espirituais completam o quadro da religiosidade hindu em santo António dos Cavaleiros.

O movimento universalista denominado Swadhyay (“auto-estudo”) Parivar (“família”) encontra-se implantado em Santo António dos Cavaleiros, reunindo-se ciclicamente e organizando, ocasionalmente, apresentações públicas no Templo de Shiva233. O seu fundador foi Pandurang Shastri Athavale, conhecido por Dadaji, que nos anos 40 iniciou os seus discursos sobre o Bhagavad Gita. Inspirada por este texto, a filosofia de Dadaji baseou-se na absoluta confiança divina e na sua presença em qualquer ser vivo. O maior impulso dos seres humanos deverá ser a bhakti, uma atitude e expressão de agradecimento à divindade.

São cerca de 600 000 os swadhyays seguidores da bhakti que compõem esta organização não-estruturada por muitos países, sem templos e organização formal, o

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Os seus adeptos participam também na vida religiosa associada ao templo mas são críticos assíduos das falhas das actividades associadas com o Templo de Shiva, como os atrasos com que se iniciam as cerimónias ou festividades, por comparação com a rigidez das actividades Swadhyay.

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que lhe atribui a característica que lhe dá nome, uma família234, sendo o principal objectivo desta filosofia, a denominada transformação cultural e social do ser humano, e a capacidade de desenvolver nele um sentimento da presença divina através da bhakti que, para além do seu poder espiritual pode ser transformada em força social. O relacionamento entre ser humano e divindade, e também e com os outros, decorrente da noção de bhakti, é princípio fundamental do movimento. A acção social deverá ser compreendida como um fruto da bhakti, sendo esta vertente prática o resultado da verdadeira devoção, que resulta no trabalho construtivo pelo bem colectivo, visto como activismo devocional (krutibhakti). Mais do que a procura de um afastamento ascético dos bens materiais, o objectivo da Swadhyay Parivar é a utilização destes para o progresso individual e social, sendo o serviço (seva) é um dos principais objectivos da vida de um swadhiay. Baseado nos ensinamentos do Bhagavad Gita, este movimento promove a transcendência do ego, através de uma orientação activa das esferas social e económica num contexto em que a pertença a esta família elimina distinções internas, como a língua ou a casta de cada indivíduo, apelando ao universalismo.

O Pushtimarg adquiriu um crescente impacto entre as mulheres da comunidade, reunindo-se o grupo com frequência, em casas das suas devotas. O satsang do Pushtimarg ocorre em dias auspiciosos do calendário, particularmente no agyaras. Estes momentos devocionais são liderados por uma mulher que orienta o satsang, composto exclusivamente por mulheres, entoando cantando hinos, fazendo leituras e reflectindo sobre elas. Ao contrário dos satsang gerais, este caracteriza-se por um rigor, considerado por muitas mulheres excessivo235. Por outro lado, este carácter rigoroso confere uma resposta à necessidade de reflexão sobre os textos religiosos e a sua aplicabilidade quotidiana que algumas mulheres mais jovens procuram.

O movimento Pushtimarg, que significa “caminho da graça”, tem mais de 500 anos e foi fundado por Vallabhacharya Mahaprabhu. Vallabhacharya foi um dos principais filósofos da bhakti e da sua importância no pensamento hindu. A divindade central deste movimento é Shrinath, uma forma de Krishna, com a qual ele terá deixado

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Esta família que viu recentemente partir o seu líder e fundador, conta agora com a orientação da sua filha, conhecida por Didiji, que tem cativado sobretudo as mulheres e os jovens, tendo conseguido manter unida a família Swadhyay.

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É frequente algumas mulheres sentirem necessidade de se justificar perante o rigor destes momentos devocionais, comparando-os com os satsang organizados por elas próprias. O «nosso satsang», como costumam referir, é mais animado, mas neste nem podemos falar umas com as outras. Ela [a mulher que lidera o movimento] manda logo calar. É muito sério», relata uma mulher do «grupo do satsang».