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Relações de sociabilidade dentro do grupo

Capítulo

3.4. Redes de contacto

3.4.1. Relações de sociabilidade dentro do grupo

A análise sociológica da sociabilidade dos guineenses em Portugal, realizada por Fernando Luís Machado, incidiu nas relações que estes estabelecem entre si, com outros migrantes dos PALOP e, finalmente, com a população portuguesa em geral, relativamente a quatro «tipos de relacionamentos sociais»: familiares, de amizade, profissionais e de vizinhança (Machado, 2003: 132). Não pretendendo realizar uma análise nos mesmos moldes (a recolha empírica realizada para o referido estudo – inquéritos por questionários utilizados na abordagem sociológica – distancia-se daquela utilizada pela abordagem antropológica que realizei), é meu objectivo salientar que são os mesmos quatro «tipos de relacionamento» que se encontram no centro da minha análise das redes de contacto relativamente ao grupo em estudo. Contudo, esta deverá

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A expressão é retirada do título do livro editado por Antónia Pedroso de Lima e Ramon Sarró e pretende reflectir a actividade antropológica e a pesquisa empírica em contextos metropolitanos (Pedroso de Lima e Sarró, 2006).

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«The potential for personal change in the city, then, may hardly be rivaled in other community forms. We may call this the fluidity of urban life» (Hannerz, 1980: 269).

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dividir-se na perspectiva de dois universos: dentro do grupo, e do grupo com a sociedade envolvente.

A tendência para a diminuição do peso da casta no estabelecimento dos relacionamentos entre os hindus em diáspora é um facto comum a vários contextos (cf. Knott, 1986, Vertovec, 2000c), mas esta permanece, como vimos, nos dias de hoje um elemento fundamental na definição identitária dos hindus em diáspora. Em Portugal, o facto de a grande maioria dos hindus ser de origem gujarati permite que o sistema de castas seja reproduzido até um certo ponto, à semelhança da morfologia de origem. Observámos anteriormente a dificuldade de implantação do sistema hierárquico tradicional indiano em diáspora, mas vimos também que este possui a capacidade de se estruturar, permanecendo a casta um elemento fundamental de identificação individual e de grupo. No caso em estudo, a existência de um único grupo de origem geográfica – o Gujarate – facilita a perpetuação das identidades de casta84.

As redes de sociabilidade entre os hindus de Santo António dos Cavaleiros encontram-se condicionadas, para além das fidelidades de casta, pelo género. O espaço do quotidiano é, como vimos, praticamente exclusivamente feminino. Assim o são os relacionamentos de quem o ocupa. Se as mulheres possuem redes de sociabilidade femininas, os homens desenvolvem o mesmo padrão no que respeita ao estabelecimento dos seus contactos. Esta afirmação pode parecer demasiado redutora da realidade e é, por isso, necessário esclarecer que entre os mais jovens o mesmo padrão não se reproduz. Este varia ao mesmo tempo que varia o grupo etário observado. Quando crianças, a liberdade de contacto entre rapazes e raparigas não é reprimida, apesar dos diferentes padrões de comportamento que desde cedo lhes são ensinados. Do mesmo modo, nos sistemas familiares tradicionais da Índia, não são impostas até à puberdade regras rígidas quanto ao relacionamento entre géneros, mas a passagem para a puberdade marca a interrupção abrupta desta liberdade (cf. Perez, 1994: 110). Desde então, as redes de sociabilidade são condicionadas por factores como a idade ou o género.

Contudo, a diáspora abre novas possibilidades de relacionamento entre sexos. Se, entre os mais velhos, se mantêm padrões de sociabilidade mais rígidos, os mais jovens promovem novas formas de sociabilidade. O grupo de jovens do Templo de Shiva

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Para além de uma maioria de hindus originários do Gujarate, encontram-se também em Portugal, hindus provenientes dos estados de Goa e do Maharashtra (cf. Report of the High Level Committee on the

Indian Diaspora, 2001: 149) de Bengala, embora esta seja uma comunidade de muito pequenas

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desenvolve actividades que colocam em conjunto ambos os géneros, tendo como base uma ideologia de igualdade não só entre homens e mulheres como entre castas. No entanto, muitas famílias mantêm ideias conservadoras relativamente ao comportamento dos jovens, controlando as suas actividades e impondo limites – por vezes muito rígidos – ao contacto entre rapazes e raparigas.

As redes de sociabilidade entre a primeira geração encontram-se também relacionadas com os processos de adaptação à chegada a Portugal. A fixação num novo contexto, após a saída repentina de Moçambique, obrigou ao estabelecimento de fortes laços de solidariedade entre os membros desta comunidade. No mesmo sentido, o desenvolvimento de actividades religiosas e a congregação do grupo sob a forma de associação de solidariedade social testemunham o esforço de unificação comunitária em torno de questões religiosas que resultou no estabelecimento de redes de sociabilidade profundas, para cujo desenvolvimento o género ocupou claramente diferentes funções. Se bem que homens e mulheres se tenham mantido unidos na tarefa de organizar actividades colectivas, os primeiros sempre se ocuparam da esfera oficial e as segundas do domínio informal, ou seja, da concretização propriamente dita dessas actividades.

As relações de sociabilidade em espaço doméstico encontram-se, em alguns casos, sujeitas a regras de relacionamento que delimitam o contacto mais aberto entre géneros. No entanto, a observação etnográfica revela uma realidade que se distancia dos padrões tradicionais de relacionamento familiar. A regra geral entre todas as famílias é aquilo que é descrito como o «respeito para com os mais velhos», que consiste, para as mulheres, no recato na sua presença, na disponibilidade para obedecer às suas ordens, e no controlo do uso do seu corpo quando partilham o mesmo espaço85. É entre as mulheres de um mesmo grupo etário que se desenvolvem as principais redes de sociabilidade. O mesmo se passa entre os homens. Esta temática será aprofundada no capítulo seguinte.

As relações de vizinhança, desenvolvidas particularmente entre mulheres, constituem também uma das principais redes de sociabilidade. O facto de, em muitos dos prédios da freguesia, residirem várias famílias hindus86 facilita o seu contacto diário, mesmo sem terem que se deslocar às lojas ou aos encontros religiosos. As

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A prática feminina de cobrir o rosto (purdah) na Índia e em contextos de diáspora mais ortodoxos encontra-se na base das relações de evitamento feminino em relação dos homens mais velhos da família de aliança e da comunidade em geral.

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As casas das famílias hindus são facilmente identificáveis pelos símbolos auspiciosos que colocam nas suas portas. A observação destes símbolos permite-nos facilmente compreender a existência de uma grande concentração de hindus por edifício, com particular destaque para a zona da Cidade Nova.

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vizinhas visitam-se entre si nas suas casas, consolidando redes de solidariedade feminina.

Os espaços comerciais propiciam, como já vimos, o estabelecimento de redes de contacto e de circulação de informação que se estendem a toda a comunidade e constituem importantes dispositivos de sociabilização (não só entre vendedores e clientes mas também entre os vários comerciantes). Neste contexto, os homens estabelecem entre si laços de amizade, aproveitando os finais de tarde para confraternizar87.

As redes de sociabilidade desenvolvidas entre os membros da primeira geração encontram-se associadas, como vimos, ao desempenho de determinadas tarefas que, em conjunto, resultam na conservação de uma identidade comunitária. Paralelamente, a construção desta referência identitária conta com a participação das solidariedades que se desenvolvem em espaço familiar, de comércio e de convívio religioso, amplificando- se muitas vezes a teia de contactos sociais que lhes está associada, para além das barreiras nacionais. Tendo em conta que as relações de parentesco e os contactos comerciais se estendem através de redes transnacionais, também as redes de sociabilidade atravessam as barreiras nacionais, consolidadas de tempos a tempos, dada a frequente mobilidade de indivíduos e a facilidade de comunicação entre os vários pontos de contacto transnacional (cf. Basch et alli, 1994).

Entre a segunda geração, o peso do género na construção dos relacionamentos sociais terá reduzido entre uns, mas não entre outros. Neste âmbito, os níveis de escolaridade, em conjunto com o carácter mais ou menos conservador das famílias, definem o grau de sociabilidade entre géneros, sendo possível falar de dois modelos claramente distintos: o primeiro, em que as mulheres não trabalham e se dedicam exclusivamente às actividades domésticas (que implicam o apoio à família alargada) e o segundo, composto por aquelas que prosseguiram os seus estudos ou têm uma ocupação profissional, independente do controlo das famílias e do grupo.

É sobre as mulheres que recai este controlo e é, por isso, que é de acordo com as suas oportunidades e escolhas comportamentais, que o contacto entre géneros é condicionado. Os rapazes, por seu lado, encontram menores restrições impostas pelas suas famílias quanto ao contacto com raparigas. A instituição de grupos de jovens

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Reúnem-se frequentemente em cafés, ao fim da tarde, onde é habitual ver-se alguns homens indianos a conviver.

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associados ao Templo de Shiva criou uma maior abertura ao contacto entre os mais novos, que anteriormente se encontrava condicionado à esfera familiar ou a encontros esquivos nas grandes festividades públicas88. Contudo, é necessário ter em conta que, para participarem neste tipo de actividades, estes jovens precisam de ter o apoio das respectivas famílias.

As observações realizadas pelas minhas interlocutoras sobre a educação dos filhos ou netos demonstram, sempre, a preocupação com a perpetuação dos valores tradicionais, particularmente associados aos princípios do hinduísmo. Neste sentido, as estratégias de educação recorrem ao ensino dos conceitos religiosos e das suas expressões rituais e devocionais, do conhecimento – pelo menos oral – da língua gujarati e ao controlo das suas actividades fora de casa. O espaço doméstico deverá ser o local de transmissão religiosa e cultural para as crianças e jovens e, fora deste, o comportamento dos mais novos deve ser controlado. As raparigas são o principal alvo do controlo dos familiares, não só naquilo que fazem, mas também nos seus comportamentos e formas de expressão corporal89, desenvolvendo-se o estabelecimento de amizades principalmente no interior da família.

Para além das relações de parentesco, as relações de vizinhança, as amizades feitas na escola ou no trabalho geram redes de sociabilidade que vão, algumas vezes, para além do círculo de contactos restritos ao grupo dos hindus ou indianos, como veremos no próximo ponto. Contudo, observa-se a prevalência de redes de sociabilidade entre indivíduos pertencentes à mesma comunidade sobre aquelas estabelecidas com outros grupos, condicionadas particularmente pela educação das famílias. As actividades desenvolvidas no âmbito da comunidade contribuem também para a consolidação de redes de relacionamento social entre os jovens, abrindo um espaço de sociabilização que reúne ambos os géneros, e indivíduos pertencentes a diferentes castas. No entanto, uma vez mais, nem todos os jovens têm a possibilidade de participar nestas actividades, verificando-se, entre este grupo, o predomínio de jovens estudantes universitários, que têm maior liberdade, pois o facto de prosseguirem nos seus estudos demonstra já uma maior abertura das respectivas famílias. Estes promovem as suas perspectivas, por vezes opostas às dos mais velhos, contra a hierarquia de castas, particularmente no que

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A criação de mailinglists e fóruns de discussão na internet é recente e complementa as reuniões presenciais. Estes meios de divulgação e discussão entre os jovens da diáspora hindu em Portugal funcionam também como elo de ligação entre os jovens hindus e as referências religiosas e culturais da Índia (vide: http://www.inov-chp.org/; shiva_portugal@yahoogroups.com).

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respeita à escolha dos cônjuges, opondo-se, portanto, à obrigatoriedade da endogamia de casta na escolha dos parceiros matrimoniais.