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Estatuto etário e religião

Capítulo

6.2. Estatuto etário e religião

O envolvimento das mulheres hindus na esfera religiosa é, como tenho vindo a demonstrar, uma constante do seu dia-a-dia, principalmente se tivermos em conta que grande parte das mulheres de Santo António dos Cavaleiros não trabalha fora de casa. Contudo, duas posições distintas face à religião podem ser avançadas: a daquelas que repetem aquilo que aprenderam com as mulheres mais velhas da sua família sem interrogarem os seus fundamentos, e as que os questionam, procurando respostas para as suas dúvidas teológicas. A tradição religiosa feminina é transmitida das mulheres mais velhas para as mais novas em ambiente familiar e doméstico, de mães para filhas e de sogras para noras.

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As mulheres mais velhas dominam o conhecimento dos textos, e algumas delas a prática ritual, tradicionalmente masculina, aprendizagem que realizaram apenas quando a sua idade lhes permitiu libertarem-se das obrigações familiares. No seu seguimento, as jovens vão perpetuando esta sabedoria, particularmente na religiosidade doméstica. Mas, se até recentemente as mulheres mais novas recebiam a informação e a assimilavam sem a questionar, surge actualmente um conjunto de mulheres que pretendem ir mais além da repetição dos actos rituais e das fórmulas sagradas, questionando e procurando respostas que as mulheres mais velhas não conseguem dar.

Algumas jovens lamentam o facto de muitas mulheres não terem uma perspectiva crítica da sua religião. Sem a questionarem, dizem, não podem aprofundar os seus conhecimentos sobre a religião que praticam. Não só as mais velhas, mas também muitas mulheres jovens desconhecem as razões por que praticam determinados actos rituais e o significado das fórmulas sagradas que recitam. Efectivamente, o cumprimento do dever feminino implica que certas tarefas religiosas sejam realizadas, apesar de muitas vezes não se compreender porquê, apenas porque as mães e sogras recomendaram que o fizessem, como as mulheres antes delas o haviam também feito. Contudo, nem todas as mulheres aceitam este automatismo e entre as jovens que prosseguiram estudos em Portugal, ou mesmo na Índia, aumenta a procura da compreensão dos fundamentos da sua religião. Além disso, esta postura acentua o fosso já existente entre as mulheres que tiveram a oportunidade de prosseguir os seus estudos e construir uma carreira profissional e aquelas que permaneceram fechadas no seu núcleo familiar, privadas do contacto mais directo com a sociedade envolvente.

As primeiras constituem uma espécie de elite que segrega as segundas do seu grupo de contactos, e que as acusam de serem demasiado ocidentalizadas, pelo vestuário que adoptam e pela sua participação excessiva fora da comunidade, decorrente da entrada no mundo do trabalho e do convívio fora da comunidade. Como referi anteriormente, muitas mulheres, mesmo as mais jovens, não trabalham ou, quando o fazem, estão enquadradas num sistema de comércio familiar, o que diminui a sua autonomia e mantém o controlo sobre as suas actividades. Trabalhar fora do âmbito familiar e prosseguir os estudos para além do ensino básico são dois símbolos da autonomia e modernidade, exaltados por umas e criticados – e, em muitos casos, simultaneamente desejados – por outras.

A crítica é contudo, uma forma de justificação da impossibilidade de aceder a esta situação, numa lógica de invejas que é recorrente nos relacionamentos femininos.

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As mulheres trabalhadoras referem frequentemente o facto de serem controladas por aquelas que não trabalham e que cruzam quotidianamente o espaço envolvente, controlo este que pode resultar em querelas familiares. Uma mulher de 30 anos revelou-me uma vez: «Se eu for a algum lado depois do meu trabalho, antes de chegar a casa a minha sogra já sabe», acrescentando que muitas mulheres, impossibilitadas de ter uma vida semelhante à sua, invejam-na, exercendo sobre si uma grande pressão. Contudo, apesar das pressões exteriores, a entrada no mundo do trabalho oferece às mulheres a oportunidade de desenvolver esferas de poder e de renegociar o seu estatuto no interior da família.

Investindo no aprofundamento da sua tradição religiosa e integrando grupos de jovens hindus, as mulheres sentem-se mais esclarecidas em temas do hinduísmo que desconheciam, considerando este conhecimento a base da construção da sua identidade e da educação dos seus filhos. A crítica estende-se também sobre as famílias que consideram negligenciar a educação dos jovens e dar-lhes apenas uma educação ocidental. Uma mulher de 35 anos disse-me: «tradição [hindu] e Ocidente é uma combinação rara. Mas é esse equilíbrio que procuramos para a nossa família» e a propósito das mulheres que integram as famílias que considera desprezarem a importância da referência religiosa na educação das crianças: «elas esquecem a sua

indianness. Elas não são indianas. Vão ao templo e fazem o puja mas chegam a casa e

esquecem tudo».

Tal como esta mulher, outras da mesma idade se unem na tarefa de ensinar, na escola de gujarati, os jovens da comunidade. Mais uma vez, face à necessidade da perpetuação cultural do grupo, as mulheres assumem funções de transmissoras do que consideram ser os pontos fundamentais da identidade hindu. Importa perceber até que ponto estas mulheres se sentem controladoras das suas acções e daquilo que consideram ser os seus deveres, para além do tradicional stridharma. Na verdade, muitas delas sentem as suas vidas controladas porque, apesar de ganharem autonomia, a vigilância do grupo exerce-se sobre elas. Ainda assim, assumem o controlo da transmissão cultural, assente numa base religiosa por elas manipulada, originando a reconfiguração do hinduísmo, processo este que inclui a continuidade entre os valores tradicionais e a inclusão de novos elementos, como é o caso dos seus próprios estatutos.

A diferenciação entre mulheres jovens e idosas é visível nas actividades e nos espaços distintos a que estão associadas. As mulheres mais velhas ocupam o espaço do

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espaços de lazer são distintos: é habitual a escola de gujarati promover festas relacionadas com as celebrações do calendário hindu e também do calendário português, no último caso com a organização de lanches e jantares de Natal de Páscoa ou de Carnaval. Estes momentos de lazer das crianças e das professoras (em que participam também os maridos e os filhos) não contam com a participação das mulheres mais velhas, que consideram importante que as suas familiares mais jovens convivam entre si sem a sua presença controladora: «É só para a juventude. Se nós formos elas não se podem divertir à vontade», referem as mulheres mais velhas. As actividades femininas de lazer estão associadas ao factor da idade. Como já referi, estas relacionam-se com as práticas corporais das mulheres, encontrando-se as jovens sujeitas ao controlo das suas expressões e, as mais velhas, libertas destes condicionamentos comportamentais, fruto da transformação da sua identidade de género e da sua actuação em espaço público. Este é um período de libertação do controlo masculino sobre a actividade da mulher que transcende o universo doméstico para passar para o espaço exterior, originando a transformação do seu papel de género.

Entre o período em que inicia o seu ciclo reprodutor até ao momento em que termina o seu poder procriador, a mulher encontra-se submetida a regras comportamentais restritas que controlam a sua sexualidade. Liberta dos constrangimentos associados à sua fase reprodutora, inicia um novo período da sua vida em que o controlo da sua sexualidade deixou de ser uma preocupação e, por isso, se assiste a uma transformação da sua identidade de género e dos seus comportamentos em espaço público e privado.

O modo como o envelhecimento afecta as definições de género poderá prender- se com as experiências por que o corpo passa ao longo de uma vida. Segundo Lamb, explorar questões de género implica necessariamente compreender o modo como as mulheres interpretam, resistem e criticam as ideologias de género dominantes nas suas sociedades e, simultaneamente, analisar o modo como é concebida a transformação dos seus corpos, identidades e formas de poder e subordinação durante a sua vida (Lamb, 2000: 198).

Observar as relações de género a partir das experiências das mulheres e dos seus papéis, correspondentes às diferentes fases da vida, permite concluir, de acordo com a proposta de Perez (1994), que a segregação feminina serve para ocultar e controlar o seu poder. O poder de assegurar a continuidade do grupo – que reside, segundo a autora, na capacidade exclusivamente feminina de garantir a sobrevivência social – assume novas

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formas em diáspora. Neste contexto não se trata apenas de uma tarefa reprodutiva mas, para além dessa, as mulheres criaram também o objectivo de garantir a continuidade das referências culturais do grupo através da sua descendência.

A perspectiva do afastamento dos elementos mais novos da comunidade face às referências tradicionais coloca nas mãos das suas mães e avós novamente a tarefa de garantir a continuidade do grupo: não só física, como cultural e religiosa222. A preocupação com a sua descendência e com a perpetuação dos valores tradicionais do hinduísmo são o motor das suas acções, sem as quais a sobrevivência social desta comunidade não seria possível: eis o poder feminino.

A situação de diáspora permite diminuir o controlo da visibilidade deste poder. Ele tornou-se público, para além de privado, e vem comprovar a centralidade das mulheres nas dinâmicas de perpetuação e reformatação do hinduísmo. Os termos perpetuação e reformatação indicam a confluência entre a manutenção de ideologias conservadoras – nas quais se incluem as identidades de género – e a transformação dos papéis femininos na esfera pública. Neste sentido, a aquisição de autonomia por parte das mulheres surge num contexto em que elas próprias corroboram os discursos conservadores sobre o feminino.