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Textos religiosos: Ramayana, Bhagavad Gita e Puranas

Capítulo

6.4. Textos religiosos: Ramayana, Bhagavad Gita e Puranas

Ao longo deste trabalho em geral, e deste capítulo em particular, tendo referido os textos principais adoptados pelos hindus de Santo António dos Cavaleiros, e por meio dos quais as mulheres desta comunidade reconfiguram os seus papéis e estatutos sociais, chegou a altura de os elencar.

O conjunto de textos religiosos lidos entre a comunidade hindu estabelecida em Portugal é muito vasto, desde os pequenos textos como os vrata katha, até às grandes epopeias épicas do Hinduísmo. São lidos individualmente ou em grupo, pelos devotos ou pelo sacerdote, em casa ou no templo, e todos se encontram escritos em gujarati.

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O Ramayana é uma epopeia escrita em sânscrito pelo poeta Valmiki, constituindo uma das mais importantes epopeias hindus. Ramayana significa «a viagem de Rama» e relata a história do príncipe de Ayodhya, cuja mulher, Sita, é raptada pelo demónio, Ravana, rei de Lanka e narra a saga do seu salvamento pelo marido. À semelhança do outra grande epopeia do hinduísmo, o Mahabharata, a narrativa central do Ramayana é também uma alegoria dos ensinamentos dos antigos pensadores hindus e um empreendimento de difusão da sua ideologia filosófica e devocional.

Este texto releva as qualidades de Rama, o protótipo do homem ideal, entre as quais a justiça, o cumprimento dos valores e princípios morais, a sabedoria, a verdade e a coragem. Rama demonstra, através das suas acções, como é essencial que cada indivíduo cumpra o seu dharma224. O Ramayana apela também à reflexão sobre as consequências de fazer promessas, exemplificadas pelas acções do deus Brahma e do rei Dasharata que, consequentemente, podem ameaçar a sobrevivência dos homens e do universo.

Do mesmo modo que Rama, Sita, é o modelo da mulher virtuosa, capaz de se sacrificar pelos ideais da pureza e da castidade, pela sua devoção ao marido. Igualmente cumpridora do seu dharma, Sita aceita as adversidades da vida sem ressentimento. Segue o seu marido para o exílio, acompanhando o seu caminho tortuoso, sofrendo o rapto e o cativeiro nas mãos do demónio Ravana. Sujeita-se aos juízos de Rama sobre a perda da sua pureza e aceita imolar-se pelo fogo como prova de fidelidade e devoção ao marido.

Esta narrativa é considerada, pelas mulheres que a lêem e que reflectem sobre a sua mensagem, um incentivo para a vida, uma lição sobre como «retirar sempre o aspecto positivo das coisas [que acontecem] na vida» porque o bem e a moral estão acima de tudo, refere uma jovem hindu de 28 anos. Rama é visto como o verdadeiro cumpridor dos valores do respeito e da coragem, expressos no modo como aceita as dificuldades. Sita representa a esposa ideal que coloca o marido em primeiro lugar. Mas ela é, para além disso, uma mulher íntegra, defendendo a sua imagem através de um poder exclusivo, que a mesma jovem refere como o «poder da mulher».

O Ramayana explora, de acordo com as interpretações destas mulheres, o poder da mulher, junto do seu família, personificado pela princesa que consegue influenciar o

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A obediência e coragem perante as dificuldades do seguimento do dharma são o cunho da sua personalidade, o que faz dele um homem honesto e exemplar, contudo com defeitos que emanam da sua condição humana, mas cuja resposta para os seus constantes dilemas se encontra no cumprimento das suas responsabilidades. Seguindo o seu dharma, ele é capaz de assegurar o bem-estar do mundo.

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Rei a mandar exilar o seu filho, e a capacidade e força de carácter, de Sita que, para além ser fiel ao marido, o é também às suas convicções. O tema do poder de persuasão junto do marido é particularmente enfatizado por estas mulheres por encontrar correspondência na sua própria experiência. A rectidão da conduta de uma mulher, por um lado, e o poder de persuasão, por outro, são capacidades exclusivas que lhes atribuem um poder capaz de influenciar o destino da sua família: «é a mulher que endireita a sua família. Apesar de ser o marido muitas vezes a ganhar o dinheiro, se ele tiver uma mulher torta em casa a família vai para um mau caminho. Se uma mulher fizer as coisas como deve ser, a saber cuidar da casa, educar os filhos, dar-lhes uma boa moral, tudo anda para a frente. É o que acontece: quando as pessoas de fora conseguem ter mais força do que nós em casa, do que os nossos princípios tudo muda», relata uma jovem pertencente à casta Lohana.

O Bhagavad Gita, ou «O Cântico Divino», é um texto que integra a epopeia Mahabharata, composta pelo sábio Vyasa e que relata o diálogo de Krishna com Arjuna no campo de batalha. O conteúdo do texto é um diálogo entre Krishna e Arjuna no momento que antecede a batalha de Kurukshetra. Respondendo às dúvidas e dilemas espirituais de Arjuna, Krishna transmite quais os seus enquanto guerreiro e príncipe ensinando-lhe também a filosofia vedanta225 através de exemplos e analogias, o que tornou o Bhagavad Gita, comummente denominado de Gita, um guia da filosofia hindu e também uma inspiração prática para a vida. Durante o este diálogo, Krishna revela a sua identidade como o próprio ser Supremo, concedendo a Arjuna a visão da sua forma divina absoluta. Arjuna representa o papel de uma alma confusa sobre seu dever, e recebe iluminação directamente de Krishna, que lhe ensina a ciência da auto-realização. Ao longo deste diálogo, Krishna descreve os pontos importantes da filosofia hindu fundada nos textos védicos e na bhakti.

Este texto concentra, no fundo, os princípios básicos do hinduísmo, resumindo uma interlocutora de 59 anos, da seguinte forma, a mensagem principal do texto: «[este livro] mostra que tudo o que fazemos tem uma consequência, tudo o que fazemos junta- se ao nosso karma. A acumulação de tudo o que nós fazemos vai gerar alguma coisa». Este é um texto que se estende para além da vida, visto conter ensinamentos através dos quais um devoto deverá planear também a morte, dada a importância do karma e do

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Tradição filosófica inspirada nos Upanishads que tem como objectivo transcender a auto-identificação para alcançar a unidade com Brahma, a Realidade Absoluta.

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dharma no ciclo da vida, transmitindo ainda o valor do poder divino, ao qual qualquer

indivíduo tem acesso, colocando a bhakti, todos os devotos numa situação de igualdade.

Os Purana são um género de literatura hindu que compreende o conjunto de narrativas ou genealogias das grandes divindades. Os hindus lêem ocasionalmente, ou associados aos dias festivos do calendário, diversos Puranas, de entre os quais se destacam o Shiva Purana, o Bhagavata Purana, o Markandeya Purana, ou o Devi Bhagavatam. Este corpo de textos, extraídos dos Mahapuranas e Upapuranas, consiste no relato mitológico da vida das divindades, dos nascimentos, dos casamentos e dos seus actos heróicos através dos quais salvaram o mundo. A leitura de determinado texto religioso encontra-se associada à preferência de cada devoto, dada a afinidade que este desenvolve com certa corrente religiosa, culto ou divindade. Por esta razão, torna-se difícil seleccionar os textos predominantes, sendo estes muito varáveis de devoto para devoto. Contudo, destacarei os quatro Puranas cuja informação etnográfica tornou mais relevantes.

O Shiva Purana relata o aparecimento de Shiva, sob a forma de linga, como a terceira entidade que completa a trimurti226, a destruição e criação do mundo, o seu casamento com Parvati, o nascimento do filho Ganesh, entre outros relatos, como a história de Yama, o deus da morte, incluindo ainda e o shivratara vrata, lido no Mahashivratari. Este Purana é composto por sete cantos e 24000 shlokas227 e é lido pelos devotos ao longo do ano, ou em ocasiões festivas associadas ao culto de Shiva. O seu conteúdo assinala a centralidade do culto de Shiva, reflectindo na importância da devoção, e assinalando os seus locais de peregrinação, os mantras e pujas dedicados a esta divindade, bem como os elementos imprescindíveis ao seu culto.

O Bhagavata Purana, ou Srimad Bhagavatam, centra-se na importância da

bhakti, transmitida por Krishna no Bhagavad Gita, sendo a devoção profunda dirigida

ao «Senhor Supremo», geralmente representado por Vishnu ou Krishna. Este livro é a narrativa do diálogo entre o rei Parikshit, o bisneto de Arjuna, da dinastia Pandava, e o sábio Sukadeva Goswami, compilado pelo sábio Vyasa, descrevendo as histórias dos vários avatar228 de Vishnu. Para além disso, o Srimad Bhagavatam descreve vida de

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Representação das três principais divindades do hinduísmo: Brahma, Vishnu e Shiva. 227

Oração em verso composta por uma métrica específica. 228

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Krishna entre os pastores em Vrindavan, os episódios mais populares da sua infância como o roubo de manteiga, as brincadeiras entre os guardadores de vacas ou os seus árduos combates contra os demónios que ameaçavam a aldeia. Na juventude, ele atrai o coração das jovens pastoras, as gopi, multiplicando-se para poder dar a atenção devida a cada uma delas para que estas, possam amá-lo fervorosamente e sentir uma devoção de tal modo profunda que só desejem servi-lo, sendo esta dedicação o modelo da devoção profunda (bhakti) entre o devoto e Krishna. Este livro condensa as histórias dos outros Puranas clássicos, bem como os ensinamentos védicos contidos noutras literaturas.

No que respeita ao Markandeya Purana, uma parte é seleccionada pelos hindus de Santo António dos Cavaleiros, o Chandi Path, ou Durga Saptashati, um texto que enaltece as qualidades da Deusa, chamada Durga ou Devi, nas suas diversas manifestações. A referência à Deusa é recorrente ao longo do Purana, mas é particularmente nestes versos que são descritas as suas batalhas contra os demónios, recorrendo em pormenor aos poderes dos seus adversários e às suas vitórias consecutivas, com recurso a armas divinas. O texto indica ainda os benefícios que receberão os devotos da Deusa através da sua devoção, indicando os dias mais auspiciosos para o seu culto e para a leitura deste texto, como é o caso do Navratri.

Este texto é lido particularmente mulheres, que escolhem as alturas mais propícias do calendário religioso, iniciando a leitura num dia auspicioso, continuando a sua recitação ao longo de vários dias, ao mesmo tempo que realizam jejuns e ofertas à Deusa. Estas oferendas são designadas nived e consistem em colocar sete pequenos

roti229 sobre os quais se colocam sete pequenos montes de khir230 em frente à murti de qualquer das representações da Deusa, que podem ser Amba, Chamunda ou Lakshmi, entre outras.

Finalmente, o Devi Bhagavatam, ou Devi Purana, é um dos Upapurana e os seus cantos e versos são também dedicados à Deusa e às suas várias manifestações. O poder da shakti231 é enfatizado ao longo do texto, que apresenta várias narrativas do contacto entre a Deusa e os deuses, dos seus combates contra os demónios e vitórias que

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Pão achatado, de forma redonda, cozinhado sem fermento. 230

Arroz cozido com açúcar e leite.

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restauram a ordem do mundo, sendo também este livro, que contem o navratri vrata

khata, lido, sobretudo, durante a celebração do Navratri do mês de Aso.

O conjunto de textos que circulam entre as casas hindus é muito vasto. Existem mulheres que lêm o Okharan quando estão doentes, outras o Ganesh Pratna para iniciarem os seu culto diário. O Chandi Path é escolhido por mulheres que querem propiciar a sua kul devi232 e vários votos são realizados através da leitura de diferentes

vrata kathas. A leitura dos livros do hinduísmo está também intimamente ligada à vida

religiosa feminina.