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O espaço da etnografia e do quotidiano

Capítulo

3.1. O espaço da etnografia e do quotidiano

Apesar de os hindus se encontrarem dispersos desde a base da encosta até ao topo das Torres da Bela Vista, devido às diferentes fases do seu estabelecimento e ao desenvolvimento da construção habitacional, é na zona da Cidade Nova que a maior parte da população hindu se concentra e foi esta zona, por isso, o espaço de recolha etnográfica privilegiado. Para além da dispersão da população referida atrás, o templo de Shiva – o Templo hindu que congrega esta população – encontra-se a cerca de 1,5 km de distância deste aglomerado populacional, o que, entre outros factores, diminui a frequência da participação dos hindus na sua vida religiosa comunitária63.

Inicialmente as minhas deslocações a pé pela freguesia permitiram-me observar, a par desta concentração residencial de hindus, a concentração, no mesmo espaço, das actividades religiosas quotidianas. Do mesmo modo, a minha presença no terreno permitiu comprovar a centralidade do espaço doméstico no desempenho da actividade religiosa e, consequentemente, da reprodução social e cultural do grupo, tendo-se esta mantido activa mesmo após a construção do Templo de Shiva.

A Cidade Nova, zona privilegiada da minha pesquisa etnográfica, caracteriza-se por uma típica paisagem de cidade dormitório, com prédios altos de muitos andares, com muitos inquilinos (prédios estes que contrastam com os mais antigos, construídos na base da encosta, mais baixos e de menor volumetria), com pequenas zonas verdes, complementadas com um espaço verde maior, que circunda o complexo desportivo e que separa a Cidade Nova das Torres da Bela Vista. É neste espaço que se encontram o centro comercial, várias lojas, entre as quais minimercados e mercearias. Para além disso, na Cidade Nova situam-se as escolas EB1/Jardim de Infância de Santo António dos Cavaleiros e EB23 General Humberto Delgado, a esquadra da polícia, a Junta de Freguesia, um pequeno parque infantil e, do lado oposto a este, atravessando o Centro Comercial Cidade Nova, um pequeno espaço de lazer com algumas sombras de árvores sobre os bancos de jardim.

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Para além da distância, a prevalência da prática religiosa em espaço doméstico, contribui para a pouca afluência diária ao templo.

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A zona do Centro Comercial Cidade Nova, bem como o espaço envolvente, é o centro das actividades quotidianas dos hindus que permanecem diariamente em Santo António dos Cavaleiros. Os homens encontram-se aqui em número reduzido, comparativamente às mulheres, que cruzam este espaço quotidianamente. Para além dos reformados, os homens que utilizam este espaço são aqueles trabalham, quer em estabelecimentos comerciais, quer em mercados itinerantes, situando-se nesta zona os seus armazéns e concentrando-se aí os seus veículos de transporte de mercadorias. Enquanto os trabalhadores apenas cruzam este espaço entre os seus locais de trabalho e as suas casas, os homens mais velhos ocupam parte dos seus dias entre as lojas indianas e os bancos de jardim da zona envolvente do Centro. É habitual vê-los em pequenos grupos a meio da manhã e a meio da tarde, confraternizando.

As mulheres são mais activas no cruzamento deste espaço. Iniciam-no pela manhã, acompanhando os seus filhos ou netos à escola ou ao jardim-de-infância. A meio da manhã e até à hora de almoço, ocupam as várias lojas indianas da Cidade Nova para comprar alimentos ou outros produtos indianos, ou, a maior parte das vezes, para conversar. Antes da hora de almoço regressam a casa e voltam a sair depois das 15 horas dirigindo-se novamente para a zona do Centro para passear, fazer compras ou levar os mais novos ao parque infantil64. Visitam também as casas umas das outras, encontrando-se frequentemente para reuniões devocionais que organizam. Ao final da tarde regressam a casa, muitas vezes acompanhadas das crianças que saem da escola.

Os saris caracterizam a paisagem da Cidade Nova, exprimindo visualmente a presença de uma comunidade indiana – a um olhar mais próximo, hindu – em Santo António dos Cavaleiros através das suas mulheres. Os mais novos circulam também diariamente por este espaço, dada a localização das duas escolas na Cidade Nova, bem como do jardim-de-infância e do pequeno parque infantil.

Assim, o espaço de etnografia e o espaço do quotidiano da comunidade são comuns na minha pesquisa, na tentativa de acompanhar as mulheres, as protagonistas da ocupação diária deste espaço, do exterior para o interior, do geral para o particular, do periférico para o central. Neste sentido, espaço exterior (rua), lojas, templo e casas foram os locais de abordagem e de troca de conversas, sendo o espaço doméstico o centro privilegiado de recolha de informação mais substantiva.

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Registou-se, nos últimos anos, um aumento da afluência de mulheres sikh ao parque infantil, acompanhando as suas crianças, a meio da tarde.

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A observação do exterior permite apreender as dinâmicas da mobilidade feminina e as suas redes de sociabilidade. Este facto revela a importância dos elementos externos femininos (vestuário e ornamentos), a par das características físicas (o tom de pele, o tipo de cabelo). Para além das actividades diárias, as expressões religiosas e culturais públicas que se desenrolam no espaço exterior contribuem para a construção de estereótipos que consolidam uma imagem (muitas vezes reificada) dos hindus. Este é também um meio de expressão e construção de identidades, com recurso a determinados elementos que influenciam modas locais e globais e que condicionam os modos de pensar a sociedade, através de inclusões e exclusões recíprocas em que o corpo feminino é central.

As lojas de proprietários e empregados hindus, localizadas no Centro Comercial Cidade Nova, ou mais dispersas pela freguesia, são centros de troca de informação da comunidade, contribuindo as mulheres de forma activa para esta rede, que coloca em contacto os membros do grupo, fazendo circular notícias de acontecimentos ocorridos não só em Portugal, mas também na Índia, em Moçambique, no Reino Unido ou noutros países onde têm os seus contactos transnacionais. Nestes espaços, organizam-se também actividades futuras, publicitando acontecimentos, reunindo donativos (em dinheiro ou em géneros) e convocando pessoas para o seu desempenho.

A finalidade central destes estabelecimentos comerciais merece uma atenção particular. Uma das vantagens da realização de um trabalho de campo prolongado é a de observar as alterações que ocorrem num mesmo espaço ao longo do tempo. Nos últimos anos assistiu-se a um aumento de lojas especializadas em produtos indianos. Se anteriormente a prioridade era fornecer produtos alimentares à comunidade, diferentes daqueles que se encontravam disponíveis nas outras lojas, com o passar do tempo, outro tipo de produtos (que apenas circulavam a partir da Índia através das pessoas que recorrentemente aí se deslocavam, ou que se encontram à venda apenas em locais específicos, como as lojas do Martim Moniz) surgem cada vez mais ao dispor dos clientes indianos e da população em geral. É o caso dos utensílios de cozinha, elementos decorativos domésticos e do vestuário, juntamente com outros acessórios que, anteriormente, eram restritos à venda particular em espaço doméstico65.

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Artigos religiosos como incenso, pó (gulal e abil), chundri, livros ou mesmo imagens de divindades (murti); roupa e outros acessórios: saris, salwar kameez, conjuntos de bijutaria, embalagens de henna, forros para saris e tecido para blusas; produtos alimentares indianos, desde especiarias ao peixe seco vindo de Diu; panelas e utensílios de aço inoxidável. Estes são apenas exemplos do conjunto de artigos que são vendidos nas lojas de produtos tradicionais indianos e aos quais se pode também aceder através

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Este fenómeno não só aumenta a diversidade de produtos disponíveis para os hindus aí residentes, como desenvolve, junto da restante população, o interesse por artigos que constituem actualmente uma moda cosmopolita66. A maioria das lojas, no entanto, não se dedica à venda de produtos tradicionais indianos: existem também ourivesarias, relojoarias, papelarias, drogarias, minimercados e lojas de electrodomésticos.

O Templo de Shiva, apesar da sua actividade diária67, apenas congrega grande parte dos membros da comunidade em momentos festivos do calendário hindu. A esfera doméstica sobrepõe-se à importância do templo enquanto espaço de actividade religiosa regular. Para além disso, a sua distância relativamente à Cidade Nova, onde se concentra a maior parte dos hindus, diminui, como vimos, a frequência das visitas por parte dos seus devotos, que continuam a eleger a casa como espaço preferencial do desempenho de actividades devocionais e rituais familiares. O Templo de Shiva é, ainda assim, o símbolo mais visível da identidade do grupo, representando a presença de um conjunto de práticas e crenças religiosas hindus naquela freguesia.

A associação de Solidariedade Social Templo de Shiva, a entidade que assume a direcção do templo, foi criada em 1984, em Santo António dos Cavaleiros, com a finalidade de congregar a população hindu da freguesia e promover o desenvolvimento de actividades religiosas e sociais. A comunidade hindu aí residente crescia substancialmente, tornando-se urgente a aquisição de um espaço próprio que permitisse a sua congregação e sociabilização. Em 1991, a associação legalizou-se e deu-se início ao projecto que se prolongou pelos dez anos seguintes, a construção de um templo hindu na freguesia, numa parcela de terreno cedida pela Câmara Municipal de Loures, nas Torres da Bela Vista. Apesar da inexistência de um espaço de culto próprio, a comunidade reunia-se em espaços alugados, como a Associação de Moradores de Santo António dos Cavaleiros ou a Escola Secundária Humberto Delgado. Em 2001 iniciou-se o processo de construção de um edifício provisório, antecedido da bênção do terreno (bhumipujan) pelo Swami Satyamitranand, na expectativa de construção futura de um

de vendas informais, sendo os géneros vendidos, muitas vezes transportados por pessoas que viajaram recentemente até à Índia.

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Grande parte dos produtos que são procurados pela população local corresponde àqueles que, a um nível mais abrangente, se incluem no circuito mais urbano e cosmopolita, como é o caso do vestuário, da música ou da gastronomia.

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As portas do templo são abertas e fechadas diariamente, de manhã e à noite, pelo seu responsável, pertencente à casta brâmane. O templo encontra-se aberto durante o dia para a visita dos devotos, sendo o seu puja (culto ritual prestado à divindade) regular realizado às segundas-feiras, dia dedicado a Shiva, a divindade central do templo, habitualmente sem a presença de um ritualista.

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templo com características arquitectónicas tradicionais dos templos norte indianos (vide Anexos: 221, fotografias 1 e 2).

Como já foi referido, o templo é aberto todos os dias e o calendário religioso quotidiano inclui o puja de segunda-feira e acolhe, nos dias das grandes festividades, o conjunto dos hindus aí residentes e outros que se deslocam das outras comunidades da Área Metropolitana de Lisboa. Para além disso, casamentos e grandes cerimónias religiosas, bem como programas culturais, são promovidos pela direcção do templo. Este é também o espaço de reunião de grupos que desenvolvem actividades religiosas e culturais: o grupo dos jovens, a escola de gujarati e inglês, os ensaios de danças, o núcleo feminino e a própria direcção do templo.

Para além da sua função religiosa e de referência identitária, o templo é o centro de acções que contribuem para a dinamização do grupo e para a reprodução da sua identidade, que se desdobra nas vertentes do ensino, da dança, tendo sempre uma base religiosa. Neste processo, a contribuição das mulheres é indispensável. Para além da observação das actividades públicas do templo, importa também aceder às suas funções mais privadas, nomeadamente à organização de actividades e à sua concretização, que incluem o ensino de línguas e de princípios básicos do hinduísmo, o ensaio de músicas e danças ou a preparação dos palcos destinados à realização de casamentos ou à decoração do espaço para festividades ou visitas de líderes religiosos.

A existência de um templo introduziu novas formas de organização da comunidade, facilitando a formalização de grupos e de actividades. Ela contribui igualmente para a consolidação de uma identidade de diáspora que se encontra, de momento, em desenvolvimento68. Assim, deverão ser tidas em conta, na análise do espaço do quotidiano, não só o desempenho ritual regular do templo, mas também as actividades paralelas que ocorrem no seu interior.

Apesar do peso do templo como focus da identidade religiosa dos hindus que o frequentam (Knott, 1987: 161), o espaço doméstico foi privilegiado por esta investigação. O quotidiano das mulheres desenrola-se de casa em casa, visitando-se

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Ao contrário de outros contextos onde as comunidades hindus se estabeleceram há mais tempo e onde desenvolveram estratégias sociais, económicas e culturais sólidas, o caso português demonstra que apenas nos últimos anos se iniciou um investimento na construção de uma consciência de diáspora abrangendo a totalidade dos hindus residentes em Portugal. As visitas de sacerdotes e especialistas espirituais provenientes da Índia e de outros centros de diáspora hindu são exemplo das estratégias de consolidação de sentimentos de partilha de uma consciência comum, dificultadas pela estigmatização de determinadas castas (concentradas em bairros específicos) por oposição a uma elite que se encontra na linha da frente destas dinâmicas.

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entre si com regularidade, sendo os satsang69 os momentos de maior expressão deste convívio. Existem vários tipos de reuniões devocionais: as que acontecem regularmente, de acordo com as datas religiosas do calendário hindu, e as que são promovidas por determinados movimentos religiosos. Entre a comunidade em estudo existem, para além do denominado "grupo do satsang”, o satsang de Sai Baba e o satsang de Pustimarg. O primeiro reúne-se em dias auspiciosos do calendário hindu, como é o caso dos agiyaras ou ekadashi70, ou dias dedicados ao culto de determinadas divindades71. Reúnem-se ainda em momentos rituais domésticos e associados a rituais de passagem, particularmente de morte, de indivíduos da comunidade. Os segundos reúnem-se em dias dedicados ao seu líder espiritual e divindade de culto, com é o caso das quintas- feiras, no culto de Sai Baba, dias em que as devotas organizam nas suas casas, esporadicamente ou sequencialmente72, encontros devocionais.

Outro momento de encontro e convívio exclusivamente feminino é aquele que designam de goyani. Este é o nome atribuído às mulheres que, em determinados dias, representam as deusas na terra. Estes encontros, que acontecem em espaço doméstico, caracterizam-se pela realização de ofertas (particularmente de alimentos) às goyani e têm uma participação exclusiva de mulheres solteiras e casadas73. O espaço doméstico é, como pudemos ver, predominantemente feminino. Ele é também o centro da actividade religiosa que, apesar da existência de um templo comunitário, permanece centrada na casa, onde se encontra o templo doméstico, as divindades e onde decorre o culto diário, bem como os rituais de passagem e outros ritos de família. Ele é, para além disso, o espaço de práticas religiosas e devocionais femininas regulares, como os jejuns, e os votos74.

Regressando à paisagem diária da freguesia em análise, o trajecto entre o templo e a Cidade Nova é marcado também pela presença de algumas mulheres indianas que aí

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Reuniões devocionais, quase sempre exclusivamente femininas. Excepcionalmente, nos casos em que o

satsang tem propósitos mais abrangentes, como a celebração de datas importantes do calendário religioso,

estes podem contar com a presença de alguns homens. 70

Os décimos primeiros dias de cada mês. 71

Altura em que se celebra geralmente o seu nascimento ou casamento. 72

O facto de organizarem estes encontros devocionais esporádica ou sequencialmente prende-se com o carácter de alguns destes encontros. No caso do satsang de Sai Baba, por exemplo, existem reuniões devocionais que se repetem ao longo de várias semanas sempre às quintas-feiras. Noutros casos, os

satsang não precisam necessariamente de ser realizados em dias específicos, ou então, podem recair sobre

datas festivas do calendário hindu. 73

As viúvas, dada a sua inauspiciosidade e sua não-associação às deusas, férteis e auspiciosas, não são incluídas.

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Este tipo de votos – vrata – é frequentemente realizado pelas mulheres com a finalidade de obterem uma graça divina e é particularmente direccionado para a protecção da sua família.

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se deslocam nos seus passeios de fim de tarde. O espaço do quotidiano, da rua à casa, é eminentemente ocupado pelas mulheres, encontrando-se a maior parte dos homens a trabalhar fora da freguesia. Estes regressam apenas à noite, deixando as mulheres livres para se dedicarem às suas tarefas domésticas e ao convívio com as outras mulheres durante o dia. Estas actividades quotidianas excluem, como vimos, o contacto prolongado com os homens, à excepção de encontros casuais na rua, nas lojas ou no templo, conferindo uma quase exclusividade de género às relações femininas. Neste sentido, a etnografia do quotidiano foi também uma etnografia do e no feminino.