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Processos de referenciação: a casta

Capítulo

3.3. Processos de referenciação: a casta

A presença de treze castas correspondentes a diferentes categorias da hierarquia social indiana torna este universo uma realidade complexa do ponto de vista social e cultural. Analisarei, no capítulo seguinte, cada um destes grupos de modo mais pormenorizado, bem como a interacção que estabelecem entre si. Deter-me-ei, de momento, apenas na relevância da categoria de casta para a representação que cada grupo tem de si próprio e dos outros.

Foi afirmado por vários autores que a diáspora impossibilita o transplante do sistema de castas sem que tal, no entanto, inviabilize a permanência destas e a sua revitalização (cf. Ktott, 1986, Vertovec, 2000). Relativamente ao caso em estudo, é possível afirmar que a pertença a uma determinada casta é essencial na forma de identificação de cada indivíduo e da sua relação com os outros grupos. Para além disso, a identidade de casta é revitalizada através dos casamentos endogâmicos e da manutenção de ligações com a origem, bem como da criação de associações de casta. Assim, as diferentes castas, embora transportadas para um novo contexto social, formam um novo sistema, no sentido em que são unidades relacionais e, em sociedade, funcionam como tal.

A atenção dada pelos académicos ao conceito de casta baseou-se, em grande parte, numa noção de sistema hierárquico inflexível, determinado pelo estatuto social, com base numa lógica de poluição ritual, omitindo a flexibilidade deste sistema no interior do qual os papéis rituais são temporariamente transformados, comprovando a sua reversibilidade (vide argumento central de Perez, 1994). Em diáspora torna-se claramente impossível a reprodução dos sistemas hierárquicos locais originais, pela diversidade de indivíduos que se concentram no mesmo espaço – com backgrounds específicos – e pelo facto de não se encontrarem presentes todas as castas que integravam o sistema original. No entanto, é a flexibilidade deste sistema hierárquico que permite a realização de adaptações à realidade local, originando processos de mobilidade social e de criação de novas redes de interacção entre grupos que não estabelecem, na origem, o tipo de contacto que desenvolvem na diáspora. A concorrência estatutária entre castas e a criação de processos de ascensão social permitem também evidenciar a vitalidade das identidades de casta e a adaptação de um sistema que, apesar de permanecer, exibe a sua flexibilidade. A diáspora permite a diluição da “memória” social de origem e, deste modo, conduz à estruturação de novas

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pertenças sociológicas – que o grupo poderá ou não sancionar – independentemente de, nas deslocações ou retornos ao universo de origem, os indivíduos serem remetidos à pertença social das suas famílias.

O tema da casta tornou-se, nos últimos anos, um tópico de discussão intensa entre os elementos mais jovens da comunidade. A oposição à realização de um censo populacional por referência a castas, a luta contra a discriminação de casta (que assume particular destaque no crescente número de casamentos entre castas diferentes) faz parte da agenda de trabalho destes jovens. Estas ideias, contudo, não encontram consonância entre a primeira geração, que considera a identidade de casta fundamental para o que Kim Knott refere como: «[…] a means by which Hindus are able to understand their own social position, to know how to interact with acquaintances and neighbours, and to practise their social obligations» (Knott, 1986: 40).

Apesar desta diferenciação social, a pertença ao espaço de origem implica a partilha de uma identidade gujarati que se sobrepõe às divergências internas do grupo, funcionando como um forte elemento de unidade. O processo de construção de uma identidade gujarati iniciou-se desde Moçambique e as dinâmicas de diferenciação face aos gujaratis não-hindus (muçulmanos) baseou-se nos referentes hindus. Aliada à noção de hinduísmo encontra-se a ideia de pátria original à qual esta religião se encontra vinculada. Recorrendo a elementos religiosos como fonte identitária, os indivíduos elegem a Índia como origem e espaço sagrado do hinduísmo80.

3.3.1. Delimitação do universo de análise: o grupo do satsang

O conhecimento da diversidade social do grupo foi necessário para compreender as suas redes de sociabilidade e as suas dinâmicas de configuração identitária do grupo, bem como a construção de uma recente consciência e estrutura formal de diáspora, anteriormente incipiente. Perante tal diversidade, iniciou-se o processo de definição de um universo de análise. O grupo feminino sobre o qual recaiu particularmente a minha

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Neste sentido, as deslocações ao espaço de origem dos antepassados é a forma mais directa de aprofundamento dos laços com o espaço sagrado do hinduísmo. As viagens à Índia encontram-se associadas à celebração de momentos rituais importantes (como os casamentos ou os rituais post-

mortem), à inauguração de uma casa, às visitas aos familiares e aos templos de família e de linhagem e à

realização de viagens a centros de peregrinação. A principal função destas deslocações é reatar o relacionamento com uma origem que se encontra distante (no espaço e no tempo), com o seu solo e rios divinizados, com os antepassados e com as deusas de linhagem – as kul devi – que se devem homenagear. O contacto com o espaço de origem sócio-cultural integra a identidade múltipla (cf. Bastos e Bastos, 2001) destes hindus, conjugada com um sentimento de pertença a Portugal (cf. Lourenço, 2005).

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observação é composto por elementos aos quais estão associadas diferentes pertenças sociais, culturais e de orientações religiosas. O âmbito das suas actividades religiosas é pluralista, no sentido em que não só é composto pela diversidade referida, como é aberto a diferentes orientações e movimentos religiosos, e devoções pessoais. Neste sentido, a pesquisa etnográfica que havia realizado anteriormente no âmbito da investigação para a minha tese de mestrado revelou-se muito útil. O conhecimento prévio do grupo mais abrangente facilitou o processo de selecção do universo de análise, composto por mulheres pertencentes a vários grupos sociais.

O chamado “grupo do satsang” foi o conjunto privilegiado da minha pesquisa. Este é composto por um número variável de mulheres, quantificável em cerca de 25,cujas participantes têm mais de 50 anos81. Por extensão, outros contactos fornecidos por estas mulheres, particularmente os das suas noras ou filhas, foram mantidos. Da mesma forma, os outros satsang foram alvo da minha investigação, sendo que, no entanto, muitas das minhas interlocutoras participam nestes vários encontros devocionais. As mulheres envolvidas em projectos culturais e actividades dinamizadoras da comunidade foram também incluídas no meu universo de análise.

A minha participação nos vários grupos de satsang, juntamente com as conversas realizadas com as minhas interlocutoras, ocupou o espaço e o tempo do seu quotidiano, ao longo do qual elas reflectiram sobre o seu papel na comunidade, os seus deveres na família e no grupo e o seu lugar na hierarquia de género.