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Diáspora e transnacionalidade

Capítulo

1.3. Diáspora e transnacionalidade

A complexidade inerente ao processo de produção e reprodução cultural dos grupos em diáspora reflecte-se na criação de novas formas culturais como produto da interacção criada pelos movimentos de populações através de diferentes estados,

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permitindo a confluência entre o local e o global (cf. Kearney, 1995), apesar do desequilíbrio entre centros e periferias envolvidos nos processos de globalização.

A noção de transnacionalidade foi cunhada por Basch, Glick Schiller e Szanton Blanc em 1994 para descrever os processos pelos quais os imigrantes forjam e sustentam relações sociais múltiplas que unem as suas sociedades de origem e os espaços de estabelecimento (Basch et alii, 1994: 7). A noção de transnacionalidade reforça a multiplicidade dimensional das dinâmicas – «multistranded social relations» – originadas pela reconstrução global do capitalismo que se desenvolvem em espaços geradores de identidades e representações culturais flexíveis (Basch et alii, 1995: 684).

Tololyan considerou as diásporas emblemas da transnacionalidade. Segundo o autor, estas permitem desafiar a tranquilidade doméstica das elites nacionais e o seu poder hegemónico, num contexto em que as diferenças se pretendem assimiladas, destruídas ou relegadas para enclaves demarcados por fronteiras através das quais a nação reafirma uma homogeneidade que reforça as diferenças entre si própria e o que se encontra fora das suas fronteiras (Tololyan, 2007: 25)24.

A experiência de diáspora apontada por Stuart Hall em “Cultural Identity and Diaspora” permite definir as identidades diaspóricas como: «constantly producing and reproducing themselves anew, through transformation and difference» (Hall, 2003: 244). Appadurai sugere que a reprodução cultural se encontra associado a influências políticas e traumas de desterritorialização que condicionam o processo de negociação identitária dos indivíduos, funcionando, em alguns contextos, esta politização como combustível emocional que conduz a expressões políticas por vezes violentas (Appadurai, 1996: 42).

O progressivo envolvimento transnacional dos membros das diásporas e o aumento do impacto destes fenómenos na transformação da identidade diaspórica encontram-se intimamente relacionados com a globalização das comunicações e dos

media. Imaginação, nostalgia, discurso cultural e diferença circulam através de fluxos

transnacionais complexos (Appadurai, 1990) e são muitas vezes preparados para o consumo transnacional com o forte apoio das tecnologias globais, com destaque para o que Gayatri Spivak chama de «microelectronic transnationalism» (Spivak, 1989: 276). O impacto dos media na diáspora sul asiática conduziu à criação de redes específicas entre a Índia e os indivíduos em diáspora, originando consciências quer conservadoras,

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O artigo referido foi originalmente publicado em 1991 na revista Diaspora: A Journal of Transnational

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através da circulação de conceitos tradicionais sul asiáticos, quer cosmopolitas, particularmente entre os mais jovens (cf. Gillespie, 1995).

Vertovec junta ainda a este conjunto teórico a abordagem de Rai (1995) sobre a construção de uma identidade hindu em diáspora através dos grupos de discussão online e boletins electrónicos que revelam o forte impacto da internet na construção do hinduísmo em diáspora e a contribuição da chamada globalização para a sua dispersão: «... a casual surf of the Internet reveals myriad homepages and hypertext links to sites dedicated to the world-wide maintenance and propagation of Hinduism» (Vertovec, 2000: 156).

Articulada com questões de globalização, a preocupação antropológica sobre a diáspora direccionou-se para uma perspectiva anti-essencialista e construtivista, que se dirige no sentido da produção e reprodução de identidades, caracterizadas como sincréticas, crioulizadas ou híbridas (cf. Baumann e Sunier 1995, Hannerz 1995, Hall, 2003 [1990]), sendo a diáspora contemporânea observada através de uma lógica de heterogeneidade e diversidade que permite compreender a produção de fenómenos culturais híbridos ou «novas etnicidades», visíveis, por exemplo, entre os membros mais jovens das comunidades em diáspora que desenvolvem processos de selecção identitária entre mais do que uma herança cultural (cf. Ballard, 1994).

A relação triádica entre grupos colectivos de indivíduos em diáspora, os seus contextos de estabelecimento e os seus espaços de origem, é uma das principais características das diásporas que integram, como vimos, a sociedade contemporânea, globalizada e transnacional, e implica uma relação de lealdade para com o território de origem, real ou imaginado. As seguintes características, delineadas por Robin Cohen, estão presentes na definição das diferentes diásporas: a dispersão a partir de uma origem de forma forçada ou voluntária; a existência de uma memória colectiva e de um mito de origem, juntamente com a idealização desse espaço original; o movimento (acrescentaria: ou desejo) de retorno, uma forte consciência cultural de grupo mantida ao longo do tempo; uma relação (na minha perspectiva, nem sempre) problemática com a sociedade em que se estabelecem; a solidariedade para com os outros grupos congéneres espalhados por diferentes países; e a perspectiva de uma vida distinta no seio de uma sociedade tolerante.

No contexto da discussão sobre a complexidade que acompanha as tentativas de definição do conceito de diáspora, gostaria ainda de me apoiar em Judith Brown que,

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numa reflexão recente sobre a diáspora sul asiática, propõe a seguinte noção de diáspora como ponto de partida para a sua análise:

Not surprisingly, there has been much scholarly literature on how the word diaspora should or should not be used. For the purposes of this book I shall use it to denote groups of people with a common ethnicity who have left their original homeland for prolonged periods of time and often permanently; who retain a particular sense of cultural identity and often close kinship with other scattered members of their group, thus acknowledging their shared physical and cultural origins; and who maintain links with that homeland and a sense of its role in their present identity. This avoids any essential notion of compulsion and victimization (though compulsion may have been present in some cases), recognizes the many reasons and contexts for migration, and emphasizes the transnational nature of diasporic groups» (Brown 2006: 4).

De regresso à proposta de Steven Vertovec, que consiste em distinguir os três principais significados da diáspora, gostaria de centrar a presente análise na ideia de diáspora como forma de produção cultural. Este será o ponto de partida desta dissertação e terá em conta diversos aspectos como a religião, a prática ritual, a casta (no sentido social e cultural), as relações familiares e de parentesco e o género. A diáspora como forma de produção cultural permitirá centrar a problemática da diáspora hindu em Portugal e, em concreto, entre a comunidade residente em Santo António dos Cavaleiros e articular o conceito de diáspora com os outros dois conceitos centrais desta dissertação: género e religião. Eleger a capacidade de produção cultural da diáspora não implica excluir as duas outras dimensões apresentadas por Vertovec. Tanto a consciência diaspórica como a forma social da diáspora são dimensões essenciais para a análise deste fenómeno.

A consolidação da consciência de diáspora é, segundo Cohen, composta por elementos fundamentais, entre os quais destaca a religião, sem que, no entanto, seja possível falar da existência de diásporas religiosas. Esta posição prende-se particularmente com o facto de, para o autor, as religiões concentrarem em si vários enquadramentos culturais e, ao mesmo tempo, de as religiões mundiais não possuírem um mito e a idealização de uma origem, apesar de reconhecer, à partida, a excepcionalidade do caso das religiões judaica e sikh (Cohen, 1997: 189).

No entanto, Vertovec acrescenta o hinduísmo às duas religiões consideradas excepcionais neste contexto. Ao contrário do cristianismo ou do islamismo, a religião hindu assume uma forte ligação ao território nacional, no sentido em que praticamente

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todos os hindus são indianos. O sentimento de ligação à Índia, sob a forma de reverência espiritual, pela grande sacralidade atribuída aos locais religiosos e à própria geografia, é suficiente para comprovar o peso da herança civilizacional da Índia na consolidação desta diáspora. É suficiente também para conduzir à possibilidade de se falar da existência de uma diáspora hindu (Vertovec, 2000: 4).