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Construção identitária e literatura feminina

Capítulo

2.1. Construção identitária e literatura feminina

A produção literária de mulheres sul asiáticas sobre as suas experiências, os seus percursos e heranças culturais individuais e colectivas, incide frequentemente sobre os tópicos da identidade de género em diáspora, dos processos de negociação e de reconstrução identitária por que passam estas mulheres e sobre os seus esforços pela mudança de estatuto no interior das suas comunidades e na sociedade em que vivem29.

28 O Navratri é um festival em honra das várias manifestações da Grande Deusa – Mahadevi –, celebrado na altura das colheitas e que se prolonga por nove noites de danças tradicionais. Ocorre duas vezes no ano, nos meses de Chaitra e Aso (que correspondem aos meses de Março/Abril e Setembro/Outubro e marcam o início da Primavera e do Outono).

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Estas temáticas encontram-se presentes na crescente produção literária feminina, como é o caso das escritoras Arundhati Roy e Kiran Desai, vencedoras do Booker Prize, a primeira em 1997 e a segunda em 2006.

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Para além da ficção, destacam-se as colectâneas de textos produzidos por mulheres sul asiáticas e suas descendentes30, que juntam geralmente escritoras populares e outras, provenientes de diversos campos disciplinares, as quais reflectem sobre temas que querem ver discutidos e que envolvem as suas experiências de diáspora31.

São histórias de vida de mulheres que atravessam barreiras nacionais (Dasgupta, 1998: 1) ou narrativas que, através da centralidade da categoria de género, apresentam diferentes dimensões de histórias pessoais e nacionais (Jain, 2002: xviii). Estas experiências, comuns a um conjunto de mulheres sul asiáticas, direccionam-se, apesar da diversidade implícita nesta categoria, para as suas similitudes, ou seja, para as características comuns do processo de deslocação.

A temática da identidade é enfatizada nas várias antologias, centradas nas formas através das quais as mulheres criam novos meios de representação (Hussain, 2005: 4). No caso britânico, o género encontra-se no centro do processo de consolidação identitária das mulheres de origem sul asiática, explorando temas como a imigração, família, comunidade, conflitos de gerações, sexualidade, violência, discriminação ou activismo. Neste sentido, as identidades são negociadas e reconstruídas no âmbito da sociedade em geral e das comunidades em que estas mulheres se inscrevam. Articulado com este processo, um movimento de mudança – exemplificado pelas suas próprias vidas – representa a emergência de uma nova mulher, com as consequências emocionais e psicológicas que essa mudança poderá implicar (Hussain, 2005: 16). A mudança é, efectivamente, o alvo principal desta actividade literária, sendo a escrita utilizada como uma ferramenta de expressão política, social e cultural.

Ao analisar a ideologia na literatura feminina de diáspora, Harish Narang inicia o seu artigo com um excerto de uma música popular hindi dos anos 60, que relata a situação de uma mulher cujo marido partiu para Rangoon, deixando-a para trás (Narang,

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Vide, por exemplo Our Feet Walk the Sky (1993), editado pelo Women of the South Asian Descent Collective ou

Making Waves. An Anthology of Writings by and About Asian American Women (1989), editado pelo Asian Women

United of California (1989) ou ainda A Patchwork Shawl. Chronicles of South Asian in America (1998). No contexto da análise e interpretação das narrativas produzidas em torno destas temáticas, que envolvem as categorias de género e de diáspora, é possível destacar no contexto britânico Writing Diaspora. South Asian Women, Culture and Ethnicity (Hussein, 2005) ou, num âmbito mais abrangente, Gender and Narrative (2002).

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Jasbir Jain, organizador de Gender and Narrative (2002), que explora este tipo de produção literária, enfatiza a centralidade da categoria de género, no sentido em que homens e mulheres têm diferentes tipos de experiências que tornam a narrativa também uma forma de negociação: «Social locations, roles, inherited strengths (and constraints) were different. Even the manner in which history constructed them or cultures negotiated through them was different. Narration was, at one level, one more such negotiation» (xi).

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2002: 1)32. Segundo este autor, a transformação da situação das mulheres na diáspora reflecte-se na sua capacidade de agir de modo mais autónomo:

[...] diaspora women have travelled a long way from the time of sitting at home and waiting for their piya to write or telephone from Rangoon that is to spin the yarns for them abroad. The diaspora women have themselves become piya now – actors and doers – and they make their own yarns and write their own stories (Narang, 2002: 14).33

A conquista de autonomia impulsiona a reconstrução das identidades femininas no interior das próprias comunidades – frequentemente controladoras das suas mulheres – no sentido de alcançar a libertação face à repressão das identidades sexuais. As referências identitárias destas comunidades, reforçadas pelos seus líderes e por movimentos religiosos e políticos, são orientadas para uma imagem que conserva a o padrão dominante da heterossexualidade e nega a homossexualidade, vista como sinal da corrupção da sociedade ocidental. Neste sentido, o restabelecimento das tradições culturais visa a circunscrição e manipulação da sexualidade das mulheres e, consequentemente, o seu controlo (Dasgupta, 1998: 14). As rupturas face às normas da família heterossexual ameaçam a essência de ser indiano – indianness – e, consequentemente, a produção de famílias tradicionais, o destino das mulheres, o casamento e a reprodução biológica do grupo (Mukhi, 1998: 196).

Para a noção de indianness contribui uma construção conservadora da mulher ideal indiana que, por sua vez, influencia o processo de recriação comunitária em diáspora. Mukhi analisa a parada americana da celebração da independência da Índia para ilustrar o que considera: «an example of a vernacular nationalism as expressed by indians in the diaspora [...] in which local talents and invited celebrities perform their version of “indian culture”» (Mukhi, 1998: 187).

A expressão pública da identidade nacional da Índia permite compreender os esforços realizados pelas comunidades em diáspora para definir a sua pertença nacional,

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O refrão da canção intitulada “Piya Gaye Rangoon” diz o seguinte: «o meu amado partiu para Rangoon e telefonou-me de lá» (tradução minha a partir do inglês).

33 Considerando-se as heroínas da diáspora, algumas mulheres inspiram-se nas suas antepassadas, as primeiras mulheres a sobreviverem às condições de vida do estabelecimento fora da Índia. É a elas que vão buscar a memória de lutas de resistência mas também da defesa da identidade nacional, durante o processo de independência da Índia, mesmo que à distância. Este activismo inspira-se no terceiro ideal de feminilidade, o da mulher guerreira mítica, virangana: «The virangana is a well-respected and revered role that crosses religious boundaries. The role is represented by the numerous women who led us in the struggle for justice» (Dasgupta, 1998: 12).

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através de eventos como programas culturais e paradas – ao estilo americano – cujos elementos centrais são a música e a dança, desempenhadas pelos corpos femininos, cuja sexualidade é alvo da fabricação do que Dasgupta designa por «cultural selfhood», e pela qual passa a uma recriação da identidade cultural e nacional de diáspora através da imagem da mulher (Dasgupta, 1998: 14).

A imagem feminina deverá opor-se aos valores considerados corrompidos da feminilidade ocidental. Ao mesmo tempo, as comunidades em diáspora pretendem ir ao encontro das expectativas ocidentais, recorrendo a um conjunto de imagens reificadas de espiritualidade e orientalismo. A criação desta identidade, construída com recurso a noções ocidentais sobre a Índia e sobre religião, é incentivada por partidos e movimentos religiosos e políticos. Este fenómeno pode omitir as múltiplas formas de ser indiano e, por conseguinte, os vários modos de negociação (Dasgupta, 1998: 202).

A presença das comunidades sul asiáticas na sociedade ocidental tende a produzir um olhar essencializado das suas mulheres, através da criação de imagens reificadas mas pode, também, originar o surgimento de uma nova mulher. Se os líderes comunitários pretendem passar uma imagem de perfeição dos seus grupos com base nos seus valores morais e princípios religiosos – que opõem à sociedade envolvente – as escritoras sul asiáticas ambicionam desmistificar a sua própria imagem aos olhos desta mesma sociedade. Para tal, propõem-se desconstruir o estereótipo que as remete para um estado de passividade e sujeição face às regras patriarcais, de ignorância política, de assexualidade e de fidelidade às normas tradicionais. O esforço de libertação destas normas é passado para a expressão pública, através da literatura, numa prova da capacidade de autonomia, para se apresentarem a uma sociedade ignorante relativamente às suas identidades de género.

A referida literatura fornece material sociológico e antropológico importante para a análise das dinâmicas das identidades de género, evidenciando as perspectivas femininas sobre as diferentes esferas que constituem a diáspora e que são imprescindíveis para a compreensão abrangente deste fenómeno. A desconstrução e questionamento das concepções de género deverão persistir, à medida que decorre o processo de resistência e da luta por individualidade e autonomia, como escrevem as autoras de Patchwork Shawl:

The questions persists, “Who are we?” With each answer more questions arise. At best, we can answer it only temporarily and re-ask the

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question periodically. It is our work in progress. We are daughters, mothers, lovers, sisters, granddaughters, academics, friends, workers, and, above all else, individuals. We are also chroniclers. And this book is an attempt to record, as well as bring meaning, resistance and invisibility, “othering,” and silence, resistance to being defined by others and being corralled into an artificial “culture” that renounces our diversity of experience and being. A Patchwork Shawl is our assertion: We are, we are! (Dasgupta, 1998: 15)

A edição de colectâneas de textos no feminino, centradas em preocupações que emanam da vida das mulheres e da sua posição nas esferas familiar, social e cultural, produzidas no ocidente ou nos países de origem, assume actualmente uma crescente visibilidade34. Uma rápida pesquisa na internet permite-nos descobrir a extensão de trabalhos produzidos por escritoras sul asiáticas nos últimos anos35, expressa no crescente impacto de prémios literários atribuídos a mulheres destes contextos, cujas personagens (muitas vezes seus alter ego) exibem a tentativa de redefinir o seu posicionamento social na contemporaneidade e a sua participação na esfera política e cultural.