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A consciência animal e a teoria evolucionista:

6. EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

6.2. Consciência X (In)consciência Animal

6.2.2. A consciência animal e a teoria evolucionista:

A primeira questão que se coloca para questionar a tese mecanicista cartesiana que assume que os animais não-humanos não são dotados de consciência, é o senso comum. Muito embora Descartes tenha exaustivamente colocado à prova suas afirmações sobre os animais, muitos cientistas, e mesmo leigos, discordaram de suas teorias (Felipe S, 2007, p. 46). Naturalmente, ao observar empírica ou mesmo curiosamente os comportamentos de certos animais – especialmente mamíferos – pressupõe-se a existência de consciência. Quando um cão sabe-se próximo a um amigo ao ouvir seus passos, ele chacoalha o rabo, pula, late. Seu comportamento pode ser descrito como nada menos que animação e excitação. Parece haver, inquestionavelmente, consciência em tal comportamento, fato que é negado por Descartes (Regan T, 2004b, p. 6). Regan supõe que o temor de Descartes é ser inevitavelmente levado a assumir que os animais sejam dotados de alma imortal ao atribuir-lhes consciência86 Entretanto, ser consciente não implica ser portador de alma imortal (Felipe S, 2007, p. 46). Existe uma nítida dualidade na teoria de Descartes, na qual separa o corpo da mente, isto é, plano físico e espiritual, respectivamente. A mente não está em lugar nenhum, no seu entender, está na alma por não ser material (Regan T, 2004b, p. 21). Damásio (1998, p. 280) coloca que é

esse o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro.

Uma abordagem que parece ser mais significativa no que concerne à consciência animal é a empreendida por Charles Darwin (1809-1882) (Regan T, 2004b, p. 18). Ele afirma: “não há

86 Este temor faz sentido ao avaliar sua filiação à doutrina judaico-cristã que afirma que apenas seres

humanos são dotados de alma. Contudo Descartes (1989) afirma “[...] não ser possível provar ou demonstrar que os animais são dotados de almas, mas igualmente impossível provar que não o são [...]”.

diferença fundamental entre o Homem e os mamíferos superiores em suas faculdades mentais” (Darwin C, 1871, p. 35).

Não obstante, a diferença entre a mente humana e a de animais superiores, grande como é, certamente é uma questão de grau e não propriamente de especificidades tipológicas. Temos visto que os sentidos e as intuições, e as variadas emoções e faculdades, como amor, memória, atenção, curiosidade, imitação, razão [e assim por diante], de que o homem se vangloria, podem ser encontrados em incipientes, ou mesmo às vezes, nos animais inferiores bem desenvolvidos. São igualmente capazes de algum aperfeiçoamento hereditário, conforme observamos em cães domésticos comparados ao lobo ou chacal. Se for sustentado que certas atribuições, tais como a autoconsciência, abstração, etc, são peculiares ao homem, pode muito bem ser que tais atribuições sejam resultados incidentais de outras faculdades intelectuais altamente avançadas; e que estas são, principalmente resultados do uso contínuo de uma linguagem altamente desenvolvida (Darwin C, 1871, p. 105).

Isto explica que ter uma vida mental não é uma característica unicamente humana, quanto propunha Descartes. Muitas considerações acompanham as diferenças mentais segundo a teoria da evolução, a saber, características fisiológicas e anatômicas, mas o que cabe fundamentalmente realçar é o valor da consciência enquanto funcionalidade adaptativa de sobrevivência. A resposta evolutiva adaptativa dos seres vivos ao seu ambiente se dá em razão dessa consciência (Regan T, 2004b, p. 19). Pode-se constatar consciência em alguns seres vivos, pois estes “[...] precisam interagir com o ambiente natural e, portanto, com seus pares e concorrentes, para garantir os meios de vida e fugir das ameaças, [... caso] não tivessem uma atividade mental qualquer que lhes permitisse gravar, ordenar e rearticular as experiências vividas [...]” eles não sobreviveriam, pois não poderiam aplicar o aprendido no futuro (Felipe S, 2007, p. 46). Enquanto isso, alguns seres não precisam interagir ativamente para se adaptarem às condições e situações de seu ambiente e evoluírem (Felipe S, 2007, p. 46).

Existem ainda fortes indicações de que animais não-humanos expressem, para além de suas individualidades, comportamentos sociais de ordem ética enquanto indivíduos socializáveis. Damásio corrobora essa idéia ao afirmar:

Em algumas espécies não humanas, e mesmo não primatas, em que a memória, o raciocínio e a criatividade são limitados, há, mesmo assim, manifestações de um comportamento social complexo cujo controle neural tem de ser inato. Os insetos — as formigas e as abelhas em particular — apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembléia Geral das Nações Unidas. Mais próximos de nós, os mamíferos exibem manifestações semelhantes, e os comportamentos dos lobos, golfinhos e morcegos-vampiros, entre outras espécies, sugerem até a existência de uma estrutura ética. É evidente que os seres humanos possuem alguns desses mecanismos inatos, os quais são provavelmente a base de algumas estruturas éticas usadas pelo homem. No entanto, as convenções sociais e as estruturas éticas mais elaboradas pelas quais nos regemos devem ter surgido e sido transmitidas de forma cultural (Damásio A, 1998, pp. 292-293).

Nesse sentido, a consciência adaptativa de sobrevivência existe em muitos outros seres e não existe somente em seres humanos, como muito se pensava. Quanto mais o ser compreende o seu ambiente físico, biológico e social, melhores suas chances de adaptabilidade. Sem dúvida a linguagem, como Descartes pressupunha ser indispensável para a posse de consciência, pode ser de grande valia para a adaptabilidade de um ser ao seu ambiente, no entanto, a linguagem, embora possa ser considerada um atributo cognitivo dos mais nobres para os que são conscientes, ela apenas pressupõe consciência e por isso, prescindível para se afirmar consciência em algum ser. Obviamente, há níveis de capacidade cognitiva nos quais se pode constatar vida mental, mas a questão principal – que já vem sido tratada nos capítulos anteriores, através das teorias de Singer e Regan – é em quais seres se pode constatar uma vida mental, consciência e sensibilidade (Regan T, 2004b, pp. 19-20).

É importante salientar que não basta apenas a observação comportamental para se constatar definitivamente a consciência, mas a proposta da teoria da evolução remete muitos animais não-humanos ao plano dos seres conscientes, plano que antes pertencia apenas aos seres humanos, refutando assim, a proposta cartesiana da (in)consciência animal (Regan T, 2004b, p. 28).

É difícil estabelecer os limites da portabilidade de consciência, isto é, a partir do quê se pode verificar consciência nos animais. Mas partindo do pressuposto de que a consciência está intimamente ligada à anatomia e fisiologia, pode-se afirmar que os mamíferos não-humanos

também tenham consciência, dada a semelhança anatômica e fisiológica entre todos os mamíferos. Mas isso não significa afirmar que apenas os mamíferos tenham consciência, mas dá uma razão bem fundada para crer que tais animais dotados de tal semelhança com os humanos também sejam portadores de consciência.