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O argumento da potencialidade

6. EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

6.2. Consciência X (In)consciência Animal

6.2.4. O argumento da potencialidade

Se forem a linguagem e a racionalidade, os parâmetros para a consciência e a ordem de considerabilidade moral dos seres, é necessário dizer que uma considerável parte dos membros da

espécie humana não se encontra resguardada por direitos morais. Os seres humanos, em alguma altura de suas vidas são destituídos de consciência (bebês e crianças pequenas, por exemplo). Mas outras situações podem fazer com que os seres humanos adultos normais sejam destituídos de consciência e linguagem, a saber, adultos que em virtude de uma degeneração neurológica perdem sua capacidade consciente de se autodeterminarem e de empregar a linguagem para qualquer fim, e mesmo alguns idosos que, por alguma razão, perdem suas capacidades cognitivas, ou mesmos acidentes. Outros humanos já nascem destituídos de consciência em função de complicações genéticas irreversíveis e nada que se faça em suas vidas fará destes capazes de manifestar uma mínima exibição de consciência e autodeterminação (Felipe S, 2007, p. 53).

Para constatar coerência entre a aplicação dos critérios morais que se empregam para a consideração dos animais humanos e não-humanos, consideram-se duas alternativas: 1) aqueles membros da comunidade humana que não têm plena consciência – humanos ‘não- paradigmáticos’ ou pacientes morais humanos – seriam desconsiderados moralmente; 2) os animais que se encontram em um patamar de consciência de igual ou superior relevo aos humanos ‘não-paradigmáticos’ – isto é, humanos desconstituídos de linguagem e consciência – seriam dignos de maior respeito. Mas esta lógica moral não acontece, em nenhum dos dois sentidos. A segunda via seria, obviamente, a mais adequada, uma vez que não se pretende destituir os pacientes morais humanos de direitos morais. Porém os animais são completamente desconsiderados pela moralidade vigente, enquanto os humanos que não têm plena consciência são resguardados moralmente. Conclui-se daí que, se aplicasse aos seres humanos a conduta que é aplicada aos animais, não restaria sequer um ser humano a quem se deva respeito, do nascimento à morte, uma vez que todos que agora estão adultos já foram bebês, portanto, destituídos do agir consciente (Felipe S, 2007, p. 53). É importante frisar que não se trata de rebaixar o status moral de seres humanos ‘não-paradigmáticos’, mas de elevar o status de alguns animais.

Ao contrário do que se costuma pensar, os animais adultos nem deveriam ser comparados aos humanos deficientes ou bebês no que tange à questão do devido respeito. É verdade dizer que humanos deficientes e bebês apresentam uma fragilidade em seu universo cognitivo: o deficiente perdeu, está a perder, ou já nasceu sem a habilidade neurológica que lhe permite ações conscientes; o bebê ainda não manifesta esta habilidade. Os animais, diferentemente da espécie humana, possuem um outro processo de desenvolvimento cognitivo, uma vez que eles não poderão adquirir a forma humana de consciência e linguagem, e não tiveram suas mentes “[...] atrofiadas por acidentes genéticos, biológicos ou ambientais”. Portanto, a filosofia moral

tradicional emprega argumentos para desconsiderar os animais, que devem ser substituídos em função da incoerência (Felipe S, 2007, p. 53).

Nesse sentido, os animais não têm suas mentes atrofiadas, têm uma mente diferente da mente humana, e seria um equívoco moral pensar que a consideração e o respeito para com os animais lhes são devidos em razão de uma deficiência mental. Muitos estudos87 revelam que os animais, sobretudo, os mamíferos, aves e vertebrados de uma maneira geral, têm capacidades que lhes permitem garantir sua integridade física e social, a saber, sensibilidade e consciência. Muitos seres humanos, sequer podem garantir certas necessidades fisiológicas, como a própria nutrição, nem mesmo capazes são de manifestar o desejo por tais necessidades. Nessa medida é que se entende que a comparação entre ‘humanos marginais’ e animais adultos normais não deveria ser a melhor alternativa no que diz respeito à consideração moral (Felipe S, 2007, pp. 53-54).

Mas como já referido, a filosofia moral tradicional não reconhece os animais, mesmo que estes tenham mesmas características observadas em humanos. Ainda assim, os ‘humanos marginais’ são considerados mesmo quando são cognitivamente incapacitados. Essa razão mostra distintas formas de tratar interesses semelhantes. Por exemplo, o interesse de evitar a dor é igualmente identificado em animais humanos e não-humanos, contudo os interesses de ambos são julgados de forma diferente. Suponha que pertencer à espécie Homo sapiens seja razão suficiente para existir igual consideração, pois independentemente da fase da vida humana pela qual o indivíduo perpassa, ele é um ser humano. Ao dizer isto, é preciso considerar a tese da ‘potencialidade’. Habilidades como a consciência e a linguagem são adquiridas ao longo de qualquer vida humana normal, o que qualifica bebês, por exemplo, como potenciais seres humanos conscientes e linguisticamente capacitados. Sendo assim, aqueles seres que pertencem àquela espécie que têm o potencial de vir a adquirir as habilidades supracitadas, mesmo sem de fato as possuir, são remetidos a um mesmo plano de consideração dos quais já têm essas habilidades – os seres humanos adultos normais (Felipe S, 2007, p. 55)

Como um princípio deve ser universalmente aceito e aplicável, se um indivíduo é contemplado por direitos e deveres através do argumento da potencialidade em uma determinada situação, é coerente exigir que um outro indivíduo seja igualmente contemplado por direitos e deveres em uma outra e diferente situação. Por exemplo, um estudante deveria receber o mesmo status profissional do mestre que o forma se a potencialidade for aceita como um critério

87 Alguns filósofos como Bernard Rollin, Frans de Vaal, Paola Cavalieri, Peter Singer, Richard D. Ryder,

Steven M. Wise publicaram exaustivos estudos sobre a condição moral dos animais nos quais relevam certas peculiaridades dos animais no sentido de garantir-lhes uma proteção moral adequada (Felipe S, 2007, p. 53).

suficiente para se atribuir direitos e liberdades, embora sejam claramente distintos profissionalmente. Um bebê normal tem o potencial de vir a ser consciente e usar a língua portuguesa, mas afirmar isso é significantemente diferente de afirmar que ela já o é e o faz, respectivamente; é também substancialmente diferente afirmar que a potencialidade de um bebê de vir a ser autônomo o confere um mesmo estatuto moral daqueles que já o são (Felipe S, 2007, p. 55).

Repare que quando uma criança está fragilizada por uma doença, não é o critério da potencialidade que leva seu tutor a tratá-la com carinho e cuidado, mas para aliviar-lhe a dor, o mal-estar e o possível sofrimento. Nesse sentido, não é a potencialidade para certos atributos como a razão e a linguagem que justifica os maus tratos e violência empregada nos animais não- humanos. Ao deixar os animais fora da consideração moral por tais razões arbitrárias, claramente se vêem violados conceitos como o da universalidade, coerência e imparcialidade, indispensáveis enquanto teorias norteadoras do princípio da justiça e dos princípios que visam as ações morais (Felipe S, 2007, p. 56).

As justificativas religiosas ainda estão muito presentes na desconsideração moral dos animais. O ser humano, antes das teorias de Darwin, acreditava ocupar um nicho privilegiado na ordem da vida, por julgar possuir características que lhe são únicas. Ainda hoje se acredita nisso, mas as evidências empíricas levantadas por Darwin refutaram essas proposições religiosas para consideração dos animais. A filosofia moral implica reflexões racionais em detrimento da religiosidade. Se a ética fundar-se em pressupostos religiosos, também serão seus juízos. Ora, se assim for, deixa de haver reflexões filosóficas, pois, seriam destituídas de racionalidade em detrimento da religiosidade (Felipe S, 2007, pp. 56-57).

As justificativas para manter os animais fora da comunidade moral, e assim serem desconsiderados, se revelam arbitrárias e o fundamental a ser percebido é que as ações e decisões que afetem os animais prejudicando-os e, por outro lado, favorecem seres humanos devem ser limitadas. Não são critérios como a razão, linguagem, liberdade ou consciência que devem levar à consideração, se assim, até mesmo muitos humanos seriam excluídos da esfera moral. Sobretudo, se pelas decisões e ações do agente moral, um indivíduo tem seu “[...] bem estar, integridade física, emocional e ambiental [...]” violados, é devida a ele consideração moral (Felipe S, 2007, p. 58).