• Nenhum resultado encontrado

A perspectiva judaico-cristã: do tradicionalismo a uma nova compreensão

4. TRADICIONALISMO ÉTICO: UMA APRECIAÇÃO DOS FUNDAMENTOS

4.2. Antropocentrismo

4.2.2. A perspectiva judaico-cristã: do tradicionalismo a uma nova compreensão

A tradicional corrente teológica judaico-cristã vem sendo, desde o início dos movimentos das éticas animal e ambiental, criticada pelo seu posicionamento perante os animais não-humanos e ambiente natural. Almeida (2007, p. 35) destaca White (1967) como um dos principais responsáveis por levantar sérias críticas à tradição cristã, apontando-a como a “religião mais antropocêntrica que o mundo já conheceu”, pois legitima a exploração através da vontade divina e assim acentua o dualismo entre Homem e Natureza. Outro fator que White (1967) destaca como catalisador da dessacralização da Natureza é a clara e pungente rejeição do cristianismo frente à idéia pré-cristã de que seres bióticos ou abióticos que constituem a Natureza possuem espírito e consciência – animismo. Apesar dessas considerações, Pelizzoli (2003, pp. 76-77) ressalta que a visão medieval que o cristianismo tinha sobre a Natureza ocupava um caráter sagrado, como obra do Criador, e que nessa medida gerava um distanciamento respeitoso em virtude do mistério da criação. Mas a base da moral ocidental cristã – os dez mandamentos – não diz respeito aos outros em sua totalidade, entretanto apenas versa sobre a relação do Homem para com Deus e para com ele mesmo; a Natureza e outros animais ficam fora da considerabilidade por parte do cristianismo, implicando temor às ‘bestas’ e ao mistério das florestas, ao invés de respeito verdadeiro pela criação de Deus (Almeida A, 2007, p. 35). O célebre trecho abaixo caracteriza uma das principais razões para crer que os pressupostos judaico- cristãos sejam criticamente apontados:

Deus disse ainda: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. Que ele tenha poder sobre os peixes do mar e as aves do céu; sobre os animais domésticos e selvagens e sobre todos os bichos que andam sobre a terra.” Deus criou então o ser humano à sua imagem; criou-o como verdadeira imagem de Deus. E este ser humano criado por Deus é o homem e a mulher. Deus abençoou-os desta maneira: “Sejam férteis e cresçam; encham a terra e dominem-na; dominem sobre os peixes do mar e as aves do céu e sobre todos os animais que andam sobre a terra” (Gênesis 1: 26-28 apud Singer P, 2005, p. 428).

Este trecho do ‘Velho Testamento’ é constante e frequentemente enunciado como o principal correspondente da desconsideração do ser humano para com a Natureza e outros seres vivos, pois revela o Homem como único ser dotado de alma e feito à imagem de Deus, ocupando uma posição privilegiada e assim subjugando a Natureza e demais seres vivos sem que Deus se importe com tal. E através deste trecho autores denunciam a imposição da visão judaico-cristã do Homem como único ser moralmente importante. Apenas o ser humano é constituído de valor intrínseco, e as demais criaturas, como animais e plantas, são destituídas de tal valor e destruí-las apenas representa um pecado quando o próprio Homem é prejudicado com tal destruição. A versão criacionista que suporta essa idéia já não mais faz sentido desde que Charles Darwin (1806 – 1882), através de sua teoria da evolução, a refutou. Os seres humanos co-evoluíram às outras criaturas terrenas e isso não faz dele tão especial quanto a perspectiva judaico-cristã perpetua (Singer P, 2005, p. 428).

São Tomás de Aquino (1989a, pp. 6-9), apontado como um dos principais pensadores do cristianismo, não está distante dessa ótica, ao contrário, a corrobora incisivamente. Ele começa por distinguir seres racionais de seres irracionais: enquanto os primeiros dominam suas próprias ações, agindo conforme suas preferências e vontades; os últimos são movidos apenas pelas ações dos outros, em função não das próprias necessidades, mas da necessidade dos outros, “como um instrumento”, ele ressalta. E afirma ainda que criaturas intelectuais são regidas por Deus e as outras coisas, como ele chama, são dominadas pelas criaturas racionais para usufruto próprio. Essas coisas – toda e qualquer criatura – segundo ele, irracionais, são naturalmente escravas daquele que é racional ao qual nascem para servir. É a “providência divina”, ele alega. A idéia de submissão de outros seres vivos aos seres humanos é constantemente afirmada quando é referida a relação do Homem para com outras formas de vida nas suas passagens. Repare que muito do pensamento aristotélico se encontra aqui, em São Tomás de Aquino. Para Singer (2006), o cristianismo representa a fusão das idéias judaicas com as aristotélicas, a respeito do status inferior dos animais e do selvagem (Natureza) ante a superioridade dos humanos. Além disso, essa fusão colocou a sacralidade da vida humana como primado, em tempos em que também a vida humana era sacrificada inadvertidamente41.

Embora São Tomás de Aquino (1989b, pp. 10-12) considere legítimo tirar vidas de outros seres vivos para servir os seres humanos e que nem por caridade se deva qualquer respeito aos animais e à Natureza, a Igreja Católica em sua Enciclopédia afirma:

Crueldade contra animais [e poderia-se incluir aqui a Natureza] com certeza é errado: não porque viola ‘direitos’ animais que não existem, mas porque a crueldade em um ser humano é uma disposição indigna e pecaminosa e, objetivamente, porque maus tratos aos animais[e à Natureza, por assim dizer] são um abuso e perversão do desígnio divino. Ao homem foi dado domínio sobre o reino animal, e tal domínio deve ser exercido em conformidade com a razão humana e a vontade de Deus (Catholic Dictionary, 1989:133 apud Felipe S, 2003, p. 43).

É interessante observar que nesta passagem, é errado infligir crueldade aos animais, não porque aos animais é devido mais respeito, mas porque não é devido ao ser humano tal comportamento pecaminoso.

Passmore (1974)42 acredita que a influência grega na doutrina cristã é a principal responsável pela versão de domínio absoluto irresponsável que se encontra na teologia cristã, e ainda afirma que o Homem não tem deveres morais para com a Natureza, que esta não é sagrada, visão que permite ao ser humano utilizá-la como bem entender. Mas embora se filie a este pensamento, acredita que se deve, por exemplo, conservar o mundo natural por uma responsabilidade assumida diante de Deus, em reverência, sobretudo, pela obra divina. Ora, enquanto a Natureza tem valor instrumental para o Homem, ela assume valor intrínseco para Deus, o que inviabilizaria a destruição das florestas, extinção de espécies e outros danos mais ao mundo natural (Almeida A, 2007, p. 36).

Ao lembrar a citação bíblica “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança [...]” (Gênesis 1: 26-28), é de interesse ressaltar que as palavras hebraicas podem assumir, em meio às suas diversidades, diversos significados. E nesse sentido a palavra que originalmente se encontra traduzida pela ‘dominação’, pode assumir o significado de “[...] responsabilidade perante o bem- estar de todos os seres na Terra [...]”, implicando em respeitar toda as formas de vida, como bem representa dentro da própria teologia cristã a voz dissidente de São Francisco de Assis (Almeida A, 2007, p. 35).

E assim como alerta Jungues (2004, pp. 93-94), a teoria criacionista tem um caráter teocêntrico e não antropocêntrico, ou seja, o centro é a criação de Deus, ao menos argumenta que assim deve ser. A criação de Deus não se encerra no Homem, mas no Seu descanso sabático e assim afirma:

O repouso de Deus é a volta a si depois de ter saído de si para criar. Deus autolimitou-se ao sair de si e criar algo diferente de si. Abriu um espaço onde foi possível o aparecimento das criaturas, espaço que está em Deus e, por isso, ao voltar a si e descansar, Deus traz consigo todas as criaturas, porque volta a si, mas elas repousam diante do olhar pacificador de Deus, porque encontram proteção de sua vida, que pode novamente reduzir as criaturas ao nada (Jungues JR, 2004, p. 94).