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Danos e benefícios para além da dor e sofrimento: inflição e privação

6. EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

6.2. Consciência X (In)consciência Animal

6.2.7. Danos e benefícios para além da dor e sofrimento: inflição e privação

Independente das circunstâncias há certas condições que são universais tanto para humano quanto para animal, como água, nutrição, abrigo e descanso. São condições básicas necessárias para o bem estar de qualquer indivíduo. Mas para seu bem estar, cada indivíduo tem necessidades diferentes quando já provido das condições básicas, a depender também das circunstâncias. Se para viver bem em uma cidade são necessários recursos financeiros para garantir a subsistência, em uma aldeia isolada desprovida de comércio, o recurso financeiro já não tem tanta importância para a garantia da subsistência. Repare então que cada indivíduo, para além das condições básicas, pode ter necessidades diferentes para que tenham benefício em relação ao seu bem estar (Regan T, 2004b, p. 88).

As necessidades básicas biológicas não dizem tudo sobre o bem estar que um animal humano ou não deve experimentar, mas é importante que haja uma satisfação harmoniosa dessas necessidades. É preciso que todas essas condições sejam satisfeitas, e o sejam harmoniosamente. Dizer isso significa que “[...] viver bem, relativamente às suas capacidades, é ter seus diversos desejos satisfeitos de modo harmonioso, integrado, não ocasionalmente, mas regularmente, e assim, não apenas hoje, mas sempre, através do tempo no qual mantém sua identidade psicofísica” 90. Se as condições ambientais não são adequadas para tal, seja por razões naturais – queimadas e inundações – ou pela intervenção humana, o bem estar do indivíduo será correspondente e consequentemente afetado (Regan T, 2004b, p. 89).

Se os desejos devem ser satisfeitos harmoniosamente para que o bem estar seja assegurado, quanto maior a complexidade e sofisticação desses desejos, maior a dificuldade de se assegurar o bem estar de maneira harmoniosa. Certos desejos ultrapassam a qualidade básica biológica, como o gosto pelas artes em geral, e o bem estar daqueles que têm tais desejos depende da satisfação desses mesmos desejos harmoniosamente (Regan T, 2004b, pp. 89-90).

Não existe um consenso sobre o que de fato proporciona um integrado bem estar para a espécie humana, mas há certas necessidades, como a companhia, segurança e liberdade que, entre

outras, compõem toda uma gama de necessidades psicológicas e sociais que são tidas como imprescindíveis para o bom desenvolvimento humano. Um indivíduo que em toda sua vida teve um suporte, companhia, que lhe proveram segurança, é muito provável que ele tenha confiança para buscar agir a seu próprio modo. Essas necessidades são igualmente pertinentes aos animais, de modo que eles têm uma vida emocional na qual são livres para buscar ter satisfeitas condições como o afeto e a segurança e, se satisfeitas, se beneficiarão (Regan T, 2004b, p. 90). Da mesma maneira que os seres humanos dependem de sua liberdade individual para buscarem as condições para seu sustento, os animais também são naturalmente capazes de buscar, a seu próprio modo, os meios para se autoproverem, e assim, beneficiarem-se. Por isso a necessidade de haver disponíveis naturalmente os meios para agirem livremente no intuito de satisfazerem ou não suas necessidades como base para o seu bem estar (Felipe S, 2007, p. 63).

Não obstante, um indivíduo pode não ser o melhor a julgar o que realmente lhe proporciona um maior bem estar. É verdade que ele é o maior interessado em seu próprio bem estar, mas às vezes o outro é melhor capacitado para orientar nessa busca pelo aprimoramento do bem estar. Um médico, por exemplo, pode ser tecnicamente mais capacitado para guiar o indivíduo em sua busca pela saúde e bem estar. Se humanos normais podem ser pacientes relativamente a seu próprio bem estar ao procurarem por auxílio técnico nesta busca, os animais podem igualmente se encontrar nessas condições, isto é, um outro indivíduo pode ser o melhor a julgar o que é melhor para satisfazer seus interesses de bem estar ultrapassando os interesses preferenciais. Mas não é por isso que as atitudes paternalistas devam ser justificáveis, pois a liberdade do agir, independente do que se busca, já é em si um benefício (Regan T, 2005b, p. 91).

Observa-se que se beneficiar de algo não significa ter suas satisfações diretamente concretizadas. Regan (2004b, pp. 92-93) explica que a riqueza, a saúde, a bondade alheia, por exemplo, criam possibilidades para satisfazer necessidades e desejos. Para os animais também existe uma essencial distinção entre benefício e satisfação. Um animal fisicamente saudável é, obviamente, beneficiado pela sua condição física em si, que lhe aprimorará sua condição de bem estar, mas as possibilidades de satisfação que essa condição proporciona para esse animal devem ser maiormente consideradas na medida em que um animal doente é mais indisposto a perscrutar as condições que lhe satisfarão do que um animal saudável (Regan T, 2004b, p. 93).

O viver bem para um ser humano, embora possa apresentar amplas variáveis, pode ser caracterizado da seguinte maneira: o indivíduo perscruta o que corresponde às suas preferências de modo que obtém satisfação em fazê-lo (perscrutar) e satisfazê-las (preferências), especialmente, se o que busca, não o faz apenas por estar interessado, mas existe para o seu interesse. Os humanos com degenerações que possuem um bem estar apenas experimental

também são contemplados por esses critérios. Compreende-se que os humanos debilitados, em especial, os mentalmente, em razão dessa condição, têm suas oportunidades de satisfação de seus interesses decrescidas e muitas vezes sequer são capazes de compreender que o que preferem são para o seu bem estar ou não (Regan T, 2004b, p. 93).

Esses mesmos critérios são válidos para os animais não-humanos, pois eles também perseguem suas preferências intentando satisfazê-las, têm satisfação em perseguir tais preferências bem como em alcançá-las, e o que buscam é do seu interesse. Portanto animais compartilham com seres humanos tantos os interesses biológicos, quanto os psicológicos e sociais, e se os humanos são beneficiados pela satisfação de tais interesses, pode-se afirmar que também o são os animais (Regan T, 2004, pp. 93-94).

Um animal tanto quanto um humano em muitos e variados aspectos pode experimentar bem estar. Danos são causados em um animal quando são violadas suas condições biológicas, emocionais, psicológicas, sociais, portanto, seu bem estar, ou simplesmente, quando anuladas as possibilidades de satisfazê-las. Segundo Regan (2004, p. 94) os danos podem ser descritos de duas maneiras, conforme são causados: por ‘inflição’ e ‘privação’. Os animais podem ser danificados por essas duas maneiras nos laboratórios de experimentação de acordo com o experimento91.

Os danos causados por inflição compreendem sofrimentos físicos e psicológico- emocionais, manifestados de forma aguda ou crônica. Mas Regan (2004b, p. 94) salienta que sentir dor não implica necessariamente sofrimento. Sofrimento, no seu entender “[...] envolve dor prolongada de considerável intensidade [...]”. Muito embora não se possa dizer qual o limiar quantitativo da tênue para a intensa dor, bem como saber o quão prolongada deve ser uma dor para saber-se sofrimento. Mas é fácil simpatizar com aqueles que sofrem por terem tido um membro amputado, queimaduras graves, ou doenças como câncer, depressão intensa, ou sofrimento pela doença grave de um ente querido.

Visto que os animais podem experimentar a condição de bem estar e sofrimento, os danos a eles podem ser vistos de maneira muito similar aos humanos. Lembrando que Bentham já referiu o sofrimento dos animais ao relevá-los moralmente, e não estritamente pelo fato de sentirem dor. É uma tarefa complicada definir exatamente sob quais circunstâncias os animais podem sofrer, mas assim como nos humanos, há certos casos em que pode ser facilmente percebido seu sofrimento, como graves queimaduras ou cortes profundos, para falar apenas em sofrimentos físicos (Regan T, 2005, p. 95). Todo tipo de intervenção caracterizada por

91 No Anexo 11.8, tópico 1, vislumbra-se um experimento que acaba por conjugar, de certa maneira,

procedimentos e experimentos invasivos como técnicas cirúrgicas, utilização de drogas, teste de toxicidade, corrosividade, de efeitos terapêuticos de certos produtos, usualmente observados na experimentação animal, são danos causados por inflição92 (Felipe S, 2007, p. 67).

Os danos podem ser causados por diversas fontes de variadas maneiras tanto pela ação do ser humano, como pela ação da Natureza. Se um indivíduo tem sua perna quebrada por uma árvore não significa que sofra menos quando é o vizinho que a quebra (Regan T, 2004b, p. 96). Mas não é somente a inflição que causa sofrimento, mas privar um indivíduo de uma qualidade necessária para seu bem estar pode representar um dano igualmente significativo. Se nem toda dor causa sofrimento, também é certo dizer que nem toda dor causa danos, bem como nem todo dano implica dores e sofrimento (Regan T, 2004b, p. 97).

Alguns tratamentos como odontológicos, procedimentos cirúrgicos e outros, são muitas vezes dolorosos e realizados “[...] em favor do interesse maior, humano ou animal, ou do restabelecimento da função perdida por acidente ou doença”. São procedimentos comuns a humanos e animais, que não visam causar danos, mas inevitavelmente causam dor.

Já indivíduos prejudicados pela privação, muitas vezes, não sofrem dores diretas, entretanto, é preciso considerar que seu bem estar pode ser diminuído em consequência de terem diminuídas suas possibilidades de satisfações. Pode-se causar danos a um indivíduo ao negar-lhe acesso a benefícios tidos como essenciais, como negar a uma criança o acesso à educação por razões arbitrárias como sua condição racial, religiosa ou sexual. Por vezes, o indivíduo pode até ser prejudicado sem mesmo estar ciente disto, como ao ser destituído de benefícios que o proporcionariam uma melhor condição (Regan T, 2004b, p. 97). Uma criança pode perder sua vida se destituída de condições necessárias que permitam sua subsistência; e aquelas que sobrevivem à escassez desses bens necessários sofrem os danos ao longo da vida manifestados, como baixo rendimento escolar, desqualificação profissional; até mesmo a violência pode ser uma consequência desta privação, sendo ela uma alternativa de assegurar os direitos que foram negados aos delinquentes enquanto ainda eram crianças (Felipe S, 2007, p. 66).

Os animais são tão prejudicados pela privação quanto os humanos. Uma vez privados das condições necessárias para seu adequado desenvolvimento biológico, psicológico, emocional e social e para sua adequada interação com o ambiente, esses indivíduos são considerados vítimas de danos muitas vezes sem reparos (Felipe S, 2007, pp. 65-66). Os animais que são utilizados para a alimentação são confinados em ambientes artificiais privados das condições que lhes permitem

92 Ver no Anexo 11.8, tópico 2, a respeito do LD50 , um dos mais representativos exemplos de

seu desenvolvimento natural. Frequentemente esses animais nem ao menos conheceram um outro ambiente que não o confinamento, e nessa medida é que se afirma que esses animais nem sabem que seriam beneficiados por um outro ambiente que nem mesmo conhecem. Isso não significa que por não saberem que estão sendo prejudicados, sejam legitimados os danos sobre eles, mas os danos são causados a eles mesmo sem saberem (Regan T, 2004b, p. 97). O mesmo acontece com animais que são usados em experimentos psicológicos de isolamento social. Assim que o animal nasce ele é separado de sua progenitora e é confinado em uma câmara sem qualquer comunicação; o único barulho que esse animal ouve é do ar entrando em sua jaula; o único contato que esse animal tem é com a seringa que fornece nutrientes para a subsistência, ele não sabe que poderia existir uma vida diferente para ele fora do seu confinamento (Singer P, 2008, p. 36).

A própria privação do conhecimento de que se está sendo prejudicado pode ser considerada um dano. O indivíduo estar ciente ou não do dano que lhe está sendo causado, não é razão para justificar ou legitimar danos causados a ele. Para ser prejudicado a partir da perspectiva da privação, um indivíduo não precisa necessariamente sentir dores ou sofrer. Mas usualmente, as privações acabam por resultar em dores e sofrimentos. Primeiramente, causa-se dano a um indivíduo apenas por privar-lhe das condições que o beneficiariam em seu bem estar e projetos de vida, mas o método utilizado para a privação também deve ser considerado, pois os danos podem resultar em consequências graves. O animal confinado pode desenvolver muitas patologias que surgem com a falta de atividades e privados de certos nutrientes e condições que encontrariam se não estivessem confinados, como é o caso dos bezerros que são criados para a produção de vitela, que durante o processo adquirem anemia pela privação de luz solar e de outros nutrientes essenciais; problemas nas articulações das patas devido a limitação de movimentos. Outros, como o exemplo de animais confinados isoladamente, acabam sofrendo de patologias sociais, psicológicas e emocionais em razão do estudo dessas referidas patologias (Regan T, 2004b, p. 99).

Felipe (2007, p. 66) escreve que a comunidade humana, em sua grande parte, condena ações como o abuso sexual de adultos normais sobre grupos vulneráveis de bebês, crianças, adolescentes, doentes e assim reconhecendo o princípio da não injúria, “[...] que defende seres incapazes de perceber a injúria que sofrem”.

É, portanto, correto dizer que é responsabilidade do sujeito moral, que sabe o dano que causa aos outros, que sabe do dano que outros sujeitos morais estão a causar em pacientes morais, que sequer sabem que estão sendo violados, assegurar que esses danos não acorram (Felipe S, 2007, p. 67).