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A Principiologia de Beauchamp e Childress

3. BIOÉTICA

3.2. O Instituto Kennedy e a Institucionalização da Bioética

3.2.1. A Principiologia de Beauchamp e Childress

O cariz biomédico da bioética de Georgetown – do Instituto Kennedy – alavancado pelo intenso interesse nos cuidados de saúde e suas respectivas intervenções fomentou a razão prática da bioética através do recurso metodológico baseado na aplicação de princípios incentivados pela própria mobilização da revitalização da ética médica. Tal recurso é conhecido pela principiologia

23 A Encyclopedia of Bioethics (Enciclopédia de Bioética) possui três edições revisadas e atualizadas em

diferentes momentos evolutivos e históricos da bioética. Nas duas primeiras edições em 1978 e 1995, o editor-chefe foi Warren Tomas Reich da universidade estadunidense de Georgetown. e na terceira em 2004 foi Stephen Garrard Post. Ver mais a respeito em Pessini L; Barchifontaine C. P.(2002). Problemas Atuais de Bioética. São Paulo: Edições Loyola. Post, SG (Editor–in-Chief). (2004). Encyclopedia of Bioethics. Macmillan, Dalle. 3rd ed.

ou teoria principialista apresentada na obra ‘Princípios de Ética Biomédica’ de Tom Beauchamp e James Childress em 1979.

Beauchamp e Childress, ambos filósofos com participação ativa no Instituto Kennedy, preocuparam-se intensamente com a conduta biomédica em sua teoria principialista que consiste essencialmente em propor princípios orientadores de tal conduta (Valls A, 2004, p. 145). Antecedidos pelo Relatório de Belmont, elaborado em 1978 que já propunha princípios orientadores de conduta, e debruçados sobre os valores e interesses presentes nos debates concernentes à vida moral, Beauchamp e Childress sugerem em sua obra quatro princípios a serem identificados como deveres prima facie24 que fundamentam o agir moral na ética biomédica: o respeito à autonomia, a justiça, a beneficência e a não-maleficência (Figueiredo AR, 2006, p. 75).

Respeito à Autonomia

O princípio do respeito à autonomia na teoria de Beauchamp e Childress realça uma característica interessante que é sua fundamentação tanto na teoria utilitarista quanto na deontológica, isto é, é fundamentada tanto na idéia de John Stuart Mill que sugere um sujeito que deve buscar a realização de seus objetivos desde que os interesses alheios não sejam prejudicados, quanto na concepção de autonomia presente em Kant: cada ser humano respeitado como um fim em si mesmo, o que reflete a dignidade humana (Petry F, 2004) Tal princípio questiona o paternalismo dos profissionais da saúde, clarificando que o profissional é de fato o detentor dos conhecimentos técnicos, mas compete ao paciente saber o que melhor se apresenta para sua própria qualidade de vida já que o maior interessado em sua saúde é ele próprio. É nesse sentido que se deu origem ao instrumento que melhor possibilita a realização deste princípio e de garantir que a integridade moral do sujeito seja preservada, o consentimento informado livre e esclarecido (Valls A, 2004, p. 143). Uma intervenção que não vislumbra o consentimento do paciente é considerada uma violação de sua autonomia e, por conseguinte, de sua dignidade e integridade moral.

24 Segundo Beauchamp existem três categorias de deveres prima facie: “1 – deveres para com os outros,

devidos a atos prévios do próprio, como fidelidade, reparação e gratidão; 2 – deveres para com os outros, não baseados em ações prévias como beneficências, não-maleficência e justiça; e 3 – deveres para com o próprio, como aprimorar-se física, intelectual e moralmente para alcançar o seu pleno potencial” (Figueiredo AR, 2006, p. 75).

Não-Maleficência

O princípio da não-maleficência tem suas origens no Juramento Hipocrático, seguido pelos médicos já há muito. Nesse princípio, está presente a necessidade e obrigatoriedade de primeiro não causar danos – primum non nocere – como orientação da conduta nos cuidados de saúde. Repousam nesse princípio regras como ‘não matar’ e ‘não ofender’, já que o ato de causar danos pode ser identificado como causar a dor, a morte ou incapacidade, embora outros tipos de danos, como sofrimento emocional infligido por outrem, ou atos que dificultam ou impossibilitam a realização dos interesse do indivíduo sejam também relevados, possuindo neste sentido, um caráter proibitivo (Petry F, 2004).

Beneficência

Também de origem hipocrática o princípio da beneficência – bonum facere – tem implicações práticas, uma obrigatoriedade de fazer o bem, sendo assim, é um princípio que reflete uma filosofia de ação. Embora o princípio seja de caráter obrigatório, o ato beneficente é de caráter facultativo e não cabem a ele sanções legais, contrariamente ao princípio da não- maleficência sobre o qual podem recair sanções se não cumprido (Figueiredo AR, 2006, pp. 88- 89; Petry F, 2004). Pode-se dizer que o princípio da beneficência é o principal objeto do paternalismo médico, e por isso, não raramente em conflito com o princípio da autonomia. Num contexto em que a autonomia do indivíduo é cada vez mais protegida, o princípio da beneficência implica fazer o bem, o que por vezes, está distante das vontades do paciente, podendo violar sua autonomia. Outra questão interessante a se pontuar que ilustra o conflito desses princípios: é o detentor dos conhecimentos técnicos quem verdadeiramente sabe o que deve representar o bem do paciente ou o próprio paciente? Contudo, cabe realçar que o respeito à autonomia não é ilimitada, pois não faz sentido um paciente, por exemplo, exigir quaisquer tipos de tratamentos que podem ser incompatíveis com a situação concreta.

Embora considerados como deveres fundamentais prima facie, e assim sendo, não se estabelece uma hierarquia entre os princípios, David Ross25, bem como outros autores, defende

25 Autor da obra The Right and The Good, obra que influenciou, em grande medida, Beauchamp e Childress

In Petry, Franciele Bete. Resenha Beauchamp, T.L. & Childress, J.F. Princípios de Ética Biomédica. (4ed.) São Paulo: Edições Loyola, 2002. Florianópolis, v.3, n.1, pp. 87-92, Jun 2004.

que o princípio da não-maleficência assuma uma norma de conduta em relação à beneficência, ao menos na teoria hipocrática (Figueiredo AR, 2006, p. 84).

Justiça

O princípio da justiça versa, sobretudo, sobre as implicações sociais em uma sociedade pluralista e democrática sem perder da questão o paciente fragilizado. A distribuição de recursos da saúde e sua justificação devem ocorrer segundo o princípio da justiça, por exemplo. A justiça, na principiologia, é entendida na sua dimensão distributiva imbuída de igualdade e equidade adequada às sociedades. Porém alguns conceitos da justiça, enquanto princípio, são elaborados segundo duas vertentes complementares. A primeira delas é arrimada na idéia aristotélica na qual iguais são tratados de forma igual e desiguais de forma desigual, prestigiando a elaboração formal. A segunda, a material, acontece perante os critérios da necessidade, mérito, esforço e trocas de mercado (Petry F, 2004).

Todavia resta questionar se tais princípios, apesar de sua elaboração mais atrelada ao contexto biomédico, havendo consideração moral apenas à dignidade humana, não seriam aplicáveis também ao âmbito global da bioética, levando em consideração não somente seres humanos, mas animais não-humanos, plantas e toda a Natureza em sua complexidade.

Com efeito, a frequente referência à dignidade humana na bioética e sua emergência advém das experimentações em seres humanos nos campos de concentração nazistas. Após o julgamento dos médicos e cientistas nazistas em Nuremberg, Alemanha, a sociedade se viu na urgente necessidade de regulamentar as experimentações humanas, de modo que a dignidade humana não fosse mais assaltada e de forma tão violenta (Nunes R, 2002, p. 9). Surgiu então, após o Julgamento de Nuremberg, proclamada pela Terceira Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Cabe destacar que as experimentações humanas não se limitaram aos campos de concentração nazistas, mas em muitos institutos e hospitais dos Estados Unidos puderam-se observar práticas como essas, por exemplo, o caso de Tuksgee, onde seiscentos negros foram utilizados como cobaias para o estudo da sífilis.

Em casos como o de Tuksgee, foram violados os princípios do respeito à autonomia, da beneficência, da não-maleficência e da justiça, assinalando uma completa afronta aos princípios

éticos. No entanto, os princípios expostos por Beauchamp e Childress entram em conflitos em alguns casos, que por sua vez precisam ser analisados individualmente, para que sejam tomadas as decisões e ações. A ponderação entre os princípios em conflito é envolvida por uma complexa rede de análises para sua aplicação.

As especificidades da Principiologia de Beauchamp e Childress não a tornam menos importante, mas ao invés, a tornam significante para o contexto em que será aplicada, revelando o pluralismo bioético. E por isso concorda-se com Melo (2007, p.40), quando diz que:

A profunda interligação existente entre o método e teoria bioética adoptados, bem como a realidade que é o pluralismo ético das sociedades contemporâneas, conduzem necessariamente à existência de uma multiplicidade de métodos em Bioética que são complementares na medida em que cada um deles capta uma parcela importante do universo ético sem a qual a perspectiva seria fragmentária e possivelmente incompleta (Melo H, 2007, p. 40).