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Críticas ao Igualitarismo de Rawls

5. ÉTICA ANIMAL

5.2. A Ética do Direito Animal

5.2.3. Críticas aos deveres indiretos

5.2.3.1 Críticas ao Contratualismo

5.2.3.1.2. Críticas ao Igualitarismo de Rawls

O descaso relativamente aos interesses do outro, presente na teoria de Narveson, rendeu- lhe sérias críticas pela sua arbitrariedade. Dentro desta perspectiva de Hobbes e Narveson, como

69 Regan afirma que uma das considerações a se tecer sobre o contratualismo hobbesiano, endossado por

Narveson, seria a respeito da discriminação arbitrária entre as pessoas, a exemplificar o racismo: “Se imaginarmos que uma grande maioria de potenciais contratantes (digamos 95%) são brancos, e os restantes negros, não é obviamente irracional para os que compõem a maioria excluírem os membros da minoria da negociação do contrato. Talvez a maioria possa concordar em manter a minoria sob repressão como escravos, se entender que é melhor para os interesses racionais dos indivíduos que a compõem. Que tal acordo seria injusto é tão óbvio que não parece carecer de argumentos” (Regan T, 2004a, p. 136).

referido acima, o sujeito tem conhecimento de peculiaridades a seu respeito – por exemplo, gênero, raça, status social etc – o que lhe proporciona ciência dos seus próprios interesses. Diferentemente de Narveson, Rawls, expõe uma forma de contratualismo em que existe menor arbitrariedade no que concerne à consideração moral dos seres humanos. Rawls propõe que essas especificidades mencionadas sejam deliberadamente ignoradas pelos sujeitos, imergindo num ‘véu de ignorância’ que assim é descrito por ele:

[...] entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. Eu até presumirei que as partes não conhecem suas concepções do bem ou suas propensões psicológicas particulares (Rawls J, 2000, p. 13).

Deste modo, quando Rawls assim propõe o que ele chama de ‘posição original’, impossibilita que um indivíduo possa deliberar sobre seus interesses próprios baseados em sua raça, condição social, e outros atributos aleatórios (Regan T, 2004a, p. 137). Argumento este que responde às diversas críticas apresentadas ao contratualismo de Hobbes e Narveson.

Segundo Regan (1989), muito embora John Rawls tenha amenizado a arbitrariedade do contratualismo, em sua teoria não existem quaisquer deveres diretos de justiça para com aqueles que não têm senso de justiça na percepção de Rawls – crianças, adultos com deficiência mental, idosos incapazes de discernimento. Sendo a justiça o primado da teoria de Rawls, é incoerente que exponha em certa medida a desconsideração de alguns grupos humanos (Regan T, 1989, pp. 107-108). Para Rawls (2000, p. 294) a base da igualdade humana é delineada pelo seu conceito de ‘pessoa ética’, que corresponde àqueles que são capazes de racionalmente expressar sua concepção de bem e capazes de discernir minimamente aquilo que é justo ou não e aplicar tais princípios agindo conforme estes determinam, mesmo que de forma basal. Ora, assim Rawls explicitamente determina que somente aos agentes morais se prestam deveres diretos de justiça. O paciente moral, mesmo que humano, não será igualmente considerado70. Mas repare que os

70 Regan relata que na publicação de Rawls ‘The Sense of Justice’, Philosophical Review 72, a passagem “ser

capaz de em pelo menos um grau mínimo, ter senso de justiça é condição necessária e suficiente”, explicita que para ser designado como objeto dos deveres diretos é preciso ser agente moral. Rawls contrapõe as críticas a esse respeito argumentando que é condição suficiente e – parece ser – necessária, ser agente moral para ser diretamente considerado. Argumento que, obviamente, não satisfez os críticos a essa passagem (Raws J, 1963, p.284 apud Regan T, 2004b, pp. 164-165).

deveres mencionados acima, tanto diretos quanto indiretos, são referidos à justiça, o que é importante apreciar. Na obra de Rawls (2000) há argumentos que podem sugerir a existência de certos deveres para com animais no sentido de não lhes infligir atos de crueldade, o que seria de fato um grande mal, principalmente quando espécies inteiras são dizimadas.71 Pressupõe-se então

um dever indireto de não se empregar imensas crueldades aos animais e de não colocar em risco a biodiversidade. Ainda assim, como Regan (2004b, pp. 165-167) destaca na obra de Rawls, “[...] parece que não é requerido ao agente moral qualquer dever de justiça para aqueles que não são agentes morais” 72.

Rawls (2000, p. 122) também fala em ‘deveres naturais’ (nature duties) como princípios para o indivíduo e Regan (2004b, p. 167) destaca dois desses deveres que são considerados mais relevantes para o que vem sendo discutido aqui, o ‘dever natural’ de não ser cruel e o dever da justiça73. Rawls (2000) declara que os deveres naturais acontecem entre pessoas morais em passo

de igualdade e como animais não são pessoas morais – em sua perspectiva – ‘não parece’ haver qualquer tipo de dever de justiça para com eles. Nesse sentido Regan (2004b, p. 167) releva a seguinte incongruência presente na teoria de Rawls: (1) parece existir o dever de não ser cruel com os animais, apesar de eles não serem pessoas morais em sua perspectiva (2) existem apenas deveres naturais – incluindo o dever de não ser cruel – em relação às pessoas morais, excluindo os animais. Regan (2004, p. 167) afirma que Rawls não se posiciona precisamente, levantando a dúvida: ser pessoa é consideravelmente importante ou não para se ter o direito de não ser tratado com crueldade? Rawls (2000) dá a entender que ser pessoa não é o critério fundamental quando se trata do dever de não ser cruel, mesmo que os animais não manifestem uma reciprocidade satisfatória; entretanto não há dever de justiça para com os animais, uma vez que Rawls (2000) admite claramente que é preciso ser pessoa para lhe ser devida tal obrigação moral.

É possível afirmar que os pacientes morais humanos, que provavelmente não possuem senso de justiça, sejam resguardados pela proposta da ‘posição original’ de Rawls, mas faz-se necessário colocar que não o são diretamente. Regan (2004b, pp. 170-173) demonstra que existe certa consideração aos pacientes morais humanos pela avaliação racional dos interesses próprios dos agentes morais. Para melhor explicar, recorda-se que os agentes morais quando em ‘posição original’ não têm conhecimento da sua classe econômica, raça, gênero, ou mesmo da sua

71 “It does not follow that there are no requirements at all in regard to them [pacientes morais, nos quais

falta senso de justiça incluisive os animais ...] Certainly it is wrong to be cruel to animals an the destruction of whole species can be a great evil” (Rawls J, A Theory of Justice, p.512, apud Regan T, 2004b. p. 166).

72 “It does seems that we are not required to give strict justice” (Rawls J, A Theory of Justice apud Regan T,

2004, p. 166).

integridade física ou cognitiva nas circunstâncias reais, logo, ao defender na ‘posição original’ uma série de direitos morais para os pacientes morais humanos, os agentes morais estão salvaguardando a si próprios, uma vez que poderão eles mesmos manifestar, ou virem a adquirir ao longo de suas vidas em circunstâncias reais, deficiência física ou mental e por certo gostariam de ter seu bem estar preservado (Regan T, 2004b, pp. 170-171). Já que os agentes morais em ‘posição original’ sabem que nascerão humanos, também sabem que em determinada fase da vida serão crianças, logo, destituídas de plena autonomia e autoconsciência e, assim, também quererão que as crianças tenham direitos morais, para não mencionar os interesses emocionais descritos em Narveson (Regan T, 2004b, p. 171). Por isso, Regan (2004b, p. 171) conclui que aqueles que se encontram na posição original de Rawls têm razões de interesses próprios para defender deveres de justiça a pacientes morais humanos, entretanto em relação aos animais as razões são arbitrárias e contingentes.

Desta forma, a teoria de Rawls iguala-se à de Hobbes e Narveson quanto ao estatuto moral dos animais, pois apesar de imersos no ‘véu de ignorância’, Rawls permite que os contratantes saibam que nascerão no mundo em uma sociedade e que nesta sociedade nascerão humanos e nesse sentido, o fato de ser humano alicerça a discriminação dos animais não- humanos. Quando avaliado apenas este fato já revela uma razão arbitrária para os contratantes assumirem em relação aos animais, apenas deveres indiretos, discriminadamente (Regan T, 2004a, p. 137).