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Raízes e fundamentos da tradição antropocêntrica

4. TRADICIONALISMO ÉTICO: UMA APRECIAÇÃO DOS FUNDAMENTOS

4.2. Antropocentrismo

4.2.1. Raízes e fundamentos da tradição antropocêntrica

A ética tradicional centrada no ser humano é consensualmente vista como principal componente das causas do grave desequilíbrio ambiental que se tem acompanhado, e da grande insensibilidade perante os animais não-humanos. O Homem, como centro de todas as coisas ao longo da história da racionalidade humana, reduz a existência do mundo natural e criaturas não humanas a uma existência em função das suas necessidades e preferências; este Homem que julga ter sua supremacia respaldada nas palavras de Deus38.

A filosofia tradicional ocidental desde seus primórdios promulga uma ética exclusivamente humana. Contudo, é inicialmente com Aristóteles (384-322 a.C.) e adiante com Francis Bacon (1561-1626) e Descartes (1596-1650) que se vê o ser humano como senhor do mundo (Almeida A, 2007, p. 31).

A influência do pensamento aristotélico é duradoura e está claramente presente na idéia que se tem hoje de que a Natureza e os animais não-humanos são concebidos para usufruto humano. Veja que para Aristóteles (1989, p. 4) é natural e conveniente que o superior se sobreponha ao inferior, e errado e prejudicial se não desta maneira. Como argumentos para essa lógica as dicotomias de Aristóteles (1989, p. 4) rondam a idéia do domínio do que ele julga superior sobre o que ele julga inferior. Daí que ele assuma que de igual modo a alma (superior) está para o corpo (inferior), ou seja, alma dominando o corpo; o homem (gênero masculino, nativo, livre e possuidor de bens39) sobrepõe-se sobre outros homens (estrangeiros, escravos, sem posses), mulheres, animais e todas outras criaturas e entidades naturais, que naturalmente são escravos do primeiro. Assim, a racionalidade rege o impulso ou o que quer que seja selvagem e desta forma a superioridade do Homem se estabelece sobre a Natureza. Aristóteles (1989, p. 5) ainda fundamenta a dominação do ser humano sobre a Natureza e outros seres vivos, pela a similaridade com que se revestem seus meios de vida. Por exemplo, as plantas e outros animais inferiores servirão de alimento para os animais que acabam de nascer (para além do leite materno, no caso de mamíferos), pois uns – plantas e outros animais inferiores – existem para servir os

38 A discussão da influência da doutrina judaico-cristã no pensamento antropocêntrico será discutida

adiante.

animais superiores. No caso dos humanos não é diferente, quando para sua subsistência se utilizarem de outros animais – tanto domésticos quanto selvagens – e plantas para alimento e para proverem-se de roupas e outros instrumentos. Nesse sentido, na visão de Aristóteles, o ser humano faz com que outras entidades cumpram suas funções de servi-lo. Aristóteles (1989, p. 5) conclui dizendo que “[...] se a Natureza nada faz de forma incompleta e em vão, a inferência deve ser de que ela [a Natureza] criou todos os seres vivos em função do homem”.

Entretanto, é somente com Bacon e Descartes que a racionalidade humana assume proporções decisórias no desenvolvimento do cientificismo moderno (Almeida A, 2007, p. 34). A revolução científica não se resume obviamente a poucos nomes, mas é certo que se pode citar aqueles que representam maior importância para o movimento. Grün (1996, p. 28), como outros autores, menciona dois desencadeadores da revolução científica: Galileu (1564-1642) e Newton (1642-1727). Conforme Almeida (2007, p. 34), a ciência, até então, limitava-se a uma abordagem naturalista, quase descritiva, e daqui para frente, a ciência se torna “[...] libertadora dos constrangimentos da natureza humana (doenças, sofrimento, morte prematura, pobreza etc) [...]” e que só a partir da razão se deu como possível. Segundo Grün (1996, p. 28), Galileu lança um novo olhar sobre a ciência no qual postula que esta deve se restringir ao estudo da mecânica de maneira matemática e assim implicando em uma “perda da sensibilidade estética, dos valores e da ética”.

Bacon, cientista, filósofo e político, em sua obra ‘Nova Atlântida’ (1627) cria uma sociedade onde a ciência é o primado de todo o conhecimento e as investigações, sem limites, buscam um “[...] alargamento das fronteiras do império humano para realizar tudo que é possível” (Bacon F, [1627] 1976, p. 60 apud Almeida A, 2007, p. 33). É impossível não relacionar sua obra com as polêmicas descobertas científicas que se empreendem hoje – como a manipulação genética, a vivissecção, fabricação de químicos antinaturais, a produção animal industrial (Almeida A, 2007, p. 33). Contudo, o projeto de Bacon não legitima tais práticas, e ele se manteve omisso em sua obra quanto ao fracasso decorrente de eventuais consequências negativas dos empreendimentos dessa nova sociedade (Almeida A, 2007, p. 33). A humanidade, na ótica de Bacon, seria privilegiada através do trabalho dos cientistas, mas é interessante reparar que o discernimento do bem e mal não cabe senão à iluminação divina (Almeida A, 2007, p. 33). Ora, Bacon apesar da obra em prol da ciência não esconde sua filiação judaico-cristã (Grün M, 1996, pp. 31-32). Assim, a ‘Nova Atlântida’ cinde seres humanos e Natureza, quando esta é claramente objeto de instrumentalização humana, torturada e violentada, forçada a ceder conhecimento aos Homens.

É, contudo, com Descartes, em sua principal obra, ‘O Discurso do Método’ (1637) que surge a visão fragmentadora cientificista que impera nos moldes das sociedades contemporâneas. Pelizzoli (2003, pp. 18-19) explica que para Descartes o todo é a soma de partes justapostas, os fenômenos naturais são reduzidos a fórmulas matemáticas, fundamento de toda base científica atual. Grün (1996, p. 35) complementa que, assim, a Natureza é transformada em objeto e então a “razão cartesiana pressupõe a divisibilidade infinita do objeto”. Para Descartes, Deus criou as leis da Natureza, mas salienta que os processos no mundo acontecem sem intervenção divina, o que o possibilita compreender cientificamente o mundo natural sem casualidades (Almeida A, 2007, p. 33). E, portanto, sustenta o pensamento de que tudo que seja constituído por matéria é conduzido pelos chamados princípios mecânicos, de tal maneira como um relógio.

Não seriam também os seres humanos constituídos de matéria? Entretanto, o Homem, segundo Descartes (1989, p. 16), é o único ser dotado de alma40:

De fato nenhuma das nossas ações externas pode mostrar a qualquer um que as examina que nosso corpo não é apenas uma máquina autômata, mas contém uma alma com pensamentos, com a exceção de palavras ou outros sinais que são relevantes a determinados tópicos sem que expresse qualquer paixão.

Assim, o ser humano, em sua ótica é um ser espiritualizado possuidor de “pensamento consciente, sentimentos e vontade”, o que o difere das diversas outras coisas que existem no mundo – o que em sua visão, inclui todos os seres vivos e o ambiente natural de uma forma geral – que por não possuírem qualquer tipo de racionalidade, são matérias inconscientes, desprovidos de consideração e, logo, instrumentos de livre manipulação (Almeida A, 2007, p. 34). É curioso reparar que Descartes realizou experimentações em animais, o que o permitiu estudar e de certa forma compreender a anatomia, a mecânica, e os sentidos dos mesmos, e destacar certa verossimilhança entre o corpo humano e os corpos de alguns animais não-humanos (Descartes R, 1989, pp. 13-18). E ainda assim, Descartes (1989, p. 13) foi capaz de concluir que, diferentemente dos humanos, os animais são autômatas, isto é, máquinas que por assim ser, não sentem dor nem prazer e que, de certo, não são movidos pelo livre arbítrio ou pelo conhecimento como é o Homem, mas sim pela disposição de seus órgãos e outros fatores externos. Os gritos, gemidos, Grünhidos e outras reações que estes demonstram ao seres afligidos não passam de

40 In fact none of our external actions can show anyone who examines them that our body is not just a

self-moving machine but contains a soul with thoughts, with the exeption of words, or other signs that are relevant to particular topics without expressing any passion. In: Descartes R, 1989, p. 16.

ruídos em função do atrito de um objeto contra outro (Descartes R, 1989). É a razão humana, os pensamentos conscientes e a linguagem que especialmente determinam que os seres humanos têm alma, e insiste em afirmar, apesar de imensas críticas, que animais e a própria Natureza não passam de máquinas. Um célebre trecho em particular define bem sua interpretação do papel do Homem frente à Natureza:

Conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam tão distintivamente como conhecemos as diversas profissões dos nossos artesãos, poderíamos da mesma maneira utilizá-los para todos os usos que lhes são próprios e, assim, tornarmo- nos senhores e possuidores da natureza (Descartes R, [1637] 1977, p. 82 apud Almeida A, 2007, p. 34).

O contributo de Descartes para o antropocentrismo através de uma interpretação dominadora do ser humano não somente ante o ambiente natural, mas ante toda ‘criação de Deus’, é claramente observado em suas fundamentações, mas é de interesse salientar que Descartes, apesar da dedicação às experimentações científicas, também tem sua formação imbuídas de caracteres da doutrina cristã, como a ausência de alma imortal nos animais e o ser humano senhorio absoluto da Natureza e de todas as criaturas do Planeta.

Como se vê, as idéias baconiana e cartesiana possibilitaram a aceitação de uma Natureza instrumental no sentido de promover uma melhor qualidade de vida humana, contudo não se pode deixar de levar críticas aos seus pensamentos. Contudo, alguns autores não acreditam ser justo atribuir-lhes toda a culpa pela marginalização do ambiente natural, já que a revolução científica não se deve a eles somente, mas, outrossim, a precedentes como Galileu, e também muito ao Iluminismo por ter representado com ainda mais afinco o primado da racionalidade humana. (Almeida A, 2007, p. 34). O mesmo se pode dizer de Aristóteles e algumas de suas idéias que exercem certas influências positivas na contemporaneidade, contudo foi preciso abreviar certas condições de seus pensamentos que refletiriam hoje ideologias escravagistas, machistas e xenofobistas.

Mas como Almeida (2007, p. 35) reforça, o discurso anticiência não parece ser o caminho para as incongruências que se encontram no âmbito da crise ambiental e da relação que o ser humano tem com outros animais, uma vez que essa mesma ciência vem dando provas da atual crise e clarificando as suas possíveis consequências.

4.2.2. A perspectiva judaico-cristã: do tradicionalismo a uma nova compreensão da