• Nenhum resultado encontrado

Críticas aos deveres diretos

5. ÉTICA ANIMAL

5.2. A Ética do Direito Animal

5.2.4. Críticas aos deveres diretos

Para Regan, qualquer que seja a teoria ética adotada deve ao menos se compor de obrigações diretas para com os animais não-humanos. Embora assim se considere, algumas teorias relativas aos deveres diretos não se apresentam na sua forma mais adequada segundo Regan. Nesse sentido, Regan elenca algumas teorias pontuais que expressam maior significância para serem analisadas. Teorias que consideram diretamente os animais, porém pecam em suas especificidades, no entender de Regan.

5.2.4.1. Crítica à teoria da “Crueldade-Bondade” (Cruelty-kindness view)

Já foi referido nas teorias dos deveres indiretos que existe um senso, até mesmo moral, de que não se deve afligir os animais. John Locke assume que se deve ter cautela com a maneira com que os animais são tratados, implicando, de certa forma, deveres diretos em relação aos animais. Ainda que não claramente adote essa idéia, sugere que quando o ser humano é cruel com um animal, existe uma inclinação de este ser humano ser cruel com membros de sua própria espécie. Isto é, quando este parece sentir prazer em tratar violentamente um animal qualquer, ele não estará apto a ser compassivo e benevolente para com outros seres humanos (Regan T, 2005, p. 40). Kant, por exemplo, também acredita que não se deve ser cruel com animais, não obstante, apenas para não fomentar a crueldade entre os seres humanos. Essa maneira de se considerar os animais está claramente voltada para o reflexo que esta pode inferir sobre os seres humanos. Mas ainda assim a proibição de atos cruéis para com os animais faz entender o que não se fazer com eles.

No entanto, na teoria da ‘crueldade-bondade’, a consideração que se tem pelos animais é de ordem direta, isto é, não se deve afligir-lhes por consideração a eles mesmos e não tão somente aos humanos (Regan T, 2004b, pp. 195-196).

A presente teoria revela dois aspectos a serem considerados: o primeiro, a crueldade, referente à conduta negativa, ou seja, o que não deve ser feito aos animais; o segundo, a bondade referente à conduta positiva, sobre como os animais devem ser tratados. Mas parece ser, àqueles que defendem essa teoria, suficiente acreditar, segundo Regan (2004b, p. 176) assume, nas seguintes hipóteses: a) de que os seres humanos têm deveres diretos positivos e negativos em relação aos animais e b) de que tais deveres se adequam, respectivamente, em mostrar-se gentil e proibir a crueldade no tratamento dispensado aos animais. Contudo, essa teoria não satisfaz, moralmente, tendo em conta a consideração dos animais.

A palavra crueldade existe tanto para se designar um ato individual quanto para definir o caráter de alguém (Regan T, 2005, p. 40). E partindo desta afirmação verifica-se que se alguém age cruelmente uma única vez não significa que ela seja definida como uma pessoa cruel74. No entendimento de Regan (2005, p.40), é importante distinguir entre ser cruel e causar dor, visto que este último nem sempre corresponde a um ato cruel75, mas causar dor e sofrimento a outrem e apreciar, pode ser considerado cruel (Regan T, 2005, p. 41). Portanto, existe mais de uma maneira de ser cruel. O sadismo, ou seja, manifestar crueldade e apreciá-la parece bem representar o sentido mais amplamente referido de cruel (Regan, 2004b, p. 197).

Entretanto, para Regan, a abstenção de crueldade em um determinado ato não significa, isoladamente, que o ato seja correto. Note que se a abstenção de crueldade sopesar como argumento para um comportamento correto ou não, esta poderá assumir-se como contraproducente. Para ilustrar, se um animal é utilizado em uma experimentação na qual lhe foi infligida dor, não se pressupõe que a pessoa que provocou a dor o fez prazerosamente. Sendo assim, o ato poderia ser considerado correto, por não ser um ato imbuído de crueldade sádica, uma vez que não houve apreciação em causar dor (Regan T, 2005, p. 41). Portanto a ‘não- crueldade’ não pode ser argumento para se balizar um comportamento eticamente aceitável.

Regan vai ainda mais longe ao afirmar que ser benevolente não significa, também isoladamente, ser correto em suas ações. Da mesma maneira que a abstenção de crueldade

74 “Muitas pessoas que praticam o aborto, por exemplo, não são cruéis, nem pessoas sádicas. Mas o fato,

isoladamente, não liquida a terrível dificuldade da questão da moralidade do aborto. O caso não é diferente quando se examina a ética do tratamento dos animais” (Regan T, 1989, p. 108).

75 Dentistas provocam dor, em diversas ocasiões, em seus pacientes, da mesma forma que um cirurgião ou

avaliada acima não é suficiente para aferir legitimidade a um comportamento, ser bondoso também não basta. A bondade não existe separadamente de outras atribuições que se pode conferir a um ser humano. Veja que uma pessoa racista poderá ser igualmente uma pessoa generosa e bondosa. Sua generosidade, por exemplo, poderá favorecer aqueles por quem tem afinidades raciais em detrimento de outras. O ato em si é generoso, porém enraizado na injustiça, indicando um desvirtuamento moral (Regan T, 1989, p. 108). Portanto, Regan (1989, p. 108) sugere que sejam encorajadas as ações que sejam a favor da bondade e contra a crueldade, mas que não sejam o argumento determinante para um comportamento correto ou não, pois apresentariam falhas em sua base, tornando-as insatisfatórias e arbitrárias.

5.2.4.2. Críticas ao Utilitarismo

Ao contrário do que se pensa, o utilitarismo também não satisfaz as exigências que faz Regan para uma defesa adequada dos animais não-humanos, por isso também levanta sérias críticas ao utilitarismo tanto na sua vertente hedonista como a preferencial de Peter Singer.

Na ética utilitarista de Bentham, (1823, p. 236), quando suscita: “A questão não é, podem eles raciocinar? Nem podem falar? Mas, podem sofrer?” refuta a capacidade linguística e a racionalidade enquanto critério para atribuição de consideração moral, lançando a senciência – a capacidade de experimentar dor e prazer – como o critério condicional e suficiente para se ter interesses. A crueldade não deve ser infligida aos animais não por estar fomentando crueldade contra a humanidade, mas porque eles sofrem (Regan T, 2004a, p. 140). Por isso, o tratamento que é prestado aos animais não-humanos a partir dessa ótica, é porque aos animais é devido tal tratamento, ou seja, existe por parte dos seres humanos o dever direto de não causar dor e sofrimento aos animais.

O utilitarismo pode ser visto tendo em conta dois aspectos fundamentais: o primeiro é o igualitarismo, no qual existe igual consideração do interesses a todos aqueles seres sencientes, independente do sexo, raça e até mesmo espécie; o outro aspecto se refere ao princípio básico utilitário, no qual reside a idéia do bem – ou prazer, satisfação – promovido em proporção tão maior à do mal – dor, frustração – a todos aqueles sencientes afetados. É precisamente nestes dois princípios sobre os quais recai a moralidade utilitarista (Regan T, 1989, p. 109).

Esse forte igualitarismo é o que caracteriza o utilitarismo hedonista em que o prazer de todos os seres sencientes, bem como o sofrimento, tem igual valor. Mas apesar do utilitarismo ter

contribuído de forma inquestionável para o bem estar animal, apresenta algumas objeções que são levantadas por Regan (2004b, p. 202).

A primeira questão que se coloca é em relação a tirar uma vida. Para a maioria das teorias éticas causar danos a outrem bem como tirar uma vida é considerado, de maneira clara, como moralmente errado, principalmente quando se fala em agentes morais. Para o utilitarismo hedonista tirar uma vida pode ter implicações morais, mas sob certas circunstâncias. O que importa primariamente é que agentes morais sentem dor como qualquer outro indivíduo e nesse sentido é errado infligir-lhes dor, entretanto, não necessariamente errado tirar-lhes a vida. Sendo os agentes morais seres sensíveis e dotados de racionalidade é sabido por eles que suas vidas não durarão para sempre, e como consequência disso, muitos sofrem com ansiedades, temores e outras perturbações emocionais. Tirar-lhes a vida, apesar de ser o bem mais precioso que possam ter, por outro lado, estaria eliminando as emoções que os perturbam repercutindo de forma assombrosamente positiva. Contudo as implicações morais mais sérias advindas de matar alguém não estão diretamente relacionadas àquele cuja vida foi retirada, mas sim àqueles que sobreviveram. Estes sim, ao verem seu vizinho assassinado, sabendo das possibilidades de perderem suas vidas a qualquer instante, estarão sujeitos a sofrimentos intermináveis. Portanto, para o utilitarismo hedonista, tirar a vida de um agente moral é, sobretudo, errado pelo mal que causa aos sobreviventes e não àquele que foi morto (Regan T, 2004b, pp. 202-204).

Nessa medida, se é assim que o utilitarismo hedonista tem em conta os agentes morais em relação a tirar-lhes a vida, pode-se imaginar a consideração que se tem para com os pacientes morais. Bentham, em passagens de sua obra, afirma que se um animal está sob intenso sofrimento, sua morte pode ser antecipada no sentido de proporcionar-lhe o fim de tal sofrimento, uma vez que a morte é iminente a todos os seres vivos. Contudo, sabe-se que não somente animais não-humanos são pacientes morais, mas também crianças, bebês, os mentalmente debilitados, e até mesmo idosos em certas condições (Regan T, 2004b, pp. 204- 205). No entender de outras teorias éticas, sobretudo aquelas de caráter antropocêntrico, práticas como esta supracitada tem gravíssimas implicações morais. Entretanto, em relação a tirar a vida de animais não-humanos, a ética utilitarista hedonista não parece, primariamente, contra- argumentar, desde que os sofrimentos sejam suplantados e evitados.

É importante, entretanto, tecer uma relevante consideração. Até o momento, os interesses tanto positivos (satisfação) quanto negativos (frustração) daqueles que serão afetados por uma decisão, são tidos em consideração, isto é, importa para a tomada de decisões se os interesses de um indivíduo serão satisfeitos ou frustrados. Importam sim, moralmente, os interesses do indivíduo, suas experiências; no entanto, o indivíduo em si tem pouca relevância moral. Isso

acontece, pois o indivíduo é reconhecido pelo utilitarismo como um receptáculo de interesses, o que importa moralmente não é o indivíduo em si mesmo, mas aquilo que se passa com ele, ou seja, seus interesses, suas experiências. O que, para Regan, certamente gera um problema (Regan T, 2003, p. 60).

Existe ainda a teoria ética de Peter Singer, por ele chamada de ‘utilitarismo preferencial’. Este tece uma argumentação que leva em conta não somente as experiências do indivíduo, mas também, suas preferências. Pois, para além dos interesses do momento, do agora, certos indivíduos têm preferências, por exemplo, em continuar vivendo. Nesse sentido tirar a vida desse indivíduo que tem projeções futuras manifestadas por preferências, seria considerado moralmente errado, o que contraria o utilitarismo clássico hedonista (Regan T, 2004b, pp. 206-207).

Singer afirma que esse desejo ou preferência em estar vivo do que perder a vida é condição suficiente e também necessária para consideração moral. Regan (2004b, p. 207) sugere que foi um erro Singer ter considerado a preferência como necessária para consideração moral. Pressupõe-se nítida complexidade cognitiva que permita que o indivíduo possa estabelecer comparações entre sua existência e sua não-existência. Característica associada aos agentes morais. Torna-se, contudo, nebuloso quando os pacientes morais ou aqueles que não podem prever uma possível condição de não existência entram em jogo. Alguns animais, por exemplo, de fato, lutam para continuarem vivos, mas isso não revela claramente que eles manifestam inteligibilidade suficiente para compreender sua mortalidade – ou seja, que ele pode deixar de existir algum dia.

Em contrapartida, segundo Regan (2004b, p. 208), Singer acerta em dizer que é errado tirar a vida daqueles seres autoconscientes, isto é, aqueles em que se pode constatar manifestação de preferências e desejos, contudo peca ao afirmar que é errado tirar-lhes a vida em consideração às suas preferências e não em consideração ao indivíduo em si. Isso acaba por não contrariar o utilitarismo hedonista, que considera os indivíduos como receptáculos substituíveis. Singer afirma que indivíduos auto-conscientes não podem ser substituíveis, entretanto, como se trata de uma versão de utilitarismo, mesmo o preferencial, parece haver uma contradição. Regan (2004b, p. 209) diz que se um indivíduo que tem mais preferências frustradas que satisfeitas é morto, e assim substituído por outro indivíduo que tenha mais preferências satisfeitas que frustradas, está-se cumprindo uma necessidade do utilitarismo: a soma dos bens (satisfações totais) sobrepujar a soma de males (frustrações totais). Desta forma, de acordo com Regan (2004b, p. 210), o que difere o utilitarismo preferencial do hedonista é que para além das experiências de prazeres e sofrimentos, existem as preferências a serem satisfeitas.

Contudo, para Regan a tese igualitário-utilitarista de Singer, ou seja, a comunhão do princípio da ‘igual consideração de interesses semelhantes’ e o princípio da ‘utilidade’, tem aspectos implausíveis que não deixaram de ser notados por ele. No entender de Regan (2004b) existe certa impossibilidade de conciliá-los na medida em que ambos os princípios, em certas circunstâncias, podem até mesmo contrariar-se: se a utilidade busca maximizar os bens em detrimento dos males, a igualdade poderá ser sacrificada em nome da utilidade. Mesmo Singer não afirma que o princípio da utilidade pressupõe o da igualdade; e também não demonstra que intervenções que violam o princípio da igualdade consequente e simultaneamente violam o princípio da utilidade.

O utilitarismo, após muito considerado, acaba revelando contradições em seu seio que implicam em sacrificar certos direitos individuais fundamentais tendo em vista um bem maior coletivo, sem reconhecer claramente um limite para tal. Isso é, sobretudo, o que dá sustentação à principal crítica que se faz ao utilitarismo. Regan (2004a, p. 144) salienta: “[...] o respeito pelo direito dos indivíduos é um princípio que não deveria ser comprometido em nome de se atingirem maiores benefícios para terceiros”.