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A Bioética de Fritz Jahr e o Imperativo Bioético

3. BIOÉTICA

3.3. A Bioética de Fritz Jahr e o Imperativo Bioético

Em 1927, foi publicado um artigo no influente periódico alemão Kosmos intitulado Bio=Ethik Eine Umschau uber die ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und Pflanze 26 [‘Bioética: uma revisão do relacionamento ético entre humanos, animais e plantas’]. O autor do referido artigo, Fritz Jahr (1927), pastor protestante, filósofo e educador27, definiria a bioética hoje como “o estudo sistemático do comportamento do ser humano na área das ciências da vida, de seu compromisso moral pessoal, profissional e público e de sua conduta em relação a todas as formas de vida, na medida em que essa conduta é examinada à luz dos valores morais e princípios” (Sass HM, 2007a, p. 282 ).

Mas foi recentemente que o artigo de Jahr foi (re)descoberto. Em 1997 pelo Prof. Rolf Löther, da Universidade de Humboldt, Alemanha, em uma de suas palestras. Mas foi a Profª. Eve Marie Engel da Universidade de Tubingen, também na Alemanha, quem fez a divulgação e citação do referido artigo.

Jahr, até então, foi o primeiro a utilizar a palavra bioética. Interessa ainda salientar o sentido amplo com que Jahr empreende o termo na época, ressaltando a obrigação ética não somente para com seres humanos, porém em relação a todos os seres vivos (Goldim JR, 2006).

De fato, os estudos comparativos zoológicos, anatômicos e fisiológicos que realçam as semelhanças fundamentais entre os humanos e outros animais influenciaram em grande medida a inserção dos animais no âmbito da pesquisa humana bem como estudos comparativos referentes às almas dos animais humanos e não-humanos evidenciados pela psicologia moderna. Já é possível vislumbrar até mesmo uma psicologia das plantas, embora seja assunto ainda ofuscado. Mesmo assim, as plantas são objetos de estudos comparados, revelando uma extensão das ciências na esfera das pesquisas (Jahr, 1927).

A respeito, o filósofo Rudolf Eisler usou o termo Bio-Psicologia (Bio-Psychics) para caracterizar o âmbito científico que estuda a alma28 dos seres vivos, sua vontade de viver (Sass HM, 2007b). Jahr (1927, p. 3) faz alusão a essa terminologia que, com efeito, o influenciou, uma

26 “Bioética: uma revisão do relacionamento ético entre humanos, animais e plantas” Jahr, F. (1927).

Bio=Ethik. Eine Umschau uber die ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und Pflanze. Kosmos 24, pp. 2-4.

27 Sass HM. (2007a). Fritz Jahr’s concept of bioethics. Kennedy Institute of Ethics Journal 17, pp. 279-

295.

28 Entende-se por alma neste contexto, a vontade de viver que há em tudo que está vivo, aquilo que faz

vez que para ele as pesquisas da bio-psicologia reforçam ainda mais a proximidade entre todos o seres vivos, razão pela qual afirma que da “Bio-Psicologia (Bio-Psychik) se está a um pequeno passo da Bioética (Bio-Ethik)”, isto é, da aceitação das semelhanças fundamentais à aceitação das obrigações morais perante todos os seres vivos e não somente perante o ser humano.

No entanto, apesar de ser a primeira vez que se usava a palavra bioética com o sentido de respeitar todos os seres vivos e não somente seres humanos, o precursor desse pensamento bioético, na cultura ocidental moderna, foi o missionário Albert Schweitzer (1875–1965), quando publicou Ethics of Reverence for Life [Ética da Reverência pela vida] em 1923, que além de influenciar Potter e Leopold, possivelmente tenha influenciado Jahr.

Entretanto, Jahr (1927) faz notar que esse tipo de ideário que se manifesta pela vida em todas as suas formas é tão antigo quanto a própria idéia de espiritualidade humana. Veja que em tradições milenares da cultura indiana, é possível constatar vertentes tão rigorosas que até mesmo microrganismos, junto a plantas e animais, devem ter suas vidas consideradas com relevância não inferior às dos humanos. Entre muitas das implicações desse ideário, uma alimentação vegetariana isenta de subprodutos animais é indispensável.

Não é preciso ir tão longe para compreender tal ideário, pois está presente mesmo na tradição judaico-cristã através de São Francisco de Assis (1182-1226) que manifestava seu profundo amor perante todas as criaturas vivas.

Desde o Romantismo, também na vida intelectual da cultura européia, surgiram pensamentos que também endossam essa ideologia, reafirmando que todo ser vivo merece certa consideração moral, e suas vidas não devem ser estilhaçadas inutilmente. Jahr (1927) coloca que pautando a igualdade de direitos, os seres humanos, os animais e as plantas deveriam ser respaldados igualmente, mesmo que esses direitos fossem limitados aos seus interesses. Ora, não faz sentido dar direito ao casamento para um chipanzé, se o casamento não tem qualquer importância para ele. Portanto, Jahr já apontava a diferença entre os direitos que poderia ter um ser humano e um animal. O direito à vida, por exemplo, parece ser compartilhado por todos os seres vivos, uma vez que a vida que têm é o maior bem que possuem. Enquanto que o direito ao casamento, ou à propriedade não fazem sentido para outros seres vivos senão para seres humanos. Embora Jahr remetesse a espécie humana ao topo da consideração moral, não parece ter abarcado profundamente em sua teoria quando os direitos fundamentais de igual relevância – como a vida, por exemplo – entravam em conflito. Autores da contemporaneidade se debruçam mais acentuadamente sobre o tema, tantas são as respostas como diversas são as teorias, tendo em vista cada autor e sua vertente ética.

3.3.1 Imperativo Bioético

A visão diferenciada de Jahr considerava importante respeitar os animais. Ainda que sensível, sua visão não nega a instrumentalização dos animais tendo em conta sua utilidade. No seu tempo acreditava que a experimentação animal era fundamental, e unicamente responsável pelo avanço da ciência humana. Mas ele acreditava que com o tempo a educação viria a ser aprimorada de forma que o respeito pelos outros seres vivos tivesse maior relevância moral. Nesse sentido, ele almejava que um dia o comportamento humano poderia ser norteado por um imperativo que ele chama de bioético: “Respeita toda forma de vida fundamentalmente como um fim em si mesmo e trata-a, se possível, como tal” (Jahr F, 1927, p. 4).

É interessante reparar que Jahr estende o imperativo categórico ético proposto por Kant a outras formas de vida e, deste modo, não limita mais somente aos seres humanos, uma vez que estes últimos compartilham essencialmente, com animais e plantas, aquilo que os mantém vivos, a vontade de viver.

Não obstante, a visão de Jahr sobre a bioética enquanto disciplina, princípio e virtude, pode ser acompanhada junto ao desenvolvimento do imperativo bioético, ao longo de suas obras. O Prof. Hans-Martin Sass sistematizou esse desenvolvimento de forma a facilitar a compreensão das projeções e intenções de Jahr e será revisto abaixo.

1 – “O imperativo bioético guia as atitudes éticas e culturais e as responsabilidades das ciências da vida em relação a todas as formas de vida” 29 (Sass HM, 2008, p. 283). Os estudos

empíricos da fisiologia e psicologia revelaram, segundo Jahr (1927), a inquestionável proximidade entre humanos, animais e plantas. Nessa medida realça a necessidade da educação afirmar valores morais, tanto individuais quanto culturais, no sentido de promover a noção essencial de respeitar todas as formas de vida (Sass HM, 2008, p. 283).

2 – “O imperativo bioético é baseado na historicidade e outras evidências de que a compaixão é um fenômeno empiricamente demonstrado da alma humana” 30 (Sass HM, 2008, p. 283). Para Jahr (1928a), aquele em que a compaixão rompe a fronteira da espécie humana e reconhece a santidade nas mais miseráveis criaturas, tendencialmente terá respeito por aqueles que são diferentes de si mesmo e pelos mais desfavorecidos da espécie humana; de igual modo, se

29 Jahr F. Bio=Ethik. Eine Umschau uber die ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und Pflanze.

Kosmos 1927; 24:2-4, 1927.

30 Jahr F. Tierschutz und Ethik in ihren Beziehungen zueinander. Ethik: Sexual- und Gesellschaftsethik:

um ser humano se mostra cruel com os animais e plantas, as possibilidades de ser cruel com os membros de sua própria espécie são maiores. Entretanto, salienta que não deve haver conflitos na compaixão demonstrada aos seres humanos e a outras formas de vida. (Jahr F, 1928a, p. 100).

3 – “O imperativo bioético fortalece e complementa o reconhecimento moral e os deveres em relação aos membros da espécie humana no contexto kantiano e deveria ser seguido com respeito à cultura humana e pela obrigação moral mútua entre humanos” 31 (Sass HM, 2008, p. 284). No imperativo bioético de Jahr subjaz o pressuposto de que todas as formas de vida venham a ser respeitadas como um fim em si mesmo, mas aqueles que não se afeiçoam a tal definição e não pretendem respeitar animais e plantas como um fim em sim mesmo que ao menos respeitem a comunidade da vida, pela espécie humana e sua civilização que está inserida nesta mesma comunidade. Ora, uma vez que o comportamento humano perante outras criaturas influencia no comportamento humano diante dos membros da comunidade humana, deve existir uma obrigação moral pela sociedade em geral (Jahr F, 1928a, p. 102).

4 – “O imperativo bioético deve reconhecer, cuidar e cultivar a luta pela vida entre as diversas formas de vida e os ambientes natural e cultural” 32 (Sass HM, 2008, p. 284). Jahr (1928a, p. 101) coloca que no ambiente humano as atividades cotidianas das mulheres e homens acontecem muitas vezes não motivadas pelo amor, e deste modo, deve-se acrescentar, a vida é substituída pela luta constante pela sobrevivência. Assim, os próprios seres humanos lutam por suas vidas entre si, e nesse sentido é inevitável que lutem por suas vidas mesmo que indiretamente com outras formas de vida, entretanto nunca se deve perder de vista a responsabilidade fundamentalmente necessária. Sass (2008, pp. 284-285) faz uma observação importante de que Jahr já no seu tempo reconhecia os ambientes culturais como entidades com funcionamento próprio e auto-reguláveis. Cabe acrescentar outra interpretação desse imperativo bioético, onde a vontade de viver e permanecer vivo é fulgente e deve ser, indubitavelmente, para lá da competitividade, reconhecida, cuidada e cultivada.

5 – “O imperativo bioético implementa compaixão, amor e solidariedade para com todas as formas de vida enquanto conteúdo básico o princípio e virtude, em contraste com a ‘regra de ouro’ e o imperativo categórico de Kant, os quais são dotados de caráter apenas recíproco e formal” 33 (Sass HM, 2008, p. 285). A formalidade e a reciprocidade, como é o caso do imperativo categórico kantiano e da regra de ouro, acabam revelando ações não motivadas pela

31 Jahr F. 1928a. 32 Jahr F. 1928a.

compaixão ou amor, ao invés, pelo egoísmo e racionalidade. Jahr (1934, p. 134) acrescenta que Schopenhauer compreendeu o 5º Mandamento ‘Não Matarás’ num sentido amplo que beneficia a santidade da vida e suas manifestações, enquanto imperativo; isto é, o 5º Mandamento implica não somente em não matar, não obstante, não causar danos, desde verbalizações às atitudes, o que de fato tem grande relevância no respeito à vida, enquanto imperativo, para as deliberações morais (Sass HM, 2008, p. 285).

6 – “O imperativo bioético inclui obrigações em relação ao seu próprio corpo e alma enquanto seres vivos” 34 (Sass HM, 2008, p. 285). Para Jahr, é um dever que cada ser proteja sua própria vida. Ele diz que “[...] de acordo com o entendimento cristão a vida de cada ser humano é eticamente sagrada – de igual modo a vida própria de cada um" (Jahr F, 1934, p. 184). O sentido fundamental dessa aferição de Jahr tem inquestionavelmente sua importância, entretanto, possui uma compreensão mais abrangente que estabelece uma ligação com a ética nos cuidados de saúde, de forma coletiva. Portanto, ele inclui que a obrigação se dá não somente para com sua própria vida, mas também para com toda a comunidade, pois na medida em que se protege sua própria vida e saúde é a própria comunidade que se vê preservada Ora, imagine um dependente do álcool, este acaba se tornando um fardo para toda a comunidade, uma vez que as complicações de seus exageros podem custar recursos para a sociedade, para além dos custos emocionais. O alcoolismo não apenas fere a si mesmo, mas sua família, seus descendentes, sua nacionalidade, sua espécie (Jahr F, 1934, p. 185).

Pode-se, portanto, apreender, segundo Jahr, que é o ser humano quem deve clamar pela obrigação de respeitar não somente a si mesmo, mas sua própria espécie e todas as outras manifestações de vida. E segundo ele “[...] reescrevendo o 5º Mandamento [Não Matarás] resulta no Imperativo Bioético: Respeita toda forma de vida fundamentalmente como um fim em si mesmo e trata-a, se possível, como tal” (Jahr F, 1934, p. 187).

4.

TRADICIONALISMO ÉTICO: UMA APRECIAÇÃO DOS