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Uma análise do processo de mercado

5.1. A definição de economia

A   divergência   austríaca   começa   na   própria   definição   de   “economia”   ou   do   “problema   econômico   da   sociedade”.   Como   vimos   na   Parte   I   deste   trabalho,   a   microeconomia adotada como base pela ESP parte de uma definição de economia conforme enunciada por Robbins. Para o autor, a economia seria essencialmente uma ciência da escolha ou “(...)   the science which studies human behavior as a

relationship  between  ends  and  scarce  means  which  have  alternative  ends” (Robbins,

1932:16).

A partir dessa definição, descreve-se um sistema no qual, segundo Hayek (1945),  todas  as  informações  relevantes  estão   “dadas”.  Assume-se, de antemão, que os indivíduos possuem um conhecimento perfeito tanto do conjunto de tecnologias disponíveis (meios) quanto das preferências dos consumidores (fins). O problema econômico da sociedade passa a ser um problema de otimização matemática.

A questão, para os economistas austríacos, é que, ao contrário do que se assume nesses modelos, os indivíduos, ao realizarem o seu cálculo econômico, nunca se   deparam   com   informações   “dadas”.   O problema econômico da sociedade seria, portanto, essencialmente outro:

“The economic problem of society is thus not merely a problem of how   to   allocate   “given”   resources   – if   “given”   is   taken   to   mean   given to a single mind which deliberately solves the problem set by these  “data”.  It  is  rather  a  problem of how to secure the best use of resources known to any of the members of society, for ends whose relative importance only these individuals know. Or, to put it

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briefly, it is a problem of the utilization of knowledge not given to anyone in its totality” (Hayek, 1945: 519).

Isso porque, segundo Hayek, o conhecimento que se encontra disponível para o analista (ou para formuladores de política),  ou  seja,  o  conhecimento  “científico”,  é   de natureza diferente daquele conhecimento à disposição do indivíduo em sua tomada de decisões cotidiana,   que   o   autor   define   como   “conhecimento de certas

circunstâncias  particulares  de  tempo  e  lugar”  (Hayek, 1945:521). Esse tipo particular

de conhecimento daria a cada indivíduo uma espécie de vantagem comparativa específica em relação a todos os outros sobre qual a melhor escolha no seu contexto particular de decisão (por exemplo, os padeiros, em geral, teriam uma vantagem na decisão sobre a quantidade ótima de pão a ser produzida pelo seus estabelecimentos, mesmo quando comparado a  um  “economista  especialista  no  mercado  de  pães”).  

As   “pequenas   mudanças”   na   economia,   que   são   levadas   a   cabo   diariamente   pelos  mais  diversos  agentes  econômicos  (possuidores  do  “conhecimento  particular  de   tempo e lugar”) a cada pequena mudança na realidade (seja uma mudança na preferência dos consumidores, na oferta de determinado insumo, na tecnologia de produção, etc.) é o que, para Hayek, compõe o  “todo  da  atividade  econômica”. Estas mudanças estariam sendo ignoradas por muitos economistas, habituados, cada vez mais, a trabalhar com dados estatísticos agregados. Segundo o autor, o caráter relativamente estável das variáveis comumente analisadas não deve ser explicado, como  pretendem  muitos,  por  uma  versão  econômica  das  “leis  dos  grandes  números”,   mas são resultado de inúmeras pequenas e deliberadas decisões tomadas diariamente por milhares de indivíduos. Estas pequenas mudanças realizadas dia-a-dia são tão importantes que o problema econômico da sociedade pode ser compreendido como um  de  “(...) rapid adaptation to changes in the particular circumstances of time and

place” (Hayek, 1945:524).

Assim, para a EA, o problema econômico deve ser definido, não em termos de “como alocar de modo eficiente determinados meios para se atingir determinados

fins” (como se a alocação fosse resultado da mera definição de um problema

matemático), mas em termos de coordenação entre os planos dos diferentes indivíduos, cada um possuindo somente uma pequena parte do conhecimento disponível. Ao longo das próximas seções, este problema se delineará de forma mais clara.

148 5.2. A crítica austríaca à análise do equilíbrio

Como vimos na Parte I deste trabalho, o estudo das propriedades de equilíbrio tem   como   foco   a   determinação,   a   partir   de   um   conjunto   de   “variáveis   subjacentes” (preferências dos consumidores, tecnologias de produção e alocação inicial de recursos), dos  valores  assumidos,  no  equilíbrio,  pelas  “variáveis  induzidas”  (preços  e   quantidades) 139 . Para isso, o analista faz uso de métodos matemáticos, particularmente aqueles relacionados à otimização. Vimos, ainda, que, segundo os Teoremas do Bem-Estar, um mercado perfeitamente competitivo “produz”, para cada conjunto de variáveis subjacentes, uma alocação Pareto-eficiente do recursos econômicos. A discrepância entre os valores observados na realidade e os valores de equilíbrio seria explicada pela existência de uma  suposta  “falha  de  mercado”,  o   que violaria as premissas do modelo140.

Hayek (1937) considera o raciocínio que ampara a maioria das análises de equilíbrio essencialmente tautológico: a solução para o problema estaria contido em sua própria definição. Assim, a determinação a priori de um dado conjunto de variáveis subjacentes já conteria as variáveis induzidas de equilíbrio, o que reduziria o problema econômico da sociedade a um mero cálculo matemático. A análise tenderia, assim, a obscurecer qualquer relação de causalidade entre o comportamento de indivíduos   e   firmas   e   a   determinação   das   “variáveis   induzidas”. O papel dos indivíduos na determinação dos preços e quantidades das mercadorias comercializadas no mercado não é contemplado pelo modelo (o que é representado pela  premissa  de  agentes  “tomadores  de  preço”). A análise de equilíbrio consistiria, assim, em uma “series of propositions which are necessarily true because they are

merely transformations of the assumptions from which we start and which constitute the main content of equilibrium analysis”  (Hayek,  1937:35).  

Para o autor, o conceito de equilíbrio teria um papel claramente definido quando aplicado à análise do comportamento de um indivíduo isolado. Nesse caso, as ações  de  uma  pessoa  poderiam  ser  entendidas  como  em  um  “estado  de  equilíbrio”  na   medida  em  que  todas  fazem  parte  de  um  mesmo  “plano” coerentemente concebido:

139 Esta terminologia foi retirada de Kirzner (1991).

140 Ou por um erro do analista, ao, por exemplo, não considerar uma variável importante em sua análise

(por exemplo, custos de transação), ou por problemas de mensuração, ou por questões econométricas, ou por uma falha no próprio modelo, etc.

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“Only if all these actions have been decide upon at one and the same moment, and in consideration of the same set of circumstances, have our statements about their interconnections, which we deduce from our assumptions about the knowledge and the preferences of the person, any application” (Hayek, 1937:36).

Nesse caso, todos os   “dados”   considerados   pelo   indivíduo, com exceção daqueles relativos ao seu próprio conjunto de preferências, são externos a ele, ou seja, são resultado da percepção subjetiva do indivíduo a respeito da realidade. Sob o ponto de   vista   estritamente   individual,   existirá   sempre   um   conjunto   de   “eventos   externos”   que, caso correspondam à percepção/expectativa inicial do indivíduo, permitirá a consecução do seu plano tal como inicialmente concebido, o que caracterizaria um “equilíbrio”  de  suas  ações.

Quando passamos para análise da interação entre os vários indivíduos de uma sociedade, uma situação de equilíbrio somente existiria quando  “(...) the actions of all

members of the society over a period are all executions of their respective individual plans   on   which   each   decide   at   the   beginning   of   the   period” (Hayek, 1937:37). O

equilíbrio no mercado existiria, portanto, quando, durante certo período de tempo, nenhum dos indivíduos da sociedade viu a necessidade de rever o seu plano. No entanto,   como   cada   indivíduo   baseia   seu   plano   em   um   conjunto   de   “dados   da   realidade”   por   ele   percebidos, para que uma situação de equilíbrio de fato fosse alcançada, seria necessário haver um conjunto de eventos externos que cumprisse as expectativas de todos os indivíduos simultaneamente. Trata-se, evidentemente, de uma situação impossível, uma vez que significaria que todos os indivíduos perceberam e previram a realidade de modo idêntico, antecipando acertadamente os eventos futuros.

Colocada de tal forma, essa condição para o equilíbrio parece torná-lo inviável. Contudo, segundo Kirzner, é exatamente isso que os modelos clássicos de equilíbrio assumem:

“[In   mainstream microeconomics] markets consist of successfully maximizing agents whose decisions are held to fit in together perfectly, in the sense that each maximizing decision being made correctly anticipates, in effect, at least, all the other maximizing decisions  being  made  simultaneously”  (Kirzner, 1997:63).

150 Deve-se notar que, em um contexto de tomada de decisões no mercado, as variáveis subjacentes nas quais os indivíduos se baseiam para a concepção do seu plano são compostas pelos planos de outros indivíduos. Assim, a sua expetativa com relação aos eventos externos inclui as expectativas de como os demais indivíduos se comportarão. Um empresário, ao decidir seu plano de ação, deverá considerar, necessariamente, o plano de ação de seus consumidores, fornecedores, investidores, etc. A existência do equilíbrio dependeria, portanto, de uma compatibilidade “perfeita”   dos   planos   dos   mais   diferentes   indivíduos   na   sociedade,   ou   seja,   que   as   expectativas de cada um dos indivíduos a respeito do comportamento dos demais estivessem corretas.

Todos esses problemas são aparentemente superados em uma análise tradicional de equilíbrio pela pressuposição de que o conhecimento a respeito do comportamento dos demais está disponível a todos os indivíduos. Segundo O’Driscoll   e   Rizzo   (1985),   os   modelos tradicionais são caracterizados por um pressuposto   de   “conhecimento”   por   parte   dos   agentes: “In its older form the

presumption was of perfect knowledge and foresight, and in its more recent form it has been that   of   perfect   stochastic   knowledge   and   foresight”   (O’Driscoll   e   Rizzo,  

1985:35).

Este  conhecimento  é  representado,  costumeiramente,  por  uma  “dada”  curva  de   demanda  (decorrente  das  preferências  individuais)  e  por  uma  “dada”  curva  de  oferta   (decorrente do conjunto tecnológico disponível). Hayek (1937) aponta dois erros nesse tipo de análise: primeiramente, que a pressuposição de curvas de demanda e oferta  “dadas”  não  eliminaria  o  problema de a ação de  um  indivíduo  ser  o  “dado”  de   outro indivíduo, envolvendo uma espécie de raciocínio circular (a relação de causalidade   se   perde   na   pressuposição   de   “dados   objetivos”) 141; segundo, que o “dado”  relevante  para  a  tomada  de  decisão  não  é,  de  nenhuma  forma,  objetivo,  sendo   constituído, na verdade, das percepções do indivíduo – ou da sua interpretação subjetiva – a respeito da realidade.

A respeito da circularidade do raciocínio geralmente envolvido na análise de equilíbrio, Kirzner (1979:19), por exemplo, questiona o processo pelo qual se acredita

141 Bausor,   por   exemplo,   conclui   que,   em   uma   teoria   de   equilíbrio   geral,   existe   uma   “logical simultaneity   between   current   decisions   and   current   prices” (Bausor apud O’Driscoll   e   Rizzo,  

151 que o preço atinge o equilíbrio. Nas aulas de introdução à economia, esse raciocínio é geralmente exposto da seguinte forma: caso o preço esteja abaixo do equilíbrio, há uma situação de escassez de mercadorias (demanda excede a oferta), o que leva o preço do produto a subir. Por outro lado, caso o preço esteja acima do equilíbrio, há uma situação de excesso de oferta, muitos produtores não conseguem vender sua produção ao preço vigente, o que leva o preço a diminuir. O mercado tenderia a “equilibrar”  a  oferta  e  a  demanda.  Contudo, sabe-se que uma das premissas principais do  modelo  de  equilíbrio  competitivo  é  que  os  agentes  são  “tomadores  de  preço”,  ou   seja, agem passivamente com relação ao preço de mercado. Se todos os agentes são tomadores de preço, quem altera os preços de mercado? 142 Como os preços mudam em uma economia sem que nenhum agente os altere? Ou mais: se fora do equilíbrio os produtores não são tomadores de preço, o que explicaria essa  súbita  “mudança  de   comportamento”   individual   dentro   e   fora   do   equilíbrio?143 A dificuldade de se responder a estas questões, dentro de uma teoria de equilíbrio, foi reconhecida, por exemplo,  por  Kaldor  (1934:127),  que  afirmou  que  “(...) the formation of prices must

precede   the   process   of   exchange   and   not   be   the   result   of   it”. Contudo, se não é

resultado da troca, qual é a origem do preço? A inexistência de uma teoria do processo de mercado (ou do desequilíbrio) é o motivo pelo qual Kirzner (1979) considera as análises tradicionais de equilíbrio incompletas.

Sobre o caráter subjetivo   dos   “dados”, Hayek (1937) antecipa a já tratada divisão entre   o   “conhecimento   científico”   e   o   que, como vimos, denominou posteriormente de  “conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar”. Segundo o autor,

142 Essa  crítica  de  Kirzner  não  é  “original”,  nem  tampouco  exclusiva  (nem  o  autor  pretende  que  assim  

seja). Trata-se de uma dificuldade reconhecida pela literatura neoclássica. Uma das hipóteses comumente feitas é a do “leiloeiro   walsariano”, o que reconhecidamente não constitui uma resposta inteiramente adequada para esse problema. Nas palavras de Kreps, “a fairly unrealistic mechanism,

which nonetheless populates some of the literature on general equilibrium, concerns and individual known as the Walrasian auctioneer. This individual stands up in front of the entire population of an economy and calls out a price vector p. Every consumer consults her preferences and determines what she would want to buy and sell at these prices (...) Each consumer reports back to the auctioneer what net trade she wishes, and   the   auctioneer   adds   them   up   (…)   We   won’t   carry   further   on   this   subject   because Walrasian  auctioneers  are  not  usually  found  in  real  economies”  (Kreps, 1990:196).

143 Uma tentativa de explicação a essa questão foi postulada por Arrow (1959), segundo o qual, no

desequilíbrio, todas as firmas atuariam em um cenário de concorrência monopolística. Para uma crítica a essa explicação, vide Kirzner (1986:87-96).

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“There seems to be no possible doubt that these two concepts of “data”,  on  the  one  hand,  in  the  sense  of  the  objective  real  facts,  as   the observing economist is supposed to know them, and, on the other, in the subjective sense, as things known to the persons whose behavior we try to explain, are really fundamentally different and ought  to  be  carefully  distinguished” (Hayek, 1937:39).

Segue-se,  assim,  que  a  “curva  de  demanda”  de  determinado  mercado  jamais  é   objetivamente conhecida pelo empresário. Este somente é capaz de supor, baseado no conjunto de informações que possui a sua disposição, qual seria o formato dessa curva. Firmas concorrentes podem supor curvas diferentes, o que as levaria a planos de ação diferentes e potencialmente conflitantes. Outro exemplo diz respeito à administração de uma empresa. Em condições técnicas idênticas, um administrador eficiente e um ineficiente podem gerar resultados diferentes. Para uma análise de equilíbrio, esta ineficiência poderia ser explicada por uma maximização equivocada por parte do mau administrador. Contudo, se a maximização é um cálculo matemático e os administradores são racionais, a única hipótese plausível para esse equívoco é que os dados utilizados fossem errados. Ou seja, trata-se de um exemplo de interpretações subjetivas diferentes a respeito das mesmas variáveis subjacentes (estrutura de custos da empresa, curva de demanda do mercado, etc.).

Essa percepção subjetiva da realidade deve, necessariamente, incluir a previsão de circunstâncias futuras, que podem envolver ou não a própria mudança das variáveis  subjacentes.  Neste  sentido,  para  Hayek  (1937),  o  “estado  de  equilíbrio”  faz   referência a um ponto específico no tempo no qual os planos dos indivíduos são mutuamente compatíveis. Este estado de equilíbrio somente continuaria no tempo na medida em que os fatos externos correspondam às expectativas dos agentes. Para o autor, uma mudança das variáveis subjacentes corretamente previstas pelos indivíduos não geraria qualquer mudança nos planos individuais. A previsão correta de eventos futuros não seria, portanto, uma pré-condição para o equilíbrio, mas sua característica definidora. Somente uma   “mudança   nos   dados” que divirja das expectativas dos agentes tornaria necessária a adaptação dos planos144. Essa percepção é de

144 Fica evidente que, segundo a própria definição do autor, somente se pode falar em mudança de

153 fundamental importância, uma vez que, se assim definirmos mudança, o equilíbrio passa a ser descrito não como uma situação na qual as variáveis subjacentes não se alteram, mas na qual toda mudança é corretamente prevista/antecipada por todos os indivíduos. Assim, o pressuposto  da  “constância  dos  dados”  comumente  associado  a   definições de equilíbrio não é, para o autor, nem condição suficiente nem necessária para o equilíbrio. O equilíbrio não deve se referir, na concepção de Hayek, à descrição de preços e quantidades em determinado ponto do tempo, mas à compatibilidade de expectativas e planos individuais.

Logo,   a   suposição   dos   modelos   de   equilíbrio   de   que   “the crucial market

variables of price and quality are somehow presented to each decision maker as an external fact of   nature”   (Kirzner, 1997:63) é alvo de fortes críticas por parte dos

economistas austríacos. Para Hayek (1937), a premissa, assumida explícita ou implicitamente nas análise tradicionais de equilíbrio, de que a interpretação subjetiva dos indivíduos coincide com os fatos objetivos é equivocada. Na visão do autor, ao incorporar essa premissa, a análise neoclássica não enfrenta um dos principais problemas econômicos: como o mercado atua na coordenação entre os diferentes planos individuais. “The equilibrium relationships cannot be deduced merely from the

objectives facts, since the analysis of what people will do can start only from that is known  to  them.”  (Hayek, 1937:44).