A ECONOMIA DO SETOR PÚBLICO TRADICIONAL
3.2. Poder de mercado: monopólio, oligopólio e concorrência monopolística
3.3.2. A Análise de Coase
3.3.2.1. Um modelo com custos de transação positivos
Conforme Coase (1960:15) reconhece, a premissa de ausência de custos de transação é irrealista. Uma transação de mercado na economia real envolve uma série de custos relacionados a descobrir com quem se deve negociar, a informar a existência da negociação, a conduzi-la, a elaborar o contrato, a inspecionar o contrato, entre outros (Coase, 1960). Caso os custos dessas operações (comumente chamados \ “custos de transação”) sejam maiores que o aumento no valor da produção decorrente do rearranjo dos direitos de propriedade, a negociação entre as partes tende a não ocorrer. Neste caso, a decisão do juiz, ao assinalar direitos de propriedade, tem consequências relevantes na eficiência da alocação de recursos.
No exemplo anterior, podemos supor que o custo de transação envolvido na negociação entre o proprietário da ferrovia e o fazendeiro seja alto a ponto de impedir a negociação entre as partes. Nesse caso, se o juiz decidir que o fazendeiro possui o “direito de propriedade”, como não existe possibilidade de negociação entre as partes, a ferrovia seria obrigada a parar de funcionar. Por outro lado, caso o juiz decida que o proprietário da ferrovia possui o “direito de propriedade”, esta deverá continuar operando. A decisão final, ao contrário do modelo sem custos de transação, é, portanto, alterada pela decisão do juiz: no segundo caso a ferrovia operará e no primeiro, não.
93 Nesse caso, segundo Coase (1960:16), considerações de eficiência deverão ser levadas em conta pelo juiz. Isso porque um arranjo de propriedade gera um “maior valor de produção” 87 ou maior “produto social” do que o outro. Mesmo considerando
o custo causado pela operação da ferrovia para o fazendeiro (destruição da plantação), o “valor líquido social” de mantê-la operando é positivo. Como o custo de transação do mercado impede que essa alocação final seja alcançada caso o direito de propriedade seja assinalado ao fazendeiro, o juiz deverá avaliar, sob o ponto de vista da eficiência, os diferentes arranjos:
“(...) the courts should understand the economic consequences of their decisions and should, insofar as this is possible without creating too much uncertainty about legal position itself, take these consequences into account when making their decisions” (Coase,
1960:19).
Ao comparar sistemas alternativos de direitos de propriedade, o juiz deverá considerar, portanto, o “produto social total” gerado por cada um desses sistemas. Caso este seja o único critério da análise, o direito de propriedade deveria ser concedido àquele que o valoriza mais (ou seja, que pode gerar o maior retorno). No exemplo discutido, isso significaria conferir o direito de propriedade ao proprietário da ferrovia.
Coase (1960) introduz, assim, na definição dos direitos de propriedade o critério da “maximização do valor real dos recursos” (Demsetz, 1978:102). Este não deve ser calculado com base em valores pretéritos do mercado, mas considerando a eficiência com a qual se espera que os recursos serão empregados como resultado de se conceder o direito de propriedade a um agente ou a outro.
Demsetz (1978:106) reconhece a dificuldade de um juiz em aplicar o critério da eficiência, devido ao requisito informacional a ele associado (que inclui a capacidade do juiz de prever corretamente o retorno esperado dos diferentes usos da propriedade). Sendo assim, o modus operandi para aplicação desse critério seria “nebuloso e sujeito a erros”. É justamente por isso que o autor afirma que este critério não deve ser adotado como justificativa para redistribuição involuntárias frequentes
94 de direitos de propriedade. Contudo, para o autor, este permanece o melhor critério para os casos em que haja altos custos de transação e problemas do tipo free-rider.
Coase (1960), no caso de custos de transação muito elevados, admite inclusive a adoção de outras soluções:
“In the standard case of a smoke nuisance, which may affect a vast number of people engaged in a wide variety of activities, the administrative costs might well be so high as to make any attempt to deal with the problem within the confines of a single firm impossible. An alternative solution is direct government regulation”
(Coase, 1960:17).
O autor chama a atenção, contudo, para o fato de que o governo é uma máquina administrativa cujo custo de operação não é zero e que agentes públicos são falíveis. Assim, uma intervenção do governo pode piorar a situação alcançada pelo mercado livre. A necessidade de uma solução pigouviana não decorre meramente da constatação da existência de custos de transação elevados, mas de uma análise de custo-benefício que leve em consideração os custos do governo e a probabilidade de equívocos por parte dos agentes públicos. Esta análise pode levar à conclusão de que, mesmo na presença de uma externalidade, o melhor é não fazer nada.
Por fim, deve-se ressaltar que Coase (1960) não pretende que o critério de eficiência seja adotado como único pelos juízes. Comparar o produto social total de cada uma das decisões permitiria ao juiz deduzir as consequências econômicas de sua decisão, mas não pode servir como único parâmetro para análise: “As Frank H.
Knight has so often emphasized, problems of welfare economics must ultimately dissolve into a study of aesthetics and morals.” (Coase, 1960: 43)
Embora a análise de Coase (1960) tenha se desenvolvido mais profundamente no âmbito da Escola de Chicago - principalmente por Harold Demsetz e Richard Posner 88 -, sua validade é hoje reconhecida pela maioria dos economistas
da ESP, ainda que com ressalvas. Isto não os impede, contudo, de apontar, inúmeros casos nos quais a intervenção governamental permanece necessária: quando as externalidades envolvem a provisão de bens públicos, na presença de informação
95 imperfeita (que pode impedir a determinação do valor correto da compensação), quando existem custos de transação significativos (o custo de ingressar com uma ação judicial pode ser elevado, os danos podem ser muito pequenos para um número muito grande de pessoas, a internalização de externalidades pode ser custosa, etc.), entre outros (Stiglitz,1999:222). Nessa lista não exaustiva de problemas que podem atrapalhar uma coordenação eficiente dos agentes envolvidos, uma solução de mercado tenderia a não gerar uma alocação de recursos Pareto-eficiente. O Estado é chamado, consequentemente, a prestar o papel de mecanismo institucional que, na presença de problemas de coordenação e/ou informação, atua de modo a alterar o comportamento dos agentes econômicos com o intuito de melhorar a alocação do mercado.