Uma análise do processo de mercado
5.5. O tempo na economia austríaca
A crítica austríaca à ausência de uma análise do processo de mercado na ESP poderia ser, em tese, rebatida pela introdução do parâmetro “tempo” nas equações de equilíbrio, o que introduziria certa “dinamicidade” aos modelos150. Contudo, como destaca Mises (1995), “a principal deficiência [dos modelos de equilíbrio] não é
ignorar a sequência temporal, mas ignorar o funcionamento do processo de mercado”.
Neste sentido, os modelos de equilíbrio intertemporal padecem, segundo os austríacos, de fraquezas semelhantes a dos modelos estáticos. Como a introdução do fator tempo é geralmente acompanhada da premissa de existência simultânea de todos os mercados intertemporais (“trazendo” os estados futuros ao presente), “Decisions
are all made in a single primordial instant: the future is merely the unfolding of a tapestry that exists now” (O’Driscoll e Rizzo, 1996:52). Esta situação foi
reconhecida, por exemplo, por Hahn (1980:132): “The assumption that all
intertemporal and all contingent markets exist has the effect of collapsing the future into the present”.
Esta percepção newtoniana151 do tempo impede, segundo O’Driscoll e Rizzo (1996), que as decisões dos indivíduos mudem de modo não-determinístico com base no seu aprendizado durante a passagem do tempo. É justamente isso que acontece, por
150 Estes são conhecidos como modelos de equilíbrio intertemporal.
151 A ideia central por trás de uma concepção newtoniana do tempo é o estabelecimento de uma
159 exemplo, no modelo de Arrow-Debreu: todas as decisões são tomadas no instante inicial e, enquanto o tempo passa, não há aprendizado pelos agentes que os faça rever sua decisão inicial. Assim, todas as mudanças devem ser encaradas como fatores exógenos ao sistema.
Um sistema newtoniano seria, portanto, um encadeamento de estágios estáticos, que não geram mudanças endogenamente. Cada período no tempo é um ponto isolado. Qualquer mudança no sistema deve ser determinada desde o seu início. O estágio inicial deve conter todos os fatores necessários para gerar uma mudança ( a passagem do tempo, em si, não gera nada). Trata-se, assim, meramente da passagem de um filme do qual já se sabe o enredo desde o início. Até o aprendizado dos agentes tem tratamento determinístico, sendo nada mais do que uma função que descreve o estado atual do conhecimento. Assim, mesmo em modelos de equilíbrio intertemporal, o futuro sempre existe como um componente do presente. Esta maneira de proceder, ainda que leve em consideração a passagem do tempo, para os austríacos não descreve adequadamente o processo de mercado, marcado pela constante descoberta de novas informações.
Os austríacos, seguindo a classificação proposta por Henri Bergson (1910), distinguem o “tempo espacializado” (tal como visto) da experiência subjetiva de passagem do tempo, sendo este denominado “tempo real” ou “tempo subjetivo”:
“Time, in this sense, is not the static subjectivist concept used in planning or reflection. Instead, it is a dynamically continuous flow of novel experiences. This flow is not in time, as would be the case from a Newtonian perspective; rather, it is or constitutes time. We cannot experience the passage of time except as a flow: something new must happen, or real time will cease to be” (O’Driscoll e
Rizzo, 1996:59)
Esta concepção do tempo tem características distintas da concepção do tempo adotada nos modelos tradicionais de equilíbrio. Nesta visão, há uma conexão entre os diferentes períodos de tempo, estabelecida tanto pela memória quanto pela expectativa. Desse modo, a experiência de uma situação entra como um “novo parâmetro” para a situação seguinte e, assim, sucessivamente. Esta experiência é, por sua própria natureza, indeterminada, não podendo ter sido prevista no primeiro período. Assume-se, portanto, a possibilidade de aprendizado: a passagem do tempo
160 envolveria a transmissão e o crescimento do conhecimento. Este crescimento, resultante das descobertas feitas no âmbito do processo competitivo, seria a “força endógena” das mudanças no sistema. A passagem do tempo é caracterizada por uma espécie de “evolução criativa”, gerando mudanças imprevisíveis a qualquer agente.
As ideias por trás da concepção do “tempo real” ficarão mais claras na medida em que definirmos, no capítulo seguinte, o processo de mercado segundo a economia austríaca.
161 6. A ANÁLISE DO PROCESSO DE MERCADO
A característica principal que distingue a microeconomia austríaca da microeconomia da ESP é o foco no desequilíbrio e não nas propriedades do equilíbrio. Os austríacos alegam que os economistas da ESP veem o mercado como um “estado”, enquanto eles se propõem a analisá-lo como um processo. As diferenças entre as duas metodologias começam, assim, na própria definição do problema.
O estudo de equilíbrio visto na Parte I pode ser considerado o “modelo central” da ESP. Com base nele, vários estudos são desenvolvidos no sentido de mostrar a inexistência ou instabilidade do equilíbrio em diferentes condições. Como vimos, não há somente modelos estáticos. Há uma grande variedade de modelos: equilíbrio dinâmico, equilíbrio estocástico, “trajetórias de equilíbrio” (equilibrium
paths), equilíbrio sequenciais, entre outros. Como o próprio nome indica, todos esses
modelos compartilham uma característica central: são desenvolvidos tendo por base o conceito de equilíbrio. Assim, em todos eles, “(...) very little is said about the
dynamics of the process that leads an equilibrium to be established in the first place or by which the system adjusts to a new equilibrium (...) Attention is centered on the equilibria themselves” (Fisher, 1983:3).
Hahn (1984), economista britânico reconhecido por seus trabalhos no desenvolvimento da teoria de equilíbrio geral, alertou para o perigo de análises focadas exclusivamente no equilíbrio:
“(...) by narrowing our viewpoint in this manner we shall remove a great deal of interest and importance from scrutiny. For instance, imposing the axiom that the economy is at every instant in competitive equilibrium simply removes the actual operation of the invisible hand from the analysis. By postulation that all perceived Pareto-improving moves are instantly carried out all problem of co- ordination between agents are ruled out. Economic theory thus narrowly constructed makes many important discussions impossible” (Grifo nosso) (Hahn, 1984:4).
Para os austríacos, essas “importantes discussões impossíveis de serem respondidas por uma análise de equilíbrio” constituem a essência do processo de mercado.
162 Vimos nas Partes I e II deste trabalho que, em uma análise de equilíbrio, estabelecidas as variáveis subjacentes (preferências, dotação de recursos e tecnologias disponíveis), calcula-se os valores ótimos das variáveis induzidas (preço e quantidade), ou seja, seus valores de equilíbrio. O critério normativo associado a essa análise pretende avaliar o funcionamento do mercado segundo sua capacidade de atingir essa alocação. O Primeiro Teorema do Bem-Estar mostra que, atendida as condições de concorrência perfeita, o mercado livre produz uma alocação de recursos Pareto-eficiente. O referencial da “concorrência perfeita” é utilizado, assim, para determinar se um mercado funciona com ou sem falhas.
A teoria da atividade empresarial de Kirzner (1986) parte de um problema diferente. Ainda que assuma a utilidade de uma construção teórica na qual todas as atividades planejadas pelos indivíduos poderiam ser realizadas segundo seus planos iniciais (e que se poderia chamar de “equilíbrio”), o autor não acredita que deva ser a função principal de uma teoria do mercado investigar as propriedades desse estado. Segundo Kirzner, a preocupação central de uma teoria do mercado deve ser ajudar “a
compreender como as decisões dos participantes individuais do mercado interagem para gerar as forças de mercado que compelem a mudanças nos preços, nos produtos, nos métodos de produção e na alocação dos recursos”(Kirzner, 1986:5) 152.
Essa diferença “positiva” na elaboração de uma teoria de mercado tem por consequência uma diferença igualmente relevante no critério normativo associado à análise do funcionamento do mercado. A eficiência de um mercado não depende, para Kirzner, da comparação com um suposto estado de alocação ótimo dos recursos, mas “de até que ponto se pode confiar nas forças do mercado para gerar correções
espontâneas nos padrões de alocação que prevalecem em tempos de desequilíbrio”
(Kirzner, 1986:5).
Assim, o autor foca o desenvolvimento de uma análise do desequilíbrio. Para isso, modificou algumas premissas básicas dos modelos de equilíbrio. Nas próximas
152, Kreps (1990:195), ao introduzir a análise de equilíbrio em seu manual de teoria microeconômica,
afirma que isso é justamente o que uma análise de equilíbrio não faz: “While we may look at market
economies for cases in which Walrasian equilibrium is a reasonable solution concept, one thing that the concept of Walrasian equilibrium doesn’t provide is any sense of how markets operate. There is no model here of who sets prices, or what gets exchanged for what, when, and where (...) it describes what we imagine will be the outcome of some underlying and unmodeled process.”. A análise dos austríacos
pode ser vista, justamente, como uma tentativa de explicação de como os mercados operam, ou seja, de analisar esse “underlying and unmodeled process”.
163 seções veremos as principais razões para essas mudanças e as formas que essas premissas assumem na teoria do processo de mercado de Kirzner. Como já vimos, a principal característica desta teoria é a tentativa de unir a centralidade do “empresário” na explicação do processo de mercado, decorrente das obras de Mises, com o papel fundamental do conhecimento (ou aprendizado) nas interações de mercado, variável de central importância no pensamento de Hayek.