Uma análise do processo de mercado
6.4. O empresário e o equilíbrio de mercado
Vimos que uma das principais críticas austríacas à economia mainstream é a ausência de descrição de um “processo equilibrador”, pelo qual o equilíbrio emergiria (ou pela qual poderia se postular uma tendência ao equilíbrio). Essa carência é reconhecida por pensadores da própria economia mainstream, como por exemplo em Arrow (1959:53), quando o autor afirma que: “Each individual participant in the
economy is supposed to take prices as given and determine his choices as to purchases and sales accordingly; there is no one left over whose job it is to make a decision on price. (Grifo nosso).
A teoria da atividade empresarial de Kirzner traz como um de seus pontos principais a ideia de Mises (1995) de que a coordenação entre os mais variados agentes no mercado não acontece por acaso, mas é resultado do “elemento empresarial” presente em toda ação humana. A teoria de Kirzner parte de uma economia em desequilíbrio, caracterizada pelo conhecimento imperfeito dos agentes. Nesse contexto, é natural que nem todas as oportunidades de lucro estejam esgotadas, havendo possibilidade de trocas mutuamente benéficas. Além isso, pode-se supor que a produção esteja organizada de forma a que as necessidades mais urgentes dos consumidores não estejam sendo satisfeitas, em detrimento de necessidades menos urgentes.
175 Para Kirzner, a “tarefa de uma teoria do mercado é fornecer um insight do
desenrolar dos acontecimentos postos em movimento pelo estado de desequilíbrio do mercado (Kirzner, 1986:51). Na teoria do autor, o principal agente que induz esse
“desenrolar dos acontecimentos” é justamente o empresário. Em um cenário de desequilíbrio, se imaginarmos somente indivíduos maximizadores robbinsianos, é particularmente difícil explicar como os planos dos indivíduos se alteram, de forma a aproveitar as oportunidades de lucros existentes. Se as variáveis subjacentes (preferência, distribuição dos recursos e tecnologia) não se alteram, como explicar uma mudança de comportamento dos indivíduos? O quadro de meios e fins utilizado para a maximização permanece o mesmo, consequentemente o “cálculo” do comportamento ótimo gera o mesmo resultado. A mudança deve ser encarada, portanto, como um fator exógeno.
Já para os austríacos, a mudança nos preços e quantidade em direção aos valores de equilíbrio é resultado da alteração de planos individuais. Para isso, é necessária a premissa de que os indivíduos “aprendem” enquanto executam seu plano de ação. Esse aprendizado é o insumo para alteração do plano. Suponha, por exemplo, um empresário que, ao elaborar seu plano de produção, assuma uma curva de demanda segundo a qual ao preço p a demanda pelo seu produto seria q. Durante a execução deste plano, o empresário pode constatar que sua expectativa sobre o plano de ação de seus consumidores (ou seja, sobre a curva de demanda) não se provou correta. Nesse caso, as variáveis subjacentes não se alteraram. O que ocorreu foi que o “dado subjetivo” no qual o empresário baseou seu plano de ação não correspondeu ao “dado objetivo”. O empresário, então, incorpora esse aprendizado na elaboração de seu novo plano de ação – por exemplo, aumentando ou diminuindo sua produção e/ou seu preço.
O “elemento empresarial” da ação humana de Kirzner é, portanto, uma força equilibradora no processo de mercado162. É ele, segundo Kirzner, o responsável pela “tendência ao equilíbrio” defendida por Mises (1949) e por Hayek (1937). O empresário é uma espécie de “força corretora” das decisões erradas tomadas em decorrência do conhecimento imperfeito dos agentes. É o “estado de alerta” do empresário que lhe permite identificar as oportunidades de lucro existentes. O
162 Cabe notar aqui que o empresário kirzneriano difere do empresário schumpeteriano, tido como um
176 processo pelo qual o empresário lucra é o mesmo pelo qual se corrige/reduz uma imperfeição do conhecimento na sociedade. Ao aproveitar-se das oportunidades de lucro, o empresário, ao mesmo tempo, elimina uma imperfeição resultante do conhecimento limitado dos agentes e leva a alocação de recursos a uma situação mais próxima do equilíbrio.
Deve-se ressaltar que não há, no argumento do autor, qualquer insinuação de que o empresário esteja exercendo esta “função social” conscientemente. Trata-se, portanto, de raciocínio semelhante ao explorado na já citada clássica passagem de Adam Smith de que não é da bondade do padeiro ou do açougueiro que temos o pão e carne, mas sim de seu desejo por lucro163. Assim também é com o empresário
kirzneriano:
“While the incentive to act entrepreneurially lies in the desire to better one’s subjective condition, the social function of entrepreneurship, its normative character, involves the uncovering of inconsistencies and errors, with respect to the underlying preferences of actors in the market, generated by radical ignorance” (Ikeda, 1994:24)
Em um cenário de ausência de mudanças, a correção desses erros é a força principal que leva o mercado a uma situação mais próxima do equilíbrio. Os austríacos, contudo, chamam a atenção para o fato de que, no mundo real, as mudanças contínuas nas variáveis subjacentes (preferências, tecnologia e distribuição dos recursos) impedem que esse equilíbrio seja alcançado e que a criatividade empresarial, ao mesmo tempo que gera “lucro puro”, pode gerar “prejuízos puros” (pode ser, portanto, ela própria, fonte de equívocos). Dessa forma, “the
entrepreneurial market process may indeed reflect a systematically equilibrative tendency, but this by no means constitutes a guaranteed unidirectional, flawlessly converging trajectory” (Grifos do autor) (Kirzner, 1997:72).
Para Kirzner, determinada oportunidade de lucro não é buscada de maneira metódica, sistemática pelo empresário. O empresário não tinha consciência de algo que não sabia (ignorância radical). Segundo o autor, “(...) In the economics or search
literature, search is correctly treated as any other deliberate process of production”
177 (Kirzner, 1997:72). O que distingue a “descoberta” na qual se baseia a teoria de Kirzner desta busca consciente por informação é, contudo, a “surpresa” que acompanha o empresário austríaco. Esta descoberta de algo inesperado não é fruto do acaso, mas justamente do estado de alerta do empresário. “Entrepreneurial alertness
refers to an attitude of receptiveness to available (but hitherto overlooked) opportunities”(Kirzner, 1997:72).
6.5 Competição perfeita vs. competição dinâmica (ou competição rival)