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A ECONOMIA DO SETOR PÚBLICO TRADICIONAL

3.4. Bens Públicos

Ao analisarmos os bens privados de uma economia, podemos notar a presença de duas propriedades: a possibilidade de exclusão (excludability) e a rivalidade no consumo. A possibilidade de exclusão está associada à capacidade que o proprietário de um bem tem de impedir um ou mais indivíduos de consumi-lo, a menos que paguem por ele. Por exemplo, um sapateiro pode facilmente impedir o consumidor que não está disposto a pagar o preço estipulado de consumir o sapato por ele produzido. A menos que um indivíduo esteja disposto a pagar o preço estipulado, o sapateiro poderá, facilmente, impedi-lo de consumir o sapato por ele produzido. A rivalidade no consumo, por sua vez, está associada ao fato de que o consumo de um bem por uma pessoa diminui a quantidade disponível para os demais. Voltando ao exemplo do sapateiro, se o sapato produzido for vendido e usado por um indivíduo, outra pessoa não poderá utilizar o mesmo sapato ao mesmo tempo.

Em dois artigos clássicos publicados em meados de 1950, Samuelson (1954, 1955) chama a atenção para a existência de bens na economia que não possuíam essas propriedades89. O   autor   denominou   esses   bens   de   “collective consumption goods”   e   definiu como aqueles “which all enjoy in common in the sense that each individual's

89 As referências à existência de bens públicos remontam à clássica obra de Smith [1776] (1996),

passando por autores como Lindahl, Sax e Wicksell (Musgrave e Peacock, 1967). Contudo, foi somente Samuelson (1954) que definiu o conceito de maneira precisa (Holcombe, 1997).

96

consumption of such a good leads to no subtraction from any other individual's consumption  of  that  good  (…)”  (Samuelson, 1954:387).

Partindo da definição utilizada por Samuelson, podemos afirmar que, enquanto para os bens privados, o consumo total pode ser definido como a soma dos consumos individuais:

  H h h l l X X 1

sendo h (1,...,H) o conjunto de consumidores do bem privado l.

No caso dos bens de consumo coletivo, como todos os indivíduos usufruem em conjunto esse bem, o consumo total é:

X n Xnh , para todo indivíduo h e todo bem coletivo n.

Tais  bens  são  chamados  “bens  públicos”.  Ao contrário dos bens privados, os bens públicos possuem, portanto, duas propriedades: não-exclusão e não-rivalidade. Por não rivalidade, entende-se que o consumo do bem por um indivíduo não reduz o benefício dos demais indivíduos em consumi-lo; já por não-exclusão, entende-se que é impossível que qualquer indivíduo seja excluído do consumo desse bem90.

Quando as duas condições são atendidas simultaneamente, dizemos que se trata de um bem público puro. O exemplo mais comum de bem público puro é o sistema nacional de defesa. Suponha que o sistema nacional de defesa brasileiro fosse constituído com base em contribuições voluntárias dos seus cidadãos. No caso de uma agressão estrangeira, é impossível impedir que os não-contribuintes desfrutem da proteção resultante desse sistema. Ou seja, no caso de bens caracterizados pela impossibilidade de exclusão, ainda que um indivíduo em nada tenha contribuído para a sua provisão, não é possível impedir que ele o consuma. Além disso, o fato de um indivíduo usufruir da proteção provida pelo sistema nacional de defesa, não impede que outros indivíduos também o façam, caracterizando a não-rivalidade no consumo.

No modelo de equilíbrio de Arrow-Debreu discutido na Parte I, vimos que o mercado perfeitamente competitivo gera alocações de recursos Pareto-eficientes.

90 Muitas vezes, essa característica manifesta-se não pela impossibilidade total de exclusão, mas pelo

97 Contudo, o modelo não considera bens públicos. Ao assumirmos a sua existência, estamos, portanto, violando uma das premissas desse modelo.

Segundo Varian (1997:416), a provisão de um determinado bem público gera melhoras de Pareto somente quando a soma da disposição a pagar de todos os indivíduos excede o seu custo de provisão. Entretanto, ainda que suponhamos uma situação em que a disposição a pagar dos consumidores exceda o custo de provisão, não podemos garantir que o mercado proverá eficientemente esse bem público. Isso porque, na presença de impossibilidade de exclusão, há forte incentivo para que os consumidores  atuem  como  “caronas”  (free riders). Essa situação pode ser visualizada em uma matriz de payoffs, conforme Buchanan (1968:89).

Suponha uma comunidade de 1.000 pessoas onde um bem público, se provido, geraria um benefício avaliado em $10 para cada indivíduo, a um custo total de $5.000. Imaginemos, agora, uma matriz de payoff de cada indivíduo, segundo suas alternativas: 1) contribuir para a provisão do bem público a um custo de $5 per

capita; 2) não contribuir com nada, atuando como free rider. Temos, nessa situação, a

seguinte matriz de payoff:

Quadro 1 – Matriz de payoff para o provimento de bem público (exemplo) Indivíduo

Contribui Não contribui

Outros Contribuem 5 10

Não contribuem -5 0

Na matriz ilustramos somente o payoff per capita. Nesse caso, fica claro que a estratégia estritamente dominante, para cada indivíduo, é atuar como free rider (não contribuir). Se ele considerar que os demais vão contribuir de forma suficiente para o bem público, caso ele não contribua, sairá com um ganho líquido de $10. Caso ele preveja que os outros não contribuirão suficientemente, caso ele não contribua, não terá qualquer ganho ou prejuízo (contribuindo, ele teria um prejuízo de $5). Logo, no equilíbrio, ninguém contribui e o bem público não é provido91.

91 Estamos tratando de um modelo simples, no qual o comportamento de cada indivíduo não afeta o dos

demais. Isto pode não ser verdade em várias situações, como, por exemplo, pequenas comunidades. Nesse caso, deve-se assumir probabilidades diferentes para as duas estratégias. Para um raciocínio detalhado sobre essa situação, vide Buchanan (1968).

98 Nesse exemplo, o ganho social ($10.000) excede o custo social ($5.000) de provimento do bem público. Trata-se de uma situação em que uma melhora de Pareto é possível. Segundo a economia do setor público tradicional, a rationale para a intervenção do Estado na economia na presença de bens públicos reside neste ponto. Taylor expõe esse argumento do seguinte modo:

“The most persuasive justification of the state is founded on the argument that, without it, people would not successfully cooperate in realizing their common interests and in particular would not provide themselves  with  certain  public  goods” (Taylor, 1987:1 apud

Schmidtz, 1991:2).

Esse exemplo simples pode ser generalizado para outras situações. Tomemos o caso do sistema de iluminação pública das cidades. O fato de um indivíduo usufruir da iluminação de um bairro não impede que outro indivíduo também   “consuma”   o   mesmo   bem   no   mesmo instante; além disso, é impossível impedir que um indivíduo beneficie-se da iluminação de espaços públicos. Ciente de que o custo do sistema é elevado, muitos indivíduos ver-se-iam tentados a atuar como “caronas”,   ou   seja,   “fingiriam”   não   se   importar em não ter iluminação pública, de modo a não ter que arcar com os custos de sua provisão. Porém, uma vez provido, usufruiriam o bem.

Stiglitz (1999:131) traz como exemplo a situação de algumas cidades americanas, nas quais o serviço de proteção contra incêndios é financiado por meio de contribuições voluntárias. Nesses casos, muitos indivíduos recusam-se a contribuir e, ainda assim, são protegidos pelos bombeiros locais, uma vez que, caso sua propriedade pegue fogo e os bombeiros não intervenham, o incêndio pode se alastrar para propriedades de contribuintes. Essa situação incentiva vários indivíduos a atuarem como caronas. Segundo o autor:

“The infeasibility of rationing by the price system implies that the competitive market will not generate a Pareto efficient amount of the   public   good   (…)   Clearly,   if   it   is   not   possible   to   use   price   to   ration a particular good, the good is not likely to be provided privately. If it is to be provided at all, government will have to take responsibility” (Stiglitz, 1999:131).

99 De um modo geral, Stiglitz (1999) identifica duas consequências, em termos de eficiência, da existência de bens públicos: subconsumo e sub-oferta. Suponha um bem caracterizado pela não rivalidade do consumo, mas com a exclusão sendo possível (por exemplo, assistir a uma televisão). Cabe notar que, nesse caso, o custo marginal de consumo do bem por mais de um indivíduo é zero. Nesse sentido, uma vez garantida a provisão do bem, sob o ponto de vista de eficiência, não há por que excluir um indivíduo adicional do seu consumo, uma vez que, ao consumi-lo, o indivíduo obteria um benefício marginal positivo a um custo marginal zero. Trata-se, claramente, de uma melhora de Pareto. Dessa forma, na visão da ESP, cobrar um preço por um bem não-rival é ineficiente, uma vez que excluiria indivíduos do consumo, resultando em subconsumo (Stiglitz, 1999:129). Contudo, caso não haja qualquer custo associado ao consumo desse bem, não haverá incentivo para provê-lo e, nesse caso, a ineficiência tomará a forma de sub-oferta.

O raciocínio desenvolvido no parágrafo anterior traz um exemplo simples para uma situação mais geral: no caso em que há dificuldades que impeçam a coordenação voluntária de indivíduos (caronas), o mercado perfeitamente competitivo não será capaz de prover uma quantidade Pareto-eficiente de bens públicos. Logo, segundo a ESP, a alocação ótima pode ser atingida por meio da intervenção do Estado na economia (impondo, por exemplo, uma obrigação de contribuir – ou seja, impostos).

Na presença de muitos indivíduos, o problema do carona tende a ser ainda maior. Como vimos ao apresentarmos a matriz de payoff de Buchanan (1968), os resultados de equilíbrio podem ser diferentes, caso um indivíduo assuma que seu comportamento influencia o comportamento dos demais, o que tende a ocorrer com maior probabilidade em grupos menores. Com base nesse problema, Clarke (1971) buscou desenvolver um mecanismo de votação que estimulasse a revelação correta de preferências,  com  base  na  “transformação”  de  uma  decisão  em  um  contexto  de  grande   número de atores para uma decisão em um contexto com um pequeno número92.

Cabe destacar que, após os trabalhos de Samuelson (1954, 1955), muitos autores questionaram a existência de bens públicos puros (Margolis, 1955). Mesmo a defesa nacional, utilizada como exemplo clássico, teve sua natureza de bem público

100 puro contestada, por exemplo, por Sandler (1977). Coase (1974), em trabalho que ficou  amplamente  conhecido,  demonstrou  que  o  caso  dos  “faróis  marítimos”,  citados   por Samuelson (1954) como exemplo das dificuldades associadas à provisão privada de bens públicos e que requereria, assim, intervenção governamental, não se sustentava. O autor, com base na descoberta de que na Inglaterra, nos século XVIII e XIX, os serviços de faróis marítimos foram oferecidos privadamente, argumenta que tais serviços poderiam ser (como de fato foram) um negócio lucrativo, dispensando a intervenção estatal para sua provisão.

Respondendo à crítica de Margolis (1955), Samuelson (1969) chama a atenção para a importância da distinção entre bens públicos puros e bens privados puros. Nesse contexto, surge o que se convencionou   chamar   de   “bens   públicos   impuros”.  Essa  definição  dá  origem  a  várias  formas  de  taxonomia  desses  bens.  Heade   (1962) e Peston (1972), por exemplo, com base nas duas características já apontadas dos bens públicos (não-rivalidade e não-exclusão), propõem a seguinte taxonomia93

94:

Quadro 2 – Taxonomia de bens

Possibilidade de exclusão Impossibilidade de exclusão Rivalidade no consumo Bens privados puros A

Não-rivalidade no

consumo B Bens públicos puros

Os  bens  “A”  são  rivais   no  consumo,  mas  sem a possibilidade de exclusão. Exemplos   clássicos   desses   bens   são   os   chamados   “recursos   comuns”   (common

resources). Um rio de grandes dimensões do qual vários pescadores extraem sua

renda é um exemplo clássico desta situação. Nesse caso, é difícil impedir que um potencial  pescador  “consuma”  esse  bem,  extraindo  sua  renda  da  pesca.  Por  outro  lado,   trata-se claramente de um bem rival: dois pescadores jamais poderão usufruir da

93 Para uma taxonomia alternativa, vide Buchanan (1968).

94 Peston (1972) chama atenção para o fato de que um bem pode enquadrar-se em uma categoria em

determinadas circunstâncias e em outra, dado um contexto distinto. Por exemplo, uma rodovia é considerada, geralmente, um bem não-rival no consumo. Contudo, se imaginarmos uma situação de engarrafamento, a rivalidade no consumo passa a existir. Voltaremos a essa questão na Parte IV deste trabalho.

101 totalidade da renda do mesmo peixe. Temos, portanto, um bem caracterizado pela impossibilidade de exclusão e pela rivalidade no consumo.

A existência de recursos comuns deu origem a um problema conhecido como   “tragédia  dos  comuns”.  A  descrição  desse   problema,  cujas  raízes  remontam   a   Malthus e seu clássico problema do crescimento populacional, foi feita pela primeira vez, de forma rigorosa, por Hardin (1968) 95. Trata-se basicamente de uma situação na qual um grupo de indivíduos agindo racionalmente (buscando maximizar sua utilidade) acaba por esgotar algum recurso econômico, o que, no longo prazo, não é de interesse de nenhum indivíduo. Isso porque o benefício imediato da exploração dos recursos é individual, enquanto seu custo é dividido por todos os membros do grupo. Voltando ao exemplo do parágrafo anterior, a exploração de um rio por um grupo de indivíduos agindo isoladamente pode levar, justamente, a essa situação: se a extração de peixes for superior à sua capacidade de reprodução natural, no médio e longo prazo pode-se configurar uma situação de escassez de peixes96.

A literatura da tragédia dos comuns é geralmente relacionada com problemas de sustentabilidade. Tem-se, nesse argumento, a justificativa para uma série de intervenções na economia de modo a limitar ou regular o consumo de determinado bem comum: sistema de licenças para caça/pesca em determinada região, regulações quanto à plantação em áreas ribeirinhas, licenças para atividades extrativas em geral, entre outros. Até mesmo a licença para poluição, que vimos na seção 3.3 desse trabalho, pode ser vista sob a  ótica  da  “tragédia  dos  comuns”.  

No entanto, o consumo dos bens comuns não precisa, necessariamente, ser regulado  pelo  Estado.  Alguns  analistas  aplicam  o  “Teorema  de  Coase”,  visto  acima,   para modelar problemas relacionados à tragédia de comuns, concluindo que, muitas vezes, o problema existe devido a uma definição imperfeita dos direitos de propriedade.  Outros  exemplos  de  soluções  alternativas  para  a  “tragédia  dos  comuns”   foram analisadas pela prêmio Nobel de economia de 2009, Elionor Ostrom. A autora desenvolveu uma série de trabalhos a respeito da governança de recursos comuns,

95 Baseado, como reconhece o próprio autor, nos trabalhos desenvolvidos por um matemático amador

do século XIX chamado William Forster Lloyd. Vide Hardin (1968:1244).

96 Na análise da criação de gado em um pasto comunitário, Hardin (1968:1244), assim, conclui: “Each   man is locked into a system that compels him to increase his herd without limit – in a world that is limited. Ruin is the destination toward which all men rush, each pursuing his own best interest in a society that believes in the freedom  of  the  commons.  Freedom  in  a  commons  brings  ruin  to  all”.

102 mostrando que, muitas vezes, os indivíduos envolvidos na exploração de determinados recursos criam instituições mais eficientes que aquelas resultantes da intervenção governamental e da privatização dos recursos97. Trata-se, portanto, de uma  espécie  de  “terceira  via”:  a  exploração  eficiente  do  recurso  não  dependeria  nem   puramente do mercado, nem puramente do Estado, mas de arranjos sociais criados voluntariamente pelos indivíduos. Por outro lado, Ostrom analisa, ainda, vários casos nos quais esses  “arranjos  sociais”  falharam98.

Os   bens   “B”   da   taxonomia   acima   são   aqueles   caracterizados   pela   não   rivalidade no consumo e pela possibilidade de exclusão. Esses bens ficaram conhecidos na literatura econômica  como  “club  goods”99. Um clube pode ser definido

como   “a voluntary group deriving mutual benefit from sharing one or more of the

following:  production  costs,  the  members’  characteristics,  or  a  good  characterized  by   excludable benefits”   (Cornes e Sandler, 1986:159). Cinemas, teatros, rodovias,

zoológicos, parques nacionais, clubes sociais são alguns exemplos de club goods (desde que não estejam lotados).

É importante entendermos que, antes das críticas aos trabalhos de Samuelson  e  do  surgimento  das  teorias  dos  “bens  públicos  impuros”,  esses  bens  eram   incluídos   no   gênero   maior   de   “bens   públicos”.   Como   tal,   dadas   as   características   mencionadas acima, eram vistos   como   exemplos   de   “falhas   de   mercado”   e,   consequentemente, sua provisão pelo governo era muitas vezes recomendada. A percepção desse contexto é fundamental para entendermos a importância dos estudos de Buchanan e outros a respeito dos club goods. Buchanan (1965) demonstra que bens cujos benefícios são desfrutados por mais de um indivíduo poderiam ser providos   eficientemente   pelo   setor   privado   por   meio   de   um   “clube”,   desde   que   os   custos de exclusão não fossem elevados. Nesse sentido, uma série de bens antes enquadrados   como   “bens   públicos”   e,   como   tais,   sujeitos   à recomendação de sua provisão pelo Estado, passaram a ser enquadrados numa outra categoria de bens, cuja provisão pelo mercado pode ser considerada eficiente sob algumas condições.

3.5. Bens meritórios

97 Vide, por exemplo, Ostrom (1990).

98 Para uma introdução aos trabalhos da autora, vide Ostrom (2009).