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Uma análise do processo de mercado

6.3. O elemento empresarial da ação humana

Para o entendimento da definição do homo agens, tal como exposta por Kirzner,   é   necessária   a   introdução   de   um   conceito   adicional:   o   “estado   de   alerta”.   Segundo o autor, uma das características do indivíduo, na sua busca constante pelo aumento do conforto, seria um estado de alerta quanto à definição de novos fins e à descoberta de oportunidades inexploradas até então. A tomada de decisões individuais envolveria, assim, a aquisição não-deliberada de  “novo  conhecimento”  a  respeito  da   realidade subjacente.

Em um processo de mercado, a superação da ignorância decorre da percepção de que as expectativas com relação aos planos dos demais indivíduos estavam equivocadas.   Os   participantes   do   mercado   estariam,   assim,   “alertas”   para   novas   oportunidades (novas no sentido de que não previstas no seu plano inicial) de comprar e   vender.   A   esse   “estado   de   alerta”   quanto   a   identificação   de   “novos objetivos

potencialmente   interessantes   e   para   novos   recursos   potencialmente   disponíveis”  

(Kirzner, 1986:26), o   autor   denomina   “elemento   empresarial”   da   ação   humana.   É   justamente este componente da escolha individual que difere o indivíduo maximizador robbinsiano do indivíduo misesiano. Para o autor, é o componente empresarial que nos permite dar conta do lado ativo e criador da ação humana.

Esta definição não é própria de Kirzner. Mises já havia definido o empresário como sendo o “homem que age visto exclusivamente do ângulo da incerteza inerente

a qualquer   ação” (Mises, 1995:250) e, mais especificamente no âmbito da teoria

econômica,   o   empresário   seria   o   “homem que age em relação as mudanças que

ocorrem   nos   dados   de   mercado” (Mises, 1995:251). Kirzner, por sua vez, define o

elemento empresarial da ação humana   como   sendo   “(...)   seu estado de alerta para

mudanças anteriormente não notadas nas circunstâncias que podem tornar possível conseguir, em troca do que quer que seja que eles têm a oferecer, muito mais do que era  até  então  possível” (Kirzner, 1986:12).

Essas definições de Mises e Kirzner mostram porque o componente empresarial da ação humana está ausente das teorias de equilíbrio. Como vimos na Parte I, no equilíbrio, as variáveis subjacentes (preferências, dotação de recursos e

170 tecnologias disponíveis) não se alteram; além disso, o conhecimento sobre a melhor forma de utilização desses recursos/tecnologias é perfeito (ou ótimo). Nesse contexto, não há espaço para a atividade empresarial. A escolha do indivíduo nos modelos de equilíbrio adotados pela ESP ocorre em um momento posterior à perfeita identificação do quadro de fins e meios. Um momento no qual não há novas oportunidades a serem descobertas e, portanto, no qual toda a atividade empresarial já foi realizada.

Novamente, para os austríacos, esta modelagem não é incorreta, mas incompleta. Se partirmos do pressuposto de que a identificação do quadro de fins e meios está dada, a decisão individual pode ser realmente explicada com base em um comportamento maximizador. Contudo, se considerarmos a tomada de decisões em um ambiente de ignorância radical, a ação individual não se limita à maximização com restrições, mas inclui a própria percepção subjetiva do quadro de meios e fins. Segundo Kirzner, somente ao reconhecer o elemento empresarial como característica inerente  da  ação  humana,  “pode ser possível explicar o padrão de mudança nas ações

de determinado individuo como resultado final de um processo de aprendizagem gerado  pela  experiência  acumulada  das  próprias  decisões” (Kirzner, 1986:27).

Nesta visão, apenas quando assumimos que cada indivíduo detém o conhecimento perfeito (ou ótimo) acerca dos condicionantes de sua decisão (o que inclui o comportamento dos outros agentes), a descrição de seu comportamento ótimo poderia ser feita baseando-se em um cálculo de maximização. Sob a ótica da decisão individual, essa é a tautologia apontada por Hayek na sua crítica aos modelos de equilíbrio: a escolha individual está necessariamente contida na definição das premissas do problema; a tomada individual de decisões ocorre de mecânico. A premissa   do   “conhecimento   perfeito” (ou ótimo) anula, para os austríacos, a importância do conceito de atividade empresarial. Este conceito só seria útil em um mundo caracterizado pela ignorância radical e, consequentemente, pelo desequilíbrio. A  descrição  do  processo  de  mercado  nesse  “mundo  imperfeito”  é  o  foco  da  teoria  da   atividade empresarial de Kirzner.

Como vimos, Hayek (1945:19) define o problema econômico da sociedade como   sendo   “garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos

recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem”.  Kirzner busca, com sua teoria, analisar esse problema, explicando como

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tomadores de decisões reveem sua visão do quadro de fins-meios pertinentes para suas  situações”  (Kirzner, 1986:29).

Para isso, o autor supõe uma economia hipotética sem conhecimento perfeito, mas na qual todos os participantes sejam maximizadores robbinsianos, ou seja, são tomadores de preço que maximizam utilidade/lucro. Contudo, no desequilíbrio, os preços que estes indivíduos tomam como dados são, por definição, preços de desequilíbrio. Nessa economia, os equívocos dos participantes robbinsianos ao maximizar lucro/utilidade tomando como base preços de desequilíbrio gerarão oportunidades de lucro inexploradas. Contudo, estas oportunidades jamais serão percebidas pelos indivíduos, uma vez que o quadro de meios e fins no qual decidem é tomado como um  “dado”  (não  há  nenhum  agente  que  o  altere, uma vez que todos são tomadores de preço).

O autor introduz, nessa  economia,  a  figura  do  “empresário  puro”:   “o tomador

de decisões cujo papel brota totalmente do seu estado de alerta em relação a oportunidades  até  então  despercebidas”(Kirzner, 1986:29). O empresário puro não

detém qualquer recurso econômico, de forma que seu comportamento não possui, inicialmente, nenhum componente de maximização robbinsiana. Sua atuação restringe-se à capacidade inerente de identificar e explorar as oportunidades de lucros. Para fazê-lo, não há necessidade de recursos próprios, bastando que o empresário tome recursos emprestados e descubra onde os compradores vêm pagando um preço muito elevado e onde os vendedores vêm recebendo um valor muito baixo. O lucro obtido  com  essa  operação  é  chamado  por  Kirzner  de  “lucro  empresarial  puro”:  

“O lucro empresarial puro é a diferença entre dois conjuntos de preços (...) Ele provém da descoberta de vendedores e compradores de alguma coisa pela qual os últimos pagarão mais do que os primeiros pedem. A descoberta de uma oportunidade de lucro significa a descoberta de alguma coisa  obtenível  em  troca  de  nada”

(Kirzner, 1986:35) 160.

160 A noção de atividade empresarial de Kirzner guarda certa relação com a desenvolvida por Knight

(1972),  como  reconhece  o  próprio  autor:  “...embora o tratamento por Knight do papel empresarial não

seja plenamente satisfatório, sua identificação de onde está localizada a atividade empresarial é soberba. Knight identifica a atividade empresarial como controle e responsabilidade (...) É fácil ver que a noção de controle final de Knight é imediatamente identificável com minha própria noção de “conhecimento  último”   – isto é,  com  o  estado  de  alerta  empresarial”   (Kirzner, 1986:59). Para mais

172 A separação entre os dois tipos de participantes é um artifício teórico. Segundo o autor, todos os indivíduos agem de forma integrada, uma vez que qualquer tomada de decisão envolve sempre um componente de especulação, seguido de um componente de maximização. Um produtor, por exemplo, atua tanto como proprietário de recursos quanto como empresário. Como proprietário de recursos, ele maximiza seu lucro com base nas funções de receita e custo (a combinação ótima de insumos é uma atividade maximizadora). Contudo, ao contrário do que costumeiramente se assume,   essas   funções   não   são   “dadas”   ou   “conhecidas”.   A   estimativa dessas funções, com base nas expectativas com relação ao comportamento dos demais atores (sejam consumidores ou fornecedores), é parte do componente empresarial do produtor. Ao fazê-lo, busca-se a oportunidade de vender por preços mais altos aquilo que se adquiriu a um custo mais baixo. A ação do proprietário e a do empresário (que, como vimos, em  sua  versão  “pura”, independe da propriedade de recursos) devem ser vistas, portanto, como distintas.

Boudreaux e Holcombe (1989) destacam essa diferença afirmando que, na “firma  marshalliana”,  os  responsáveis  pela  condução  da  firma  são  “gerentes”  e  não   “empresários”.  Isso  porque  a  tomada  de  decisão consiste simplesmente na escolha da combinação ótima entre os insumos para a produção da quantidade ótima de produto(s), dado o preço de mercado 161 . Em outras palavras, dada determinada função de produção Q = f(K, L), o gerente busca a combinação ótima de K (capital) e

L (trabalho) que maximize seus lucros. A tecnologia é um dado para o gerente, assim

como as características e quantidades de K e L. Consequentemente, a função de produção é também um dado. O produto a ser produzido (Q) é o mesmo para todas as firmas. Trata-se de um mero exercício de maximização robbinsiana.

Contudo, Holcombe (2006) argumenta que uma visão mais empresarial da firma mostra que esse exercício de maximização é uma parte muito pequena do trabalho dos tomadores de decisão de uma empresa:

“Most significantly, they are always looking for ways to change the characteristics of Q to make their output more appealing to consumers. They are also looking for new production methods to cut costs or make it cost-effective to add features to a product that were not economically feasible under older technologies, and they are

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looking for new inputs that can be more effective in the production process. K and L are not homogenous, and different types of capital goods, and workers with different sets of skills, could be used in a new production process to produce  new,  better,  cheaper  products”

(Holcombe, 2006:194).

Esta distinção entre a “firma marshalliana” e a “firma austríaca” é coerente com a teoria da atividade empresarial de Kirzner. Nos dois casos, o que gera a oportunidade de lucros empresariais puros é a situação de conhecimento imperfeito com a qual se deparam todos os agentes do mercado. São estas oportunidades que permitem que o empresário - que perceba sua existência antes dos demais - lucre.

Logo, a teoria empresarial de Kirzner é um tipo de teoria   de   “arbitragem”,   como reconhece o próprio autor:

“As oportunidades de lucro surgem quando os preços dos produtos nos mercados de produtos não estão ajustados aos preços dos serviços de recursos nos mercados de fatores. Em outras palavras, ‘algo’   está sendo vendido a preços diferentes em dois mercados, como consequência da imperfeição da comunicação entre os mercados.   Esse   ‘algo’,   é   verdade,   é   vendido   sob   formas   físicas   diferentes nos dois mercados: no mercado de fatores, aparece como um pacote de insumos, e no mercado de produtos, aparece como um bem   de   consumo.   Mas,   economicamente,   ainda   temos   a   ‘mesma’   coisa sendo vendida a preços diferentes, porque o pacote de insumos contém tudo o que é tecnologicamente exigido (e não mais do que é exigido) para produzir o produto. O empresário nota a discrepância de preço   antes   que   outros   a   notem” (Kirzner,

1986:60).

Percebe-se   que   essa   “arbitragem”   não   é   a   arbitragem   tal   como   entendida   no   conceito usual. O empresário não está notando, simplesmente, a discrepância de preços entre um mesmo produto vendido nos mercados de Brasília e de São Paulo, por exemplo. Está notando a discrepância entre insumos a priori e produtos a

posteriori. Está prevendo que os preços futuros desses produtos serão superiores aos

custos envolvidos em sua fabricação. A decisão de atuar no mercado ocorre no momento da compra dos insumos. Nesse momento, a preferência dos consumidores

174 por aquele produto (e, portanto, o preço de comercialização) só existe como expectativa do empresário na elaboração de seu plano de ação. Como a fabricação dos produtos finais leva tempo (e consome recursos), a decisão empresarial está necessariamente envolta em incerteza - assim como, para Mises (1995), toda ação humana.

Nesse sentido,  para  Kirzner  não  é  o  “risco”  que  remunera  o  empresário,  mas a discrepância de preços dos produtos e dos fatores. Esta discrepância é a oportunidade já existente, percebida e aproveitada pelo empresário. Se imaginarmos um mundo no qual as variáveis subjacentes não se alteram, fica clara a razão pela qual o autor considera   essa   força   como   “equilibradora”.   Com   o   passar   do   tempo,   todas   essas   oportunidades  vão  sendo  percebidas  e  “eliminadas”  pelos  empresários  até  o  ponto  no   qual inexistem desajustes entre os mercados de fatores e o de produtos. Esse ponto é o equilíbrio de mercado.