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2.3. O equilíbrio geral de Arrow-Debreu e os teoremas de bem-estar A existência do equilíbrio geral em um mercado competitivo, a priori, nada

2.3.2. O Segundo Teorema do Bem-Estar

O Segundo Teorema do Bem-Estar pode ser entendido como uma proposição inversa a do primeiro. De acordo com o segundo teorema, qualquer alocação de recursos Pareto-eficiente corresponde a uma alocação de equilíbrio competitivo, dada determinada dotação inicial dos recursos (tanto de bens como de propriedade das firmas). Isso significa que, caso a sociedade não esteja satisfeita com a distribuição de recursos entre os indivíduos em um determinado equilíbrio, bastaria encarregar o governo de empreender uma redistribuição lump-sum da riqueza inicial e deixar o

54 mercado livre para operar, permitindo que se alcance um novo equilíbrio. Sob o ponto de vista da redistribuição de renda de uma economia, a transferência lump-sum surge, assim, como uma alternativa mais eficiente que outras formas de intervenção do Estado na economia, como controle de preços, controle da produção, entre outros.

O Segundo Teorema demonstra, portanto, que o mercado permanece o melhor meio de se promover a eficiência alocativa, ainda que o Estado deseje promover políticas redistributivas  com  base  em  critérios  como  “justiça”  e  “equidade”.   Seria possível, assim, alterar a distribuição de recursos na economia, sem, teoricamente, perder em termos de eficiência alocativa.

Surge, então, outra questão: Como avaliar a justiça e/ou equidade por trás de uma redistribuição? Como definir uma distribuição justa de recursos na economia? Como vimos, para considerações desse tipo, é necessária a inclusão de um critério ético, que permita escolher qual a melhor entre as diversas alocações Pareto- eficientes.

Esse critério ético é comumente introduzido por meio da definição de uma Função de Bem-Estar   Social.   Esta   função   indicaria   o   “bem-estar”   da   sociedade   proveniente de determinada alocação de recursos. Varian assim define a função de bem-estar social:

“This is supposed to be a function that aggregates the individual utility   functions   to   come   up   with   a   ‘social   utility’.   The   most   reasonable interpretation of such a function is that it represents a social   decision   maker’s   preferences   about   how   to   trade   off   the utilities  of  different  individuals” (Varian 1992:333).

Trata-se,   portanto,   da   introdução   de   um   critério   de   “justiça”   ou   “equidade”   na análise. É importante destacar que a real existência de uma função de bem-estar, bem como o formato que ela assumiria em uma sociedade, é alvo de grandes controvérsias. Essa discussão , contudo, foge ao escopo deste trabalho.

Stiglitz (1991a:4) destaca que o Segundo Teorema tem implicações diretas no modo como os economistas pensam a organização econômica, por permitir a separação de questões de eficiência econômica de questões de equidade. “Economists

need   not   concern   themselves   with   value   judgments;;   whatever   the   government’s   distributive objectives, it implements these through initial lump sum taxes and subsidies, and then leaves the market to work for itself” (Stiglitz, 1991a:5).

55 No entanto, o autor defende que a presença de problemas de informação assimétrica invalidam as conclusões do Segundo Teorema do Bem-Estar. Nesse caso, o governo não pode contar com impostos lump sum para proceder a uma redistribuição de recursos na economia. Isso ocorre em virtude da impossibilidade de determinar quem deve pagar e quem deve receber o benefício, uma vez que a informação necessária para a tomada desse tipo de decisão, em geral, não está disponível. Dado esse problema de informação assimétrica, os indivíduos teriam incentivos para não revelar corretamente suas preferências, introduzindo distorções no sistema e, consequentemente, gerando uma alocação sub-ótima de recursos. Mirless (1971) é outro que defende o mesmo ponto de vista: na presença de informação imperfeita, não há como falar de redistribuição lump sum de recursos, sendo toda taxação redistributiva necessariamente distorciva.

A impossibilidade de adoção de uma redistribuição de recursos lump sum deu origem a toda uma literatura, denominada   “The New New Welfare Economics”   (Stiglitz, 1987), na qual se analisam as possibilidade de intervenção do governo, dado o problema de informação limitada. Nesse contexto, o custo das intervenções governamentais   que   buscam   “corrigir”   distribuições   de   renda   “inadequadas”   do   mercado é muito maior do que aquele considerado em um modelo perfeitamente competitivo.

Assim, na presença de informação imperfeita, uma das principais consequências do Segundo Teorema, a separação entre questões de eficiência e de equidade, não é válida, com a desigualdade de renda podendo ter sérias consequências para a eficiência econômica (Stiglitz, 1994:47). Um exemplo comumente apresentado por Stiglitz é o problema de incentivo existente na produção agrícola por meio do sistema de parceria (sharecropping) 37.

Os problemas provenientes de presença de informação assimétrica, bem como   “desenhos  ótimos”  de   intervenção recomendados por Stiglitz e outros autores da ESP nesses casos, serão estudados no capítulo 4.

56 2.4 Comentários finais à parte I

Antes de passarmos à análise das falhas de mercado propriamente dita, é útil tecermos alguns comentários sobre o modelo de equilíbrio competitivo que desenvolvemos nas seções anteriores. Quando chamamos a atenção para o caráter restritivo das premissas do modelo de Arrow-Debreu, não pretendemos ignorar o fato que, desde 1954, vários trabalhos38 buscaram demonstrar como, mesmo com a flexibilização de algumas das hipóteses do modelo, o mercado livre ainda assim alcança resultados Pareto-eficientes. Contudo, estamos interessados, neste trabalho, na lógica que embasa um modelo de equilíbrio geral e nas principais críticas da ESP e da EA a este raciocínio, e não em seus detalhes e formulações mais avançadas.

Nas seções anteriores, buscamos demonstrar o referencial que comumente se adota para a determinar se um mercado funciona com ou sem falhas. A análise, baseada no critério de Pareto, tem como ponto de partida uma hipotética situação de equilíbrio estático da economia, caracterizado pela impossibilidade de melhorar a situação de um indivíduo sem que, com isso, piore a situação de outro(s). Trata-se de um   estado   “estático”   pois   não   há   nenhuma   mudança   possível   que   implique   uma   “melhora   de   Pareto”.   Temos, assim, uma descrição da economia em que não é possível qualquer troca mutuamente benéfica entre indivíduos, qualquer aumento/diminuição de produção, qualquer alteração na composição do que é produzido ou, resumidamente, qualquer comportamento dos agentes econômicos que gere uma melhora de Pareto.

Logicamente, se supusermos uma economia real funcionando nessa situação, não haveria qualquer função alocativa a ser desempenhada pelo Estado. Nesse sentido, para os economistas do setor público, a resposta à pergunta acerca da existência de espaço para a intervenção do Estado no mercado de forma a buscar uma alocação mais eficiente de recursos, no caso de uma economia em equilíbrio competitivo, seria indiscutivelmente negativa. Toda a ação do Estado nesta economia dependeria de uma definição ex ante de um critério ético de distribuição dos recursos. É importante destacar que todo o raciocínio desenvolvido na Parte I desse trabalho parte de uma definição particular da economia, enunciada de forma clara por Lionel Robbins e que pode ser resumida da seguinte forma: a economia é a ciência

57 que estuda qual a melhor forma de utilizar meios escassos, em diferentes aplicações, para satisfazer as necessidades humanas (Robbins, 1932).

Como a concepção de Robbins assume implicitamente o conhecimento sobre meios e fins, o problema econômico de  “descobrir  a  melhor  forma  de  se  utilizar  meios   escassos”   torna-se um problema de otimização, sujeito a restrições (como, por exemplo, a maximização da utilidade pelos consumidores, sujeita a sua restrição orçamentária; ou a maximização dos lucros pelas empresas, sujeita a sua estrutura de custos). Visto de outra forma, partindo dessa definição de economia, os recursos econômicos e as preferências dos indivíduos estão dados (sua alteração depende de mudanças exógenas ao modelo), consistindo  o  “problema  fundamental”  da  economia   em como não desperdiçá-los (ou como utilizá-los da melhor forma possível).

Assim,  ao  assumir  que  a  “tecnologia”,  “preços”  e  “preferências”  são  dados39, é natural que o modus operandi da ciência econômica, e mesmo do próprio agente econômico –seja ele consumidor ou produtor –, possa ser descrito por meio de operações matemáticas. O empresário, nesse modelo, pode ser descrito como um técnico que, de posse dos dados a respeito da tecnologia de produção e do preço de mercado, calcula o nível de produção ótimo, no qual o custo marginal de produção é igual ao preço. Segundo Stiglitz,

“(...) decision making is indeed a boring task: managers do nothing more than follow the textbook prescriptions of how to behave; they simply set marginal cost equal to price and, to borrow Joan Robinson’s   phrase,   they   look   up   in   the   Book   of   Blueprints   the   appropriate page corresponding to current factor prices” (Stiglitz,

1991a:26).

O consumidor, por outro lado, ciente de suas próprias preferências, de sua restrição orçamentária e do preço de mercado, calcula a cesta de consumo que lhe traria mais utilidade40.

39 Ou, mais corretamente, que são exogenamente determinados.

40 Friedman (1970) argumenta que o fato de esse processo ser feito consciente ou inconscientemente

não valida/invalida sua veracidade. A explicação do argumento do autor é feita por meio de uma analogia com um jogador de sinuca: este pode não saber nada sobre as leis da física, o que não o impede de, ao jogar, agir conforme essas determinações. Ademais, a ignorância do jogador não impede o analista de utilizar as leis da Física para descrever ou mesmo prever o resultado de determinada jogada.

58 Buchanan capturou a essência desse modo particular de análise da economia:

“If the classical and currently renewed emphasis on the  ‘wealth  of   nations’  remains  paramount,  and  if  the  logic  of  choice  or  allocation   constitutes the "problem" element, the economist will look on market order as a means of accomplishing the basic economic functions that must be carried out in any society. The "market" becomes an engineered construction, a "mechanism," an "analogue calculating machine," a "computational device," one that processes information, accepts inputs, and transforms these into outputs which it then distributes. In this conception, the "market," as a mechanism, is appropriately compared with "government," as an alternative mechanism for accomplishing  similar  tasks” (Buchanan, 1964:219).

Segue, assim, que, a partir dessa definição da economia e da adoção de um critério de eficiência estático, empreendeu-se   forte   “matematização”   da   ciência   econômica.  Os  seguidores  da  chamada  “economia  lógica”  (Mises,  1995)  passaram  a   ser vistos, por grande parte dos economistas do mainstream, como carentes de uma metodologia científica sólida:

“A trabalhosa elaboração literária de conceitos matemáticos essencialmente simples que caracteriza a maior parte da moderna teoria econômica não só não compensa, do ponto de vista do progresso da ciência, como também exige uma ginástica mental de um tipo especificamente corrompido” (Samuelson, 1983).

O   principal   instrumento   dessa   matematização,   o   uso   do   “método   de   otimização”,   passa,   assim,   a   permear   praticamente   toda   a   ciência   econômica

mainstream. Essa é justamente a percepção de Samuelson:

“(...)[o problema de maximização] não se trata, de forma alguma, de um caso isolado e acidental; é meramente uma aplicação de um princípio muito geral do método da Economia, que jaz no fundo de boa parte da teoria econômica (...) afora as partes da doutrina econômica cujos resultados são inconclusivos não existe muito que não possa se enquadrar nesse caso” (Samuelson 1983).

O autor vai ainda mais longe, afirmando que a aplicação das condições de maximização  seria  praticamente  a  única  forma  de  se  alcançar  “conclusões  confiáveis”  

59 em grande parte da economia: “...num   grande   número   de   problemas   econômicos   é  

admissível e mesmo obrigatório considerar nossas equações de equilíbrio como condições de maximização”   (Samuelson   1983).   Tem-se, assim, a era do formalismo

matemático na ciência econômica.

Interessante  notar  que  o  “pai”  da  definição  de  eficiência  comumente  adotada   pela economia neoclássica, Vilfredo Pareto, foi um dos maiores entusiastas da proeminência matemática no estudo da economia:

“Todas as ciências naturais chegaram agora ao ponto no qual os fatos são estudados diretamente. Também a Economia Política chegou a esse ponto, pelo menos em grande parte. Apenas nas outras ciências sociais é que ainda há quem se obstine em raciocinar sobre palavras; no entanto, é preciso desembaraçar-se desse método, se quisermos   que   as   ciências   progridam” (Pareto,

1996:39).

Chamamos a atenção para esse fato, bem como para a forte presença da linguagem matemática nos modelos de equilíbrio neoclássicos, porque, como veremos nas Partes III e IV desse trabalho, esse entusiasmo com modelos formais, assim como a excessiva matematização da ciência econômica, é um dos grandes focos de crítica presente nas obras de pensadores da Escola Austríaca41.

41 A título de exemplo, vejamos o que Ludwig von Mises tem a dizer a esse respeito:    “[O  economista  

matemático] limita-se a descrever um modelo auxiliar que é utilizado pelos economistas lógicos como um conceito limite, ou seja, como uma descrição de um estado de coisas no qual não haja mais ação e o processo de mercado atinja completa imobilidade (...) Aquilo que o economista lógico descreve em palavras quando define as construções imaginárias do estado final de repouso e da economia uniformemente circular (..) é transformado em símbolos algébrico (...) A descrição matemática de vários estados de equilíbrio é mera digressão. O importante é analisar o processo de mercado. (...) Suas equações e fórmulas limitam-se a descrever estados de equilíbrio e de imobilidade. Seus procedimentos matemáticos não nos podem trazer nenhuma informação acerca da formação de tais estados ou de sua transformação em outros estados (...) Os problemas de análise do processo de mercado, isto é, a única questão matemática que realmente importa, desafiam qualquer abordagem matemática. A introdução do parâmetro tempo nas equações não é uma solução (...) A principal deficiência não é ignorar a sequência temporal, mas ignorar o funcionamento do processo de mercado. O método matemático é incapaz de explicar como, a partir de um estado de desequilíbrio, surgem  as  ações  que  tendem  a  estabelecer  um  equilíbrio.” (Mises, 1995:350-351).

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PARTE II

A ECONOMIA DO SETOR