Uma análise do processo de mercado
5.3. A utilidade do equilíbrio em uma análise austríaca
Nesse ponto da análise, ressaltamos que o conceito de equilíbrio não é descartado pelos austríacos. Holcombe (2006:191) destaca que a crítica principal dos austríacos é que as análises do equilíbrio “contam apenas uma parte pequena da
história do ajustamento econômico”. O conceito do equilíbrio permanece importante
na análise austríaca por duas razões principais: pela sua utilidade como uma “construção imaginária” para se estudar fenômenos específicos do mercado e pela existência de uma tendência em direção ao equilíbrio.
A primeira função foi largamente explorada por Mises (1995). Segundo o autor, uma construção imaginária pode ser definida como “uma imagem conceitual de
uma série de eventos resultantes, como consequência lógica, dos elementos de ação
mudança pode não estar prevista nos planos de algum(ns) indivíduo(s), mas estar prevista no de outro(s) (Hayek, 1937:41).
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empregados na sua formação” (Mises, 1995:235). Mises, ao definir uma construção
imaginária, ressalta que o analista não pretende estar descrevendo uma situação existente na vida real ou mesmo que eventualmente poderia existir. Construções altamente irrealistas podem ser úteis para a compreensão da realidade, caso adotadas com cautela e sabedoria pelo analista. Mises (1995) descreve uma série de construções imaginárias, segundo suas características e fenômenos que ajudariam a esclarecer.
Na descrição do processo de mercado, Mises (1995) faz bastante uso da construção imaginária denominada pelo autor de “economia uniformemente circular”. Esta consistiria em um situação caracterizada pela ausência de mudanças e pela estabilidade de preços. O autor argumenta que tal sistema não é concebível na realidade145 e que o único problema a ser elucidado por meio da sua utilização seria o da “relação entre os preços dos produtos e os dos fatores necessários à sua
produção, bem como os problema implícitos na atividade empresarial e na conta de lucros e perdas” (Mises, 1995:246). Dessa forma, o autor utiliza um modelo de
economia sem mudança para explicar como a atividade empresarial, caracterizada por uma busca constante por lucrar com as discrepâncias de preço verificadas no mercado, tende a eliminar essas discrepâncias, o que resultaria finalmente em uma “economia uniformemente circular”.
Apesar de fazer uso de uma série de construções imaginárias para analisar o processo de mercado e defender explicitamente sua utilidade, Mises afirma que “um
dos maiores problemas da ciência consiste em evitar as falácias que o emprego inadequado dessas construções pode acarretar” (Mises, 1995:200). Na visão de
Mises,
“Os economistas matemáticos falham por não considerar as ações que, na hipótese imaginária de não surgirem dados novos, provocariam a instauração da economia uniformemente circular. (...) Fixam sua atenção exclusivamente no imaginário estado de equilíbrio que o conjunto de todas essas ações individuais engendraria se não houvesse mudança nos dados. Descrevem esse equilíbrio imaginário por conjuntos de equações diferenciais
145 “Um sistema rígido como esse não pode ser povoado por homens fazendo escolhas e cometendo erros;; é um mundo de autômatos sem alma e incapazes de pensar” (Mises, 1995:246)
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simultâneas146 (...) Dedicam todos os seus esforços à descrição, por meio de símbolos matemáticos, dos vários “equilíbrios”, isto é, estados de repouso e de ausência de ação. Consideram o equilíbrio uma entidade real e não uma noção limitativa, uma simples ferramenta mental” (Grifo nosso) (Mises, 1995:248).
A essência da crítica austríaca ao caráter central que as análises de equilíbrio adquiriram na ESP está justamente na frase grifada. Não se trata de uma crítica à concepção de construções imaginárias per se, mas à forma de sua utilização.
Outra utilidade do estudo do conceito de equilíbrio é que, segundo Mises (1995) e Hayek (1937), o mercado livre apresentaria uma tendência ao equilíbrio. Para Mises, essa tendência é explicada pela atividade dos empresários do mercado, na sua busca constante por aproveitar oportunidades de lucros. Sua explicação passaria, portanto, por uma teoria da atividade empresarial (como veremos no capítulo seguinte). Por outro lado, Hayek (1937) afirma que sua constatação dessa suposta tendência ao equilíbrio não é fruto de uma dedução lógica a partir de um raciocínio científico, mas uma conclusão a partir de observações empíricas.
Para o autor, essa tendência ao equilíbrio significa que, dadas certas condições, os planos dos indivíduos tenderão a convergir cada vez mais, ou, em outras palavras, as expectativas dos indivíduos se tornarão cada vez mais corretas (Hayek, 1937:45) 147. A partir dessa definição, o autor defende a necessidade de se esclarecer: i) as condições para que essa tendência se verifique e ii) a natureza do processo de mudança do conhecimento individual, ou seja, do aprendizado dos indivíduos148.
Esses dois problemas, cuja solução é, para Hayek, tarefa essencial do analista econômico, são ignorados, muitas vezes, por meio da suposição de que, no equilíbrio competitivo (mercados perfeitamente competitivos), todo evento é automatica e
146 O autor obviamente se referia à noção de equilíbrio geral tal como concebida inicialmente por
Walras; contudo, a natureza da crítica não é em nada prejudicada se a direcionarmos para o modelo de equilíbrio competitivo de Arrow-Debreu.
147 No próximo capítulo, veremos com a teoria de Kirzner sobre a atividade empresarial buscou unir as
visões de Mises e Hayek.
148 A ênfase do autor no estudo de instituições na segunda metade do século XX pode ser entendida, em
156 instantaneamente compreendido por todos os agentes do mercado para os quais aquela informação seja relevante. Nesse sentido, como afirma o autor,
“The statement that, if people know everything, they are in equilibrium is true simply because that is how we define equilibrium. The assumption of a perfect market in this sense is just another way of saying that equilibrium exists but does not get us any nearer an explanation of when and how such state will come about” (Hayek, 1937:46).