A ECONOMIA DO SETOR PÚBLICO TRADICIONAL
3.5. Bens meritórios
mostrando que, muitas vezes, os indivíduos envolvidos na exploração de determinados recursos criam instituições mais eficientes que aquelas resultantes da intervenção governamental e da privatização dos recursos97. Trata-se, portanto, de uma espécie de “terceira via”: a exploração eficiente do recurso não dependeria nem puramente do mercado, nem puramente do Estado, mas de arranjos sociais criados voluntariamente pelos indivíduos. Por outro lado, Ostrom analisa, ainda, vários casos nos quais esses “arranjos sociais” falharam98.
Os bens “B” da taxonomia acima são aqueles caracterizados pela não rivalidade no consumo e pela possibilidade de exclusão. Esses bens ficaram conhecidos na literatura econômica como “club goods”99. Um clube pode ser definido
como “a voluntary group deriving mutual benefit from sharing one or more of the
following: production costs, the members’ characteristics, or a good characterized by excludable benefits” (Cornes e Sandler, 1986:159). Cinemas, teatros, rodovias,
zoológicos, parques nacionais, clubes sociais são alguns exemplos de club goods (desde que não estejam lotados).
É importante entendermos que, antes das críticas aos trabalhos de Samuelson e do surgimento das teorias dos “bens públicos impuros”, esses bens eram incluídos no gênero maior de “bens públicos”. Como tal, dadas as características mencionadas acima, eram vistos como exemplos de “falhas de mercado” e, consequentemente, sua provisão pelo governo era muitas vezes recomendada. A percepção desse contexto é fundamental para entendermos a importância dos estudos de Buchanan e outros a respeito dos club goods. Buchanan (1965) demonstra que bens cujos benefícios são desfrutados por mais de um indivíduo poderiam ser providos eficientemente pelo setor privado por meio de um “clube”, desde que os custos de exclusão não fossem elevados. Nesse sentido, uma série de bens antes enquadrados como “bens públicos” e, como tais, sujeitos à recomendação de sua provisão pelo Estado, passaram a ser enquadrados numa outra categoria de bens, cuja provisão pelo mercado pode ser considerada eficiente sob algumas condições.
3.5. Bens meritórios
97 Vide, por exemplo, Ostrom (1990).
98 Para uma introdução aos trabalhos da autora, vide Ostrom (2009).
103 Segundo Stiglitz,
“(…) if we look at the bulk of the goods which are being publicly provided, and which constitute the major source of budgetary problems facing the United States and many western European countries, it is expenditures on social security, medical care, and education. These are all private goods, in the sense that they violate both conditions of pure public good. Indeed, all of these goods have been, and in many places continue to be, provided privately”
(Stiglitz, 1992:13).
Nesse excerto, Stiglitz chama a atenção para um fato de suma importância: grande parte dos recursos orçamentários dos Estados é hoje gasta com o provimento de bens privados. Essas características ficam evidentes quando analisamos, por exemplo, o sistema de saúde. Trata-se de um bem no qual há rivalidade no consumo: se nos consultamos com um determinado médico às 15h00, ninguém mais pode se consultar com o mesmo médico nesse mesmo horário. Ademais, há a possiblidade de exclusão: um médico pode recusar-se a atender um paciente caso ele se recuse a pagar o preço estabelecido por uma consulta.
O provimento de alguns bens privados pelo Estado - como a educação - pode ser justificado pela presença de externalidades positivas ou - como veremos no capítulo seguinte - de informações assimétricas, isto é, pela existência de falhas de mercado. Contudo, alguns autores destacam, ainda, argumentos relacionados a uma característica supostamente meritória de tais bens. Na definição de Musgrave (1976:34), “ [algumas necessidades] tornam-se necessidades públicas se
consideradas de tal modo meritórias que sua satisfação seja suprida através do orçamento publico, além daquilo que é provido pelo mercado e pago pelos compradores particulares”.
Assim, em casos como assistência social, educação, saúde, entre outros, Stiglitz acredita haver razões relacionadas à característica meritória desses bens que possam embasar uma intervenção estatal. No caso da assistência social, o autor afirma que “society may believe that individuals should put money away for their future,
whether they like it or not” (Stiglitz, 1992:14); já a educação, segundo o autor, “(…)is usually cited as the example par excellence of a merit good: in the United States we require all children to go to school for 16 years, because we believe that it is good for
104
them, regardless of what they or their parents think” (Stiglitz, 1992:16); por fim, no
caso da saúde, “there is a widespread view that an individual should not be allowed to
kill himself, and by the same token, if he cannot be forced to get appropriate medical care, at very least, we should put no economic barriers in to his doing so” (Stiglitz,
1992:17).
A justificativa da intervenção do Estado na economia tendo como base o provimento de bens meritórios é controversa, conforme reconhecido pelo próprio autor: “Many economists are suspect of the merit goods argument which I have
invoked at several points: they believe in consumer sovereignty; and they do not believe that the State has the right to tell anyone what to do, in areas that do not directly impinge on other” (Stiglitz, 1992:18).
A razão da controvérsia é evidente: o argumento vai de encontro a uma das premissas mais caras da ciência econômica, a soberania do consumidor. Trata-se, portanto, de uma visão essencialmente “paternalista” do Estado. É importante recordarmos que por trás da ideia de soberania do consumidor está a crença de que cada indivíduo sabe o que é melhor para si. Nesse sentido, atacar a premissa de soberania do consumidor é atacar um dos pilares mais importantes da ciência econômica.
Uma das justificativas que embasaria a intervenção do governo com base no argumento dos bens meritórios é justamente que um governo benevolente “saberia melhor” que o indivíduo qual a decisão ótima (Cullis e Jones, 2009: 84). Como a informação é, por vezes, considerada um “bem” sujeito a falhas de mercado100, o fato de o governo supostamente ter mais informação o qualificaria a tomar uma decisão mais acertada. Contudo, como vimos, uma intervenção com base nesses argumentos significa um rompimento com um dos paradigmas básicos da ciência econômica: que cada indivíduo é quem melhor sabe a respeito de seu próprio bem-estar ou utilidade. Como questionam Cullis e Jones (2009:84), como o julgamento individual pode ser suspenso somente em algumas partes da análise econômica, sem que isso a torne inconsistente e arbitrária? Mooney (1979) sugere que os indivíduos possam escolher por delegar suas decisões aos experts do governo. Contudo, essa delegação não garante que o resultado seja Pareto-eficiente. Além disso, restaria o problema da
100 Discutiremos mais profundamente falhas de mercado provenientes da presença de informação
105 definição de uma regra de decisão social que fosse aceitável (por exemplo, maioria qualificada ou unanimidade) 101.
A provisão pública de bens privados tendo por base, exclusivamente, o argumento meritório não constitui uma falha de mercado. As intervenções feitas sob esse raciocínio partem da ideia de que, para alguns bens, o Estado saberia melhor a quantidade ótima a ser consumida pelos indivíduos de uma sociedade e que essa quantidade difere daquela gerada em um sistema de trocas voluntárias. Como a discussão sobre a justificativa meritória não tem por base o argumento da eficiência, ela foge ao escopo deste trabalho.
Contudo, deve-se ressaltar que esse não é o único argumento que justifica a provisão pública de certos bens privados. Como já vimos, no caso da educação, muitos autores defendem que, dada a presença de externalidades positivas, uma intervenção do Estado pode gerar melhoras de Pareto. Já no caso da saúde, a razão está geralmente associada à presença de informação imperfeita. Falhas de mercado resultantes de um mercado com informação imperfeita é justamente o tema do próximo capítulo.
101 As discussões sobre regras de decisão social constituem uma das áreas mais importantes da
chamada teoria da escolha pública. Para uma introdução a essa discussão, vide Tullock, Seldon e Brady (2005).
106 4. STIGLITZ E A “NOVA ECONOMIA DA INFORMAÇÃO”102
O Nobel de Economia de 2001 foi conferido a Joseph Stiglitz, George Arkelof e Michael Spence, “for their analyses of markets with asymmetric
information"103. Na ocasião do recebimento do prêmio, Stiglitz afirmou que os
trabalhos desenvolvidos na área da chamada “nova economia da informação”104 constituiriam verdadeira revolução na ciência econômica (Stiglitz, 2001a)105:
“To be sure, economists over the preceding three decades had identified important market failures – such as the externalities associated with pollution – which required government intervention. But the scope for market failures was limited, and thus the arenas in which government intervention was required were limited. (…) The essential insight of Greenwald and Stiglitz [1986] was to recognize that such externality-like effects are pervasive whenever information is imperfect or markets incomplete – that is always – and as a result, markets are essentially never constrained Pareto efficient. In short, market failures are pervasive” (Stiglitz, 2001a: 503,505).
Para o autor, o divisor de águas foi justamente o modo como se passou a encarar a presença de falhas de mercado. Se no desenvolvimento da abordagem clássica de falhas de mercados (que vimos no capítulo anterior), a suposição implícita era que as falhas constituíam a exceção para a regra de funcionamento perfeito do mercado, nos estudos de economia da informação desenvolvidos por Stiglitz é o funcionamento perfeito do mercado que constitui a exceção para uma situação preponderante de presença de falhas de mercado (Stiglitz, 1991a:19).
102 A expressão foi retirada de Stiglitz (1985a).
103 Fonte: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/2001/#
104 Ainda que os trabalhos de Stiglitz no campo da economia de informação possam ser considerados
“descendentes” do artigo seminal de George Stigler (Economics of Information, 1961), é evidente que, ao fazer essa afirmação, o autor não se refere aos trabalhos desenvolvidos na esteira do artigo de Stigler no âmbito da Escola de Chicago, que seguiam uma linha mais “pró-mercado”. O autor referia-se, sim, aos artigos desenvolvidos por ele próprio e outros autores pós-keynesianos (Arkelof, Arnott, Greenwald, entre outros), que tem por característica comum a demonstração de que, em tese, na presença de informação imperfeita, haveria espaço para uma intervenção do Estado na economia que gerasse melhoras de Pareto. A esses trabalhos, o autor se refere como “nova economia da informação”.
105 Varian, ainda que mais comedido, ressalta a importância que a economia da informação assumiu na
economia no último quarto do século XX afirmando que “the most rapidly growing area in economic
107 No início da Parte II vimos como o modelo de equilíbrio competitivo descrito na Parte I não é capaz de representar, de forma adequada, grande parte das situações em economia real. No presente capítulo, discutiremos as razões para essa visão. Para Stiglitz, tais modelos possuem um conjunto de premissas tão restritivo que os impediria de analisar várias situações vivenciadas no mundo real. A pressuposição de informação perfeita do modelo de Arrow-Debreu é, para Stiglitz, um dos grandes “pontos fracos” do modelo, responsável por minar grande parte de sua capacidade explicativa:
“Traditional models of competition with perfect information obviously cannot explain the widely observed phenomena of price distributions, which seem sufficiently persistent that they cannot simply be dismissed as disequilibrium phenomenon; nor can they explain advertising; nor can they explain why markets in which there are only a few large firms often seem more competitive than markets with small firms” Stiglitz (1979:339).
Os trabalhos em economia da informação desenvolvidos por Stiglitz tinham como principal objetivo prover explicação para vários desses fenômenos. Segundo o autor, lidar com a presença de informação imperfeita na economia é um grande desafio para o analista, uma vez que, enquanto só há um maneira de expressar a informação perfeita, há inúmeras para modelar uma informação imperfeita. Esta é a razão pela qual, segundo Stiglitz, o desenvolvimento de teorias com a premissa de informação imperfeita demorou tanto na economia.
Esta é também a razão pela qual o autor considera incompletas a análise das falhas de mercado clássicas: “The earlier analyses of market failures basically agreed
with the underlying conception of the market economy that was reflected in the assumptions of the Welfare Theorems. I am not so convinced.” (Stiglitz, 1991a:6). A
partir dessa percepção, o autor defende o que considera um “novo paradigma” da ciência econômica, que, na sua opinião, seria mais robusto que o anterior. Esse paradigma é baseado em uma série de princípios gerais que, associados a uma análise específica das diferentes situações caracterizadas pela presença de informação imperfeita, produziria resultados mais coerentes com a realidade, segundo o autor.
Nossa proposta, neste capítulo, é, portanto, analisar os modelos de falhas de mercado provenientes da presença de informação assimétrica e da existência de
108 mercados incompletos que, segundo Stiglitz, constituem esse novo paradigma da ciência econômica. Para o autor, “The competitive paradigm is an artfully constructed
structure: when one of the central pieces (the assumption of perfect information) is removed, the structure collapses.”(Stiglitz, 1985a:26).
Começaremos por uma breve análise do equilíbrio de mercado e do ótimo de Pareto segundo as premissas da economia da informação. Em seguida analisaremos as principais problemas provenientes da presença de informação assimétrica: seleção adversa, sinalização e risco moral. Por fim, discutiremos o papel do Estado na economia dada a existência de todos esses problemas.
4.1. O Primeiro Teorema do Bem-Estar e a Nova Economia da