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Uma análise do processo de mercado

6.1. O pressuposto de conhecimento a ignorância radical

Assim como nos modelos tradicionais, o mercado, para Kirzner, é resultado da interação entre seus diversos participantes: consumidores, empresários-produtores e proprietários de recursos. Como argumentado por Hayek (1937), a expectativa com relação ao comportamento dos demais atores é insumo fundamental na elaboração do plano de ação de cada um desses participantes. Essa expectativa (e consequentemente o plano de ação a ela associado) é formada em um ambiente de incerteza. Esta decorre das limitações do conhecimento humano e é característica inerente a toda ação humana. É por essa razão que Mises (1995) defende que toda ação humana é essencialmente especulativa. A falta de conhecimento com relação ao plano de ação dos demais atores pode, portanto, levar os indivíduos a tomarem decisões equivocadas. As expectativas podem simplesmente não se confirmar.

Estas   “limitações   do   conhecimento   humano”   são   denominadas, na economia austríaca, de   “ignorância   radical”.   Os   autores   utilizam   esta   expressão   de   forma   a   diferenciá-la da ignorância por vezes assumida nos modelos tradicionais, que Ikeda (1994:24) denomina  “ignorância  racional”  (ou  ignorância  por  escolha). Enquanto esta se refere a uma situação na qual o conhecimento não foi adquirido por uma decisão racional do indivíduo (que, sendo capaz de analisar os benefícios e custos de sua aquisição, decide por não adquiri-lo),   a   “ignorância   radical”   diz   respeito   a   uma   situação na qual o indivíduo ignora até mesmo a existência daquele conhecimento. O autor  usa  o  exemplo  do  livro  “A  Riqueza  das  Nações”.  Caso  um  indivíduo  tenha  plena   consciência de todos os benefícios que a leitura do livro pode lhe proporcionar e, ainda assim, decide que o custo de lê-lo excede seus benefícios, ele possui uma “ignorância   racional” com relação ao conteúdo do livro. Contudo, caso o indivíduo

164 não tenha consciência do benefício de sua leitura ou nem mesmo da existência do livro, trata-se  de  um  exemplo  de  “ignorância  radical” 153.

Desse modo, a saída comumente encontrada de se flexibilizar a premissa de conhecimento perfeito usando funções de probabilidades não é isenta de críticas para os austríacos. Nesse caso,  certo   grau  de  “incerteza”   faz parte da decisão individual, tomando a forma de funções de probabilidade conhecidas. Assim, os indivíduos agiriam comparando o custo marginal esperado com o benefício marginal esperado, ambos calculados probabilisticamente. Contudo, esta solução também não contemplaria a presença da ignorância radical, que seria  uma  espécie  de  “ignorância   pura”   ou   “ignorância   completa”   (sheer ou utter ignorance). Os indivíduos, no momento de formulação de seus planos, não sabem que eles não sabem, ou seja, ignoram a própria existência da informação154155.

Além disso, esta modelagem também não permite o aprendizado dos agentes como fator endógeno de mudanças dos planos individuais. Como vimos, no tempo subjetivo, a memória e a expectativa são componentes fundamentais da escolha individual. À medida que o tempo passa, os acontecimentos de determinado período são insumos para a decisão individual no período seguinte. Assim,

“Ordinary treatments of uncertainty depict it as a weighted arrangement of already-known possibilities. This is simply a given framework under static uncertainty (Langlois, 1982b). At the moment of choice, the individual will have conceived of a certain number or range of possibilities. Nevertheless, he is fully aware that in a world of change something might happen that he could not list beforehand. So he perceives his choice set as, in principle, unbounded in at least certain respects. Genuine uncertainty is

153 Rosen (1997:141-142) exemplifica essa questão com uma série de perguntas: “If   we   can’t   even   identify most of the goods and services that form the basis of economic affairs, how can we know our full opportunity sets? How can we define preferences over such goods or over those that might appear on the market at some future time but are unknown today?”.

154 Nesse sentido, nas  próximas  páginas,  ao  nos  referirmos  ao  “pressuposto  de  conhecimento  perfeito”,  

ao menos que se diga o contrário, a crítica diz respeito tanto a este pressuposto como ao de “conhecimento  estocástico  perfeito”  (ou  conhecimento  ótimo).  

155 Importante ressaltar, ainda, que, em um contexto de ignorância radical e no qual se admite a

possibilidade   dos   “dados   subjetivos”   dos   agentes   diferirem   dos   “dados   objetivos”,   a   suposição   de   “funções  de  aprendizado”  não  é  factível.  Nesse  caso,  é  impossível  ao  indivíduo  saber  se  o  que  ele  toma   como um dado é verdadeiro. Trata-se, somente, de uma percepção subjetiva da realidade. Para mais sobre essa questão, vide Gordon e Hynes (1970).

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inherently ineradicable in the sense that additional knowledge may not enable the individual to overcome it (Dahrendorf, 1968, p. 238). (…)   In more general terms, since action takes place in real time, any activity designed to deal with uncertainty may merely transform that uncertainty. The source of uncertainty is thus endogenous in a world in real time” (O’Driscoll  e  Rizzo,  1996:66)

Para os austríacos, a elaboração dos planos individuais dá-se, portanto, em um contexto de ignorância radical. Com o passar do tempo, os planos muito ambiciosos e aqueles muito pessimistas tendem a se frustrar, o que leva os indivíduos a corrigi-los no período seguinte. Kirzner (1986) admite, seguindo a lógica de Hayek, que o indivíduo possa aprender como resultado de decisões anteriores. O que em um modelo de equilíbrio seria, muitas vezes, tratado como uma descontinuidade (que só poderia resultar de uma mudança exógena nas variáveis subjacentes), na teoria da atividade empresarial trata-se de um aprendizado natural dos indivíduos ao atuarem no mercado: com base na constatação do erro que levou um indivíduo a adotar um plano  de  ação  equivocado  (ou  “menos  ótimo”),  espera-se que ele mude sua percepção da realidade e altere seu plano inicial156.

Deve-se notar que a mudança de comportamento individual ocorre mesmo em um contexto em que as variáveis subjacentes não tenham mudado, mas simplesmente a percepção do indivíduo a seu respeito. É intuitiva a ideia de que uma   “leitura   equivocada”  do  plano  dos  demais  indivíduos  pode  levar  a  uma  revisão  de  um  plano   individual: um indivíduo que abre uma empresa estimando uma demanda mais alta do que a de fato foi verificada para o seu produto,  após  um  tempo  constatará  seu  “erro”  e   irá alterar seu plano inicial. Para Kirzner (1986:8),   “vista ao longo do tempo, essa

série de mudanças sistemáticas na rede interligada de decisões de mercado constitui o  processo  de  mercado”157.

Em um contexto de conhecimento perfeito, não há mudança endógena. É a suposição de ignorância na elaboração do plano dos agentes que abre a possibilidade para esse tipo de aprendizado. A ignorância inicial dos indivíduos é, portanto, parte

156 Modelagens com aprendizado bayesiano lidam, de certa forma, com esse problema. Porém, assume-

se que existe um conjunto de estados da natureza conhecido a priori.

157 Quando  comparamos  essa  definição  de  “processo  de  mercado”  com  a definição vista anteriormente

de  o  “todo  da  atividade  econômica”  por Hayek (1937) – vide seção 5.1 - fica evidente a influência do pensamento hayekiano na teoria de Kirzner.

166 intrínseca do processo de mercado. A correção dos planos inicialmente formulados é consequência da nova informação gerada pela participação nesse processo.

Nesse contexto, o equilíbrio de mercado, tal como entendido tradicionalmente, seria uma construção teórica na qual se considera que as variáveis subjacentes não se alteram e que não há nenhuma ignorância no mercado. Os planos de ação dos indivíduos seriam perfeitamente coerentes entre si, as expectativas dos indivíduos todas se confirmariam e o processo de mercado, tal como definido, deixaria de existir. A descrição das características desse estado fictício é o foco, segundo Kirzner, dos modelos de equilíbrio da ESP. Contudo, para o autor, ao se assumir a ignorância radical como característica essencial da condição humana, o foco no equilíbrio perderia seu sentido e o estudo do processo de mercado deveria ser levado ao primeiro plano da análise.