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O movimento de territorialização do currículo desde o centro para a periferia já analisado por Pacheco (1996) e Morgado (2000), e a consequente deslocação de competências curriculares do nível central para a sala de aula, emergiu da necessidade e da dificuldade da instituição escola adequar-se à crescente heterogeneidade de alunos nos aspetos individuais, culturais e sociais. De resto, o conjunto dos textos legais, normativos e também a multiplicação de investigação sobre a problemática das NEE e das dificuldades de aprendizagem vieram dar

visibilidade à questão da diferenciação pedagógica. Adequar o ensino às caraterísticas individuais, para além de ser uma forma de respeito e de bom senso pedagógico constitui uma exigência de igualdade e encontra-se legitimada nos normativos legais existentes. Segundo Perrenoud (2001) a atitude de ser indiferente à diferença transforma as desigualdades iniciais e prolonga-as no insucesso. Semelhante conceito foi defendido por Bourdieu (1996) segundo o qual a igualdade formal que as escolas praticam e proclamam em nome da justiça social não é senão uma máscara e justificativa à indiferença para com as desigualdades reais. Não são as diferenças por si só que provocam o insucesso ou o sucesso escolar. É o funcionamento do sistema escolar e a sua maneira de tratar as diferenças que transformam as desigualdades biológicas, psicológicas, económicas, sociais e culturais em desvantagens. Segundo o autor,

“Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore no conteúdo do ensino transmitido, nos métodos e nas técnicas de transmissão e nos critérios do julgamento, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais: em outras palavras, tratando todos os alunos, por mais desiguais que sejam de facto, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar, na verdade, sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura.” (Bourdieu, 1996: 336).

Tome-se, como exemplo de análise, a admissão dos alunos na escolaridade obrigatória. Convencionou-se a idade de seis anos como requisito primordial de preparação para a escolaridade. No entanto, existem alunos com capital cultural que não se encontram prontos a aprender nessa idade e só estarão aptos a fazê-la aos sete ou oito anos de idade. Algumas situações são encaminhadas para adiamento da matrícula no primeiro ano de escolaridade até que a criança complete o seu desenvolvimento, mas esta medida visa apenas a homogeneização da turma e não se tomam outras medidas de compensação. Na maior parte dos casos deteta-se a diferença, nomeia-se o atraso de desenvolvimento, mas só se tomam as medidas quando o diagnóstico tiver originado dificuldades e até o fracasso do aluno. Quando isso acontece a escola prepara as suas medidas para a diferenciação que geralmente são medidas de compensação das dificuldades confirmadas e que incluem medidas de: reprovação, apoio pedagógico, atendimento médico-pedagógico ou psiquiátrico. A escola tratou as diferenças iniciais através de meios rudimentares (Perrenoud, 2000).

Outra forma de diferenciação grosseira, e que confirma a afirmação de Bourdieu (1996) de que a escola mantém inalteradas as desigualdades sociais, observa-se no sistema de retenção de

alunos que segundo o autor é um reflexo da condição social do aluno e poucos resultados traz. Na esteira de Bourdieu (1996), Perrenoud (2000) diz que ignorar e ser indiferente às diferenças constitui uma forma de reprodução da desigualdade e para que isso aconteça basta que o mesmo ensino proporcionado a alunos diferentes provoque:

O êxito daqueles que dispõem do capital cultural e linguístico, dos códigos, do nível de desenvolvimento, das atitudes, dos interesses e dos apoios que permitem tirar o melhor partido das aulas e sair-se bem nas provas; Provoque, em oposição, o fracasso daqueles que não dispõem desses recursos e convença-os de que são incapazes de aprender, de que o seu fracasso é sinal de sua insuficiência pessoal mais do que da inadequação da escola. (Perrenoud, 2000, p.9)

Outros comportamentos mais ou menos inconscientes do professor são os que na relação pedagógica se traduzem em discriminação positiva ou negativa. Estes vão desde o tom da interação que o professor realiza com os alunos, a duração, a intenção e os efeitos. As diferenças entre os alunos sempre foram detetadas pela escola e pelos professores que as tentaram gerir de acordo com o que consideravam apropriado. A escola, enquanto instituição, considerava que um currículo uniforme representava uma forma de igualdade e os professores consideraram durante muito tempo que eram justos no tratamento dos alunos, uma vez que os consideravam de igual maneira. Desconhecer a origem cultural, ou social, dos alunos seria atuar de forma isenta e para o bem destes. Esta forma de lidar com as diferenças individuais não tinha em conta o conceito de inclusão. Havia consciência dos problemas, tentava-se solucioná-los, mas as estratégias utilizadas acentuavam e aprofundavam ainda mais as diferenças. As medidas de adaptação dos sistemas educativos às diferenças individuais fizeram-se ao longo do tempo através de cinco métodos diferentes:

1. O método seletivo: assenta em objetivos e conteúdos fixos e comuns para todos os alunos. Os alunos irão abandonando a escola quando os não conseguirem alcançar.

2. O método temporal: pressupõe igualmente a existência de conhecimentos comuns a todos os elementos de uma sociedade e que os alunos que tenham necessidade possam dispor de mais tempo para alcançá-los.

3. O método da neutralização: baseia-se no princípio de que fatores sociais ou culturais originam dificuldades na escola em alguns alunos, os quais deverão ser compensados.

4. O método da adaptação de objetivos: parte do princípio de que não se podem realizar as mesmas aprendizagens devido à diversidade dos alunos que frequentam uma escola. Diversificam-se, assim, os objetivos criando currículos paralelos.

5. O método da adaptação do ensino: considera-se que um único método de ensino/aprendizagem não consegue satisfazer as necessidades de todos os alunos. Por isso adaptam-se a organização e as estratégias de ensino às necessidades de desenvolvimento curricular dos alunos. (Cronbach, 1967 citado por Lídia Grave-

Resendes & Julia Soares, 2002:13)

As medidas tomadas pela administração central, com vista à flexibilização curricular e autonomia do professor, não discutindo a sua utilidade, não passam de meras intenções teóricas se não houver uma transformação radical na organização pedagógica da escola e, em particular, na sala de aula. O ensino em simultâneo a um grupo que se pretende mais ou menos homogéneo e onde se desenvolvem as mesmas atividades para todos, não é certamente a forma de adaptar o ensino à diversidade. Por outro lado, a visão que o professor tem de si próprio e do currículo pode influenciar a forma como organiza o trabalho na sala de aula e a aprendizagem. Também as instituições de formação de professores contribuem para a construção do conceito da função do professor que pode oscilar entre as noções de executor/autor do currículo e, consequentemente, da profissionalidade/ semiprofissionalidade docente. O professor que se perceciona a si próprio como um executor de um programa concebido à distância com objetivos e conteúdos bem definidos e reproduzidos nos manuais escolares, necessariamente terá de se concentrar na forma mais eficaz de transmitir tudo a todos e ao mesmo tempo centrando-se, assim, mais no ensino do que na aprendizagem. Esta visão de executor de prescrições emitidas a nível central constitui uma restrição da profissionalidade docente. A posição contrária, a do professor ou da instituição de formação que perceciona o currículo como um plano consciente da autonomia e do papel do docente como agente curricular leva à centração na aprendizagem e menos no ensino (Roldão, 2003).

As duas posições contêm diferentes conceitos de ensinar. Ensinar “pressupõe a

intencionalidade específica de uma ação no sentido de produzir, promover, possibilitar a aprendizagem de alguma coisa a alguém.” (ibidem, p.44). O ato de ensinar tem por finalidade

a aprendizagem de um conteúdo pelo aprendente e “não é aceitável definir ensinar dispensando

a transitividade para o aprender” (ibidem, p.44). A prática escolar, centrada essencialmente

no conteúdo a ensinar e menos no sujeito que aprende, carateriza-se por uma pedagogia centrada no professor e no ensino. Em oposição, uma prática escolar mais centrada no aprendente caracteriza-se por uma pedagogia preocupada com a aprendizagem. Logicamente que existe uma interação entre o ensinar e o aprender que se observa sempre que se utiliza a expressão ensino-aprendizagem, mas a primeira, o ensino, não tem qualquer sentido se não

houver aprendizagem. A necessidade de se utilizar a expressão pode significar que é possível haver ensino sem que ocorra aprendizagem. O mesmo é dizer que “se aceita tacitamente, ainda

que paradoxalmente, que se pode ensinar sem que ninguém aprenda” (ibidem, p.45).